Primeiras
estórias
Depois
de inovar os gêneros da novela e do romance, com Primeiras
estórias (1962), João Guimarães Rosa estreou no conto. Talvez
seja essa coletânea de vinte e um contos o mais labiríntico de seus
livros. A perspectiva, a atmosfera e a temperatura emocional mudam
com cada peça do volume; mas, ainda assim, observa-se nele uma
notável unidade, provinda de uma concepção personalíssima da vida
e da arte. Simplificando, poder-se-ia dizer que são relatos de
milagres, contanto que se entenda o termo como designativo de
acontecimento muitas vezes íntimo, indefinível e impreciso. Mesmo
as narrativas mais anedóticas prolongam-se num plano outro que não
o real. Quase todas são pluridimensionais, carregadas de significado
oculto, rodeadas de um halo de religiosidade. Os cenários são os
mesmos ou semelhantes aos de Corpo de baile, esboçados com
poucos toques incisivos; a paisagem fica reduzida e a iluminação
cai toda sobre as personagens, seres acessíveis ao chamado do
irracional, e por isso quase todos loucos ou crianças. A variedade
da perspectiva e do enfoque conferem às estórias descomunal riqueza
de cambiantes. Mais de uma vez um elemento suplementar de mistério,
a identidade do narrador e sua personalidade revelam-se aos poucos e
desempenham papel no deciframento da mensagem. Como em Sagarana,
frequentemente o autor encaminha a narração através de engenhosos
suspenses para uma catástrofe que deixa de se produzir, sem por isto
frustrar a expectativa do leitor.
O
tratamento da linguagem mostra cada vez mais a experimentação
consciente. As inovações do autor, além de tentar esgotar a
infinita riqueza do real, procuram catar-lhe facetas até agora não
identificadas, ainda à espera de denominação; elas golpeiam o
leitor e inculcam-lhe, por assim dizer, uma percepção nova. Não
obstante a sua oralidade, ela se torna rebuscada, lúdica, musical,
elástica, fluida, ela própria uma criação autônoma. Seus
materiais, em fusibilidade permanente, mudam de forma e de função,
resultando disso um barroquismo inédito, provocador e, às vezes,
perturbador. O autor trabalha com métodos de cineasta: embora
sabendo que somente uma parte de seus flagrantes será percebida
pelos espectadores na rápida sucessão das imagens, nem por isso
deixa de trabalhar os seus menores efeitos.
Tutaméia
Último
livro do autor, foi publicado em 1967, poucos meses antes da sua
morte. É um conjunto de quarenta e quatro contos pequenos, quatro
dos quais desempenham também o papel de prefácios. É nestes que,
pela primeira vez, Guimarães Rosa condescende em explicar-se; mas,
como que arrependido ao mesmo tempo de romper um longo silêncio,
envolve as suas confidências em tantos véus de circunlóquios e
metáforas que essa auto interpretação acaba por tornar o livro
ainda mais hermético. Aí encontramos uma definição do
conto-anedota, que, na opinião do autor, melhor se cristaliza em
redor de um núcleo absurdo; lemos uma apologia zombeteira da
linguagem criadora; através de um incidente tão comum como a volta
de um bêbado para casa assistimos à incessante transformação dos
fatos do ambiente por uma imaginação desencadeada; e finalmente
somos informados do inconformismo que o escritor, desde criança,
testemunhou em face do bom senso caseiro; do estado mediúnico em que
compôs algumas de suas obras; de forças indefiníveis disfarçadas
em acasos que influíram em fatos decisivos de sua vida.
Nas
histórias propriamente ditas, o tamanho reduzido (imposto pela
revista em que saíram primeiro) obrigou o contista a excessiva
concentração. São episódios cheios de carga explosiva, retratos
que nos obrigam a reconstituir os dramas que moldaram os traços dos
originais, romances em potencial comprimidos ao máximo. Fiel ainda
desta vez aos cenários das obras anteriores, isto é, aos da sua
infância, faz caber neles a angústia existencial das personagens e
a sua própria. É naquele ambiente de agreste e dramática beleza
que o inexistente entremostra a sua vontade de encarnar-se, que
aquilo que não é passa a influir no que é, que o que poderia ter
sido modifica o sentido do que houve. Isso num estilo que tira seus
processos da fala sertaneja, propensa ao lacônico e ao sibilino, ao
pedante e ao sentencioso, ao subentendido e ao elíptico, ao enfático
e ao colorido; que vai buscar o seu léxico num estoque enorme de
regionalismos, arcaísmos, latinismos, plebeísmos e brasileirismos,
completando-o por criações de cunho individualíssimo; e que se
inova, sobretudo, por ousadias sintáticas e capazes de sugerir o que
não é dito num jogo de anacolutos, reticências e omissões.
Os
livros póstumos
Depois
da morte inesperada do escritor, a sua editora publicou mais dois dos
seus livros, cujos planos João Guimarães Rosa deixara preparados.
Ainda assim e com toda a sua riqueza de conteúdo, eles não
apresentam a unidade orgânica característica dos livros publicados
em vida do autor.
Desconhecemos
a data exata de todos os escritos enfeixados em Estas estórias;
em todo o caso, pode haver um intervalo até de vinte anos entre
alguns deles. Um ou vários faziam parte do Sagarana
primitivo, o que concorrera ao Prêmio Humberto de Campos, em 1938,
mas foram omitidos na edição lançada em 1946; só depois de
decorridos vinte anos ou mais foram alguns, intensamente
retrabalhados, julgados dignos de publicação (em revistas), ao
passo que outros viriam à luz pela primeira vez neste volume que
acabou saindo como póstumo. Apesar da forçosa falta de unidade (o
seu estilo num quarto de século passou por verdadeira revolução),
há peças poderosas na coletânea: além de “Bicho mau” (aqui
reproduzido14), “Páramo” ou “Meu tio o Iauaraté” bastariam
para perpetuar o nome do novelista. O volume é completado por uma
preciosa reportagem. “Com o vaqueiro Mariano”, que relata uma das
expedições do escritor à cata de material.
Por
sua vez, Ave, palavra é uma miscelânea de escritos de muitos
gêneros que vão da reportagem à poesia, da reminiscência à
vinheta, do comentário de notícia ao relatório de viagem,
oscilando entre o depoimento sério e exercício lúdico, a nota de
diário e a ficção. São meia centena de peças de tom, alcance e
peso diferentes, algumas de interesse apenas documental, enquanto
outras – como as inseridas na Seleta: “Uns inhos engenheiros”,
“As garças” e “Minas Gerais” – verdadeiras páginas
antológicas.
Há
grande expectativa em relação à publicação das cartas de
Guimarães Rosa, que, a julgar pelas amostras, constituirão
documento de valor inestimável.
Paulo Rónai, em Rosa & Rónai, O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador
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