quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Trajetória de uma obra


Primeiras estórias

Depois de inovar os gêneros da novela e do romance, com Primeiras estórias (1962), João Guimarães Rosa estreou no conto. Talvez seja essa coletânea de vinte e um contos o mais labiríntico de seus livros. A perspectiva, a atmosfera e a temperatura emocional mudam com cada peça do volume; mas, ainda assim, observa-se nele uma notável unidade, provinda de uma concepção personalíssima da vida e da arte. Simplificando, poder-se-ia dizer que são relatos de milagres, contanto que se entenda o termo como designativo de acontecimento muitas vezes íntimo, indefinível e impreciso. Mesmo as narrativas mais anedóticas prolongam-se num plano outro que não o real. Quase todas são pluridimensionais, carregadas de significado oculto, rodeadas de um halo de religiosidade. Os cenários são os mesmos ou semelhantes aos de Corpo de baile, esboçados com poucos toques incisivos; a paisagem fica reduzida e a iluminação cai toda sobre as personagens, seres acessíveis ao chamado do irracional, e por isso quase todos loucos ou crianças. A variedade da perspectiva e do enfoque conferem às estórias descomunal riqueza de cambiantes. Mais de uma vez um elemento suplementar de mistério, a identidade do narrador e sua personalidade revelam-se aos poucos e desempenham papel no deciframento da mensagem. Como em Sagarana, frequentemente o autor encaminha a narração através de engenhosos suspenses para uma catástrofe que deixa de se produzir, sem por isto frustrar a expectativa do leitor.
O tratamento da linguagem mostra cada vez mais a experimentação consciente. As inovações do autor, além de tentar esgotar a infinita riqueza do real, procuram catar-lhe facetas até agora não identificadas, ainda à espera de denominação; elas golpeiam o leitor e inculcam-lhe, por assim dizer, uma percepção nova. Não obstante a sua oralidade, ela se torna rebuscada, lúdica, musical, elástica, fluida, ela própria uma criação autônoma. Seus materiais, em fusibilidade permanente, mudam de forma e de função, resultando disso um barroquismo inédito, provocador e, às vezes, perturbador. O autor trabalha com métodos de cineasta: embora sabendo que somente uma parte de seus flagrantes será percebida pelos espectadores na rápida sucessão das imagens, nem por isso deixa de trabalhar os seus menores efeitos.

Tutaméia

Último livro do autor, foi publicado em 1967, poucos meses antes da sua morte. É um conjunto de quarenta e quatro contos pequenos, quatro dos quais desempenham também o papel de prefácios. É nestes que, pela primeira vez, Guimarães Rosa condescende em explicar-se; mas, como que arrependido ao mesmo tempo de romper um longo silêncio, envolve as suas confidências em tantos véus de circunlóquios e metáforas que essa auto interpretação acaba por tornar o livro ainda mais hermético. Aí encontramos uma definição do conto-anedota, que, na opinião do autor, melhor se cristaliza em redor de um núcleo absurdo; lemos uma apologia zombeteira da linguagem criadora; através de um incidente tão comum como a volta de um bêbado para casa assistimos à incessante transformação dos fatos do ambiente por uma imaginação desencadeada; e finalmente somos informados do inconformismo que o escritor, desde criança, testemunhou em face do bom senso caseiro; do estado mediúnico em que compôs algumas de suas obras; de forças indefiníveis disfarçadas em acasos que influíram em fatos decisivos de sua vida.
Nas histórias propriamente ditas, o tamanho reduzido (imposto pela revista em que saíram primeiro) obrigou o contista a excessiva concentração. São episódios cheios de carga explosiva, retratos que nos obrigam a reconstituir os dramas que moldaram os traços dos originais, romances em potencial comprimidos ao máximo. Fiel ainda desta vez aos cenários das obras anteriores, isto é, aos da sua infância, faz caber neles a angústia existencial das personagens e a sua própria. É naquele ambiente de agreste e dramática beleza que o inexistente entremostra a sua vontade de encarnar-se, que aquilo que não é passa a influir no que é, que o que poderia ter sido modifica o sentido do que houve. Isso num estilo que tira seus processos da fala sertaneja, propensa ao lacônico e ao sibilino, ao pedante e ao sentencioso, ao subentendido e ao elíptico, ao enfático e ao colorido; que vai buscar o seu léxico num estoque enorme de regionalismos, arcaísmos, latinismos, plebeísmos e brasileirismos, completando-o por criações de cunho individualíssimo; e que se inova, sobretudo, por ousadias sintáticas e capazes de sugerir o que não é dito num jogo de anacolutos, reticências e omissões.

Os livros póstumos

Depois da morte inesperada do escritor, a sua editora publicou mais dois dos seus livros, cujos planos João Guimarães Rosa deixara preparados. Ainda assim e com toda a sua riqueza de conteúdo, eles não apresentam a unidade orgânica característica dos livros publicados em vida do autor.
Desconhecemos a data exata de todos os escritos enfeixados em Estas estórias; em todo o caso, pode haver um intervalo até de vinte anos entre alguns deles. Um ou vários faziam parte do Sagarana primitivo, o que concorrera ao Prêmio Humberto de Campos, em 1938, mas foram omitidos na edição lançada em 1946; só depois de decorridos vinte anos ou mais foram alguns, intensamente retrabalhados, julgados dignos de publicação (em revistas), ao passo que outros viriam à luz pela primeira vez neste volume que acabou saindo como póstumo. Apesar da forçosa falta de unidade (o seu estilo num quarto de século passou por verdadeira revolução), há peças poderosas na coletânea: além de “Bicho mau” (aqui reproduzido14), “Páramo” ou “Meu tio o Iauaraté” bastariam para perpetuar o nome do novelista. O volume é completado por uma preciosa reportagem. “Com o vaqueiro Mariano”, que relata uma das expedições do escritor à cata de material.
Por sua vez, Ave, palavra é uma miscelânea de escritos de muitos gêneros que vão da reportagem à poesia, da reminiscência à vinheta, do comentário de notícia ao relatório de viagem, oscilando entre o depoimento sério e exercício lúdico, a nota de diário e a ficção. São meia centena de peças de tom, alcance e peso diferentes, algumas de interesse apenas documental, enquanto outras – como as inseridas na Seleta: “Uns inhos engenheiros”, “As garças” e “Minas Gerais” – verdadeiras páginas antológicas.
Há grande expectativa em relação à publicação das cartas de Guimarães Rosa, que, a julgar pelas amostras, constituirão documento de valor inestimável.

Paulo Rónai, em Rosa & Rónai, O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador

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