domingo, 10 de novembro de 2024

Etiqueta

Olhei para o prato de alface que estava à minha frente, no restaurante Bem-Bom, igreja que frequento com fidelidade. A alface me fez lembrar poesia.
É normal. Os poetas veem poesia em qualquer coisa, seja uma cabeça de alface, uma cebola, um quiabo chifre-de-veado, uma pedra ou mesmo uma formiga... O poeta Manoel de Barros explicou esse fenômeno: “Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia. O homem que possui um pente e uma árvore serve para poesia. Terreno de 10 × 20, sujo de mato — os que nele gorjeiam: detritos semoventes, latas, servem para a poesia...”.
Os poetas são mais felizes que os executivos e empresários. Os poetas viajam pra muito longe montados numa cabeça de alface. Mas, para esses últimos, uma alface é apenas uma alface a ser comida. Não os leva a lugar algum.
Lembrei-me do Alberto Caeiro, que voou num prato de salada: “No meu prato que mistura de natureza! As minhas irmãs, as plantas, as companheiras das fontes, as santas a que ninguém reza... E cortam-se e vêm à nossa mesa e nos hotéis os hóspedes ruidosos ... pedem ‘saladas’, descuidosos. Sem pensar que exigem à Terra-Mãe a sua frescura e os seus filhos primeiros, as primeiras verdes palavras que ela tem, as primeiras coisas vivas e irisantes que Noé viu quando as águas desceram e o cimo dos montes verde e alagado surgiu e no ar por onde a pomba apareceu o arco-íris se esbateu...”.
Terminada essa divagação lírica, tomo consciência de que vou comer a alface. Mas como comê-la? Não é coisa simples. A resposta a essa questão vital exigiu a intervenção erudita dos especialistas em etiqueta. Cortar uma alface para comê-la? Jamais! A alface verde virginal não pode ser estuprada pela faca, esse instrumento fálico! Suas folhas devem ser comidas inteiras. Cortar uma folha de alface com uma faca é como morder a hóstia: sai sangue...
Mas comer uma folha de alface sem cortá-la com a faca exige uma habilidade especial, dada a discrepância entre o tamanho da superfície da folha de alface e o apertado orifício onde ela deve entrar, a boca. Para realizar esse feito, é preciso valer-se de artifícios técnicos sofisticados.
É assim. Usando-se a faca como uma espátula, para não ferir a folha com o corte, imobiliza-se a folha no prato. Ato contínuo, usando o garfo, executa-se uma dobradura na folha. Nesse momento, a faca é deslocada de onde estava e é transferida para a superfície da folha dobrada. E assim se vai procedendo, até que a folha, a princípio lisa e aberta como o rosto de uma mulher, seja reduzida a uma pequena trouxa gorda. Então, o garfo penetra na trouxa para fixá-la nesse formato, enquanto a faca é usada para empurrar a trouxa mais para o fim dos dentes do garfo, para impedir que ela se abra. A folha de alface está pronta para ser comida.
Isso não é fácil. Uma senhora minha amiga, muito elegante mas desajeitada na arte de fazer trouxas de folha de alface, faz suas trouxas na forma de um charuto. Mas um charuto é comprido demais para entrar na boca. Assim, ela desenvolveu uma técnica especial: fincado o charuto de alface com o garfo, o charuto não pode penetrar na boca de uma vez só. A penetração se dá em dois tempos. Primeiro introduz-se na boca um dos lados do charuto, até encostar na bochecha. Então, introduz-se a outra extremidade do charuto que ainda está fora da boca.
Mas aí eu me pergunto: “Quem foi que estabeleceu que deve ser assim? E as milhões de folhas de alface que foram cortadas para serem comidas — que princípio estético esse procedimento transgride?”.
Tive então uma iluminação súbita. Percebi que a etiqueta surgiu em decorrência de uma briga entre os fabricantes dos instrumentos que são usados para comer, tais como garfos, facas, colheres, e os mestres de cerimônia. Digo isso por haver me dado conta de que as normas de etiqueta têm por fim, precisamente, negar as funções dos ditos instrumentos.
Veja o caso das colheres. Foram feitas com um bico. A existência do bico indica que a intenção do artesão era que o bico fosse introduzido na boca. Se não fosse essa a sua intenção, ele não teria feito as colheres com bico. Mas os mestres de etiqueta proíbem que se introduza a colher na boca pelo bico. O elegante é tomar a sopa fazendo-a transbordar pelo lado da colher. Fazer o bico entrar na boca é falta de educação.
Por analogia, os garfos nunca deveriam ser introduzidos na boca pela ponta. Teriam que ser usados pelas bandas.
Os artesãos construíram os garfos inspirados nas pás: pás para pegar a comida e pô-la na boca. Dizem os estetas: Jamais! O garfo deve ficar sempre na mão esquerda, sendo seguro ao contrário do que sua forma sugere, o oco da pá voltado para baixo. Tal posição não oferece problemas quando a função do garfo é fincar: fincar a carne, fincar a batata. Mas como comer as ervilhas e o feijão? Um entendido nessas questões me esclareceu: esmagam-se as ervilhas e o feijão com a faca contra as costas do garfo.
Volta a questão da analogia. As colheres de sopa devem também ser usadas da forma como se usam os garfos, ao contrário, o oco voltado para baixo?
Fico à espera de alguém que possa me esclarecer em questões de tanta relevância para a vida.

Rubem Alves, em Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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