O
homem queria ir pescar? Pajão então levava-o ao certo lugar, poço
bom, fundo, pesqueiro. O resto, virava com Deus... Inda que penoso o
caminhar, dava gosto guiar um excomungado, assim, hum, a mais
distante, no fechado da brenha.
E
aquele nem estranhava o sujo brejão, marimbu de obrar medo. Sozinho
chegara, na véspera, a cavalo, puxado à-destra o burro cargueiro;
tinha ror de canastras e caixas, disparate de trens, quilos de
dinheiro, quem sabe, até ouro. Falava que seus camaradas também
ainda vinham vir? Quê! Sem companheiro nenhum, parava era todo
perdido, cá, nas santas lonjuras, fora de termo.
Aqui,
Pajão agora o largava, ao pé do poço oculto, quieto, conforme ele
mesmo influído pedira. Ife! pescasse. Entendia o mundo de mato,
usos, estes ribeirões de águas cinzentas?
Drepes
entendia, porém. Deixou passar tempo, não à beira, mas cauto
encostado em árvore. Deu tiro, para o alto, ao acaso. E escutou
resposta: o ronco, quase gemer, que nem surdo berro de gado. Ah, seu
aleijado hospedeiro tivera manha e motivo, para o sorrisão com
caretas! Sim — serpente gigante ali se estava, saída de sob a
água, sob folhas. Drepes ia esperar, trepado à árvore, havia a
ver.
À
noitinha, um dos filhos de Pajão o veio buscar; taciturno, bronco,
só matéria e eventual maldade. — “De que jeito é que sucuri
pega capivara?” — Drepes indagou, curioso, irônico. O moço
nem sacudiu cabeça, dado um hã, mastigado o nome do pai.
Na
casa, que fedia a couros podres, à boca da floresta, Pajão
caranguejava. — “Sucruiú? Aqui nunca divulguei...” —
e em roda tornava a coxear, torto, estragando muito espaço. Armou o
candeeiro, sem fitar Drepes; seu ódio se derramava pelos cantos.
— “Ela
morde a presa, mas fica com o rabo enganchado num pau? Se aquela
corre, larga-lhe trela, estirada, afinada, depois repuxa e mata,
tomando-lhe o fôlego das ventas?” — Drepes insistia.
Pajão,
de boca retorcida: — “O senhor está dizendo.”
O
candeeiro era para Drepes, no apertado quarto, sua fortaleza. —
“Você já viu sucuri?!” Acolá, no escuro, os do Pajão,
a família não se movesse.
O
terrível homem cidadão, azougado da cabeça, xê, pensando ferros e
vermelhos. Não deixava mão da carabina e revólver, por entre o
engenho de suas trenheiras malditas. A ele a gente tinha de
responder, ver ensinar o que vige no desmando, nhão, as outras
coisas da natureza. E não é que um repisa, e crê, é o que ouve
contar, em vez do verdadeiro avistado?
— “De
jeito nenhum. Não pode se esticar afinada, ela tem espinha,
também... Adonde! Quebra osso nenhum, do bicho que come. Pega boi
não, só pato, veado, paca...” — a gente emendava.
— “Pega
homem?!” Desaforo. E o cujo, eh, botava para rodar os carretéis
daquele cego relógio.
Saía,
aventado, no outro dia, para o dormido poço do marimbu, hum, com
receio nenhum, seguro de tudo. Sozinho, xê. Delatava a ele o caminho
uma caixeta redonda, que tinha, boceta de herege. Zanzava, mexia, vai
ver não voltava! “Sucruiú come homem?” Deus querendo,
come. Mas o danado levara também o Pacamã, cachorro sério, decerto
por trapaça cedia a ele parte da matula, farinha e carne...
Voltaram,
cão e homem. Drepes pisava forte. No prato de comer, esparziu pitada
de um pó branco: — “Instrui de qualquer veneno: formicida,
feitiço, vidro moído. Tendo, o remédio fica azul...” —
falou, aquilo ainda oferecendo.
Pajão
recuou cara, a ira enchia-o de linhas retas. Os filhos meio que
comiam, os olhos tão duros quanto os narizes e queixos. Drepes se
palpava os joelhos, não ia relaxar sua cautela. A velha, de pé,
quase de costas, suspirou alto.
Drepes
disse: — “Deus dê a todos boa noite!” — tinha
pinchado também do pó na cuia de água.
Aquele
homem zureta, atentado! Agora dava corda no relógio sem números nem
ponteiros, a gente escutava: a voz guardada, dele mesmo, Pajão,
depondo relato:
— “Sucruiú
agride de açoite, feito o relâmpago, pula inteira no outro bicho...
Aquilo é um abalo! Um vê: ela já ferrou dente e enrolou no outro o
laço de suas voltas, as duas ou três roscas, zasco-tasco, no
soforçoso... O bicho nem grita, mal careteia, debate as pernas de
trás, o aperto tirou dele o ar dos bofes. Sucruiú sabe o prazo, que
é só para sufocar, tifetrije... Aí, solta as laçadas de em redor
do bicho morto, que ela tateia todo, com a linguazinha. Começa a
engolir...”
Drepes
sabia, aprovava a desfábula. O ogro conhecia bem a cobra-grande!
Aquele rude ente, incompleto, que sapejava, se arrimando às paredes
do casebre, no andar defeituoso, de tamanduá, já pronto para
pesadelo. Se de repente se apagasse o candeeiro, Drepes cerrava com
todos, disparava a pistola — em rumo, ruído e bafejo.
De
manhã, quis partir dali, mesmo só. Deram porém o cavalo e o burro
como fugidos, disseram-lhe. O empulho. Pajão cravando-lhe os olhos
como dentes, e os três filhos, à malfa, com as foices, zarrões
homens, capazes de saltarem com ele, ruindadeiros, de dar de garrucha
ou faca.
Drepes,
descorado, sentou-se contudo a cômodo no jirau, pernas abertas. A
carabina e, na outra mão, o barômetro, dele saindo fio, que se
sumia numa caixa. Com força de tom, começou a falar — como se a
um pé-de-exército — a inventados camaradas seus... — “...Aqui,
no que é de um Pajão, brejos da Sumiquara!”
Pajão
rodava com o pescoço, jurava que os animais iam já aparecer. Os
filhos, simplesmente, saíam para cortar mato.
Eh,
fosse embora! Pajão mesmo, ao entardecer, vinha ao poço, com o
aviso, que cavalo e burro estavam já achados. Ouviu os tiros! Viu o
demo do homem, revólver na mão, a cara de fera... O cachorro,
salvo, tremia demais, deitado, babado, arrepiado. A sucuriju, cabeça
espatifada, movia corpo, à beira do aguaçal.
Pajão
fez pé atrás. — “Acho razão no senhor...” — soava a
oco. Ladino, avançou, quase quadrumanamente, desembainhado o facão,
feio, tão antigo, que parecia uma arma de bronze. Ele queria o
couro, do bicho dragonho.
— “P’ra
a sucruiú, a gente não tem piedade!” — ringiu. A cobra,
esfolada, ainda se mexia.
Drepes
saiu-se indo, dali a hora, pagara-lhes bem a hospedagem. Acenavam-lhe
vivo adeus.
Guimarães Rosa, em Tutameia
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