quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Ratos e Homens | 1


Alguns quilômetros ao sul de Soledad, o rio Salinas aproxima-se do sopé das colinas e fica bem profundo e verde. A água também é quente, por deslizar, reluzente, sobre as areias amarelas banhadas pelo sol antes de chegar à lagoa estreita. De um lado do rio, as encostas das colinas sobem até as montanhas Gabilan, fortes e rochosas, mas, do lado do vale, a água se faz acompanhar por uma fileira de árvores – chorões que se renovam verdejantes a cada primavera, segurando nos entroncamentos das folhas mais baixas os restos das enchentes de inverno; e plátanos com troncos e galhos cobertos de manchas, brancos e recurvados, que se arqueiam por sobre a lagoa. Na margem arenosa sob as árvores, uma grossa camada de folhas se aglomera tão seca que um lagarto que passe correndo por lá faz muito barulho. Lebres saem do bosque para se acomodar sobre a areia ao cair da noite, e a porção úmida das margens fica coberta com os rastros noturnos dos guaxinins, com as almofadinhas espaçadas das patas dos cães das fazendas, e com as pegadas em forma de V dos veadinhos que vão até ali beber água no escuro.
Há uma trilha entre os chorões e os plátanos, uma trilha bem desgastada pelos garotos que vêm das fazendas para nadar na lagoa, e desgastada pelos mendigos que descem cansados da estrada ao anoitecer para se aninhar perto da água. Na frente do tronco baixo e horizontal de um plátano gigante há uma pilha de cinzas formada por muitas fogueiras antigas; o lugar do tronco em que os homens costumam se sentar é liso.
O anoitecer de um dia quente fez com que uma brisa começasse a soprar por entre as folhas. A sombra ia subindo pelas montanhas, em direção ao topo. Nas margens arenosas, as lebres se acomodaram como se fossem pedrinhas cinzentas e esculpidas. E então, dos lados da autoestrada estadual, veio o som de passos sobre as folhas de plátano secas. As lebres saíram correndo em silêncio, em busca de abrigo. Uma garça que ali descansava saiu voando rio abaixo. Por um instante o lugar ficou sem vida, e então dois homens surgiram da trilha e passaram à clareira ao lado da lagoa verde.
Haviam caminhado em fila indiana pela trilha, e mesmo ali, em terreno aberto, continuavam um atrás do outro. Ambos usavam calças de brim e jaquetas de brim com botões de latão. Ambos usavam um chapéu preto disforme e ambos carregavam cobertores enrolados bem apertados, pendurados no ombro. O primeiro era pequeno e rápido, moreno de rosto, com olhos inquietos e traços bem definidos e fortes. Cada parte dele era bem definida: mãos pequenas e fortes, braços delgados, nariz fino e ossudo. Atrás dele vinha sua antítese, um homem enorme, sem formas definidas no rosto, com olhos grandes e claros, com ombros caídos e amplos, que caminhava pesadamente, arrastando um pouco os pés, da maneira como um urso arrasta as patas. Os braços não balançavam ao lado do corpo, apenas permaneciam soltos.
O primeiro homem parou de repente na clareira, e seu seguidor quase passou por cima dele. Tirou o chapéu, limpou a faixa interna com o indicador e sacudiu a mão para se livrar da umidade. Seu enorme companheiro deixou cair os cobertores, se jogou no chão e bebeu a água da superfície da lagoa verde; bebeu com goles compridos, fazendo barulho na água como se fosse um cavalo. O homenzinho parou em pé ao seu lado, nervoso.
Lennie! – disse com severidade. – Lennie, pelo amor de Deus, num bebe tanto assim.
Lennie continuou a beber ruidosamente. O homenzinho se abaixou e o sacudiu pelo ombro.
Lennie. Ocê vai se sentir mal, igual na noite passada.
Lennie enfiou toda a cabeça na água, com chapéu e tudo, então se sentou na margem e a água no chapéu pingou na jaqueta e escorreu pelas costas.
Foi bom – disse. – Bebe um pouco, George. Bebe um golão. – Sorriu alegremente.
George soltou a alça da trouxa e a colocou com cuidado no chão:
Num sei se essa água é boa – disse. – Parece meio cheia de lodo.
Lennie enfiou sua patarra na água e remexeu os dedos, fazendo com que a água espirrasse em pequenos jorros; anéis se formaram e chegaram ao outro lado da lagoa e então voltaram. Lennie ficou observando o trajeto:
Oia, George. Oia o que eu fiz.
George se ajoelhou ao lado da lagoa e bebeu com a mão em forma de concha, em porções rápidas.
O gosto é normal – reconheceu. – Mas num parece corrente. A gente nunca deve bebê água que num corre, Lennie – disse, inutilmente.
Ocê ia bebê água da sarjeta se tivesse com sede.
Jogou uma porção de água no rosto e a espalhou com a mão, sob o queixo e em volta do pescoço. Então recolocou o chapéu, deixou-se cair sentado no chão, colocou os joelhos perto do corpo e os abraçou. Lennie, que tinha observado tudo com atenção, imitou George com exatidão. Deixou-se cair sentado no chão, puxou os joelhos para perto do corpo e os abraçou, olhou para George para ver se tinha feito certo. Puxou o chapéu mais um pouco por sobre os olhos, para ficar igual ao chapéu de George.
George ficou olhando morosamente para a água. Seus olhos estavam vermelhos por causa do brilho do sol. Disse, bem bravo:
A gente bem que podia tê chegado direto na fazenda se aquele idiota daquele motorista de ônibus soubesse o que tava falando. “Só uma caminhadinha curtinha, saindo da estrada”, ele disse. “Só uma caminhadinha curtinha.” Que diabo, foi mais de seis quilômetro, isso sim! Ele não quis é pará na portera da fazenda, só isso. Preguiçoso dimais pra estacioná. Tô aqui pensando que ele deve de se achá bom dimais pra pará em Soledad também. Chuta a gente pra fora e fala “só uma caminhadinha curtinha, saindo da estrada”. Aposto que era mais que seis quilômetro. Que porcaria de dia quente.
Lennie olhou para ele, todo tímido:
George?
O que ocê qué?
Pr’onde é que a gente tá indo, George?
O homenzinho puxou para baixo a aba do chapéu e olhou torto para Lennie.
Então, ocê já isqueceu, foi? Vô tê que falá de novo, né? Jesus Cristo, ocê é um idiota loco!
Isqueci – Lennie disse suavemente. – Eu tentei não isquecê. Juro por Deus que tentei, George.
Tudo bem, tudo bem. Vô falá de novo. Não posso fazê nada. Parece que eu passo o tempo todo falando as coisa pr’ocê, aí ocê isquece e eu falo tudo de novo.
Eu tentei, tentei sim – Lennie disse. – Mas não adiantô nada. Eu lembro daquilo dos coelho, George.
Que se dane os coelho. A única coisa que ocê consegue lembrá é esses coelho. Tudo bem! Agora vê se ouve bem e dessa veiz ocê vai tê que lembrá pra gente não se metê em encrenca. Ocê lembra de quando a gente tava sentado naquela sarjeta da rua Howard e viu uma placa?
O rosto de Lennie se abriu em um sorriso cheio de satisfação:
Mas claro que sim, George, lembro sim… mas… o que foi memo que a gente fez depois? Lembro de umas moça que passô, e ocê disse… ocê disse…
Que se dane o que eu disse. Ocê lembra que a gente entrou no escritório do Murray e do Ready, e que eles deu pra gente uns cartão de trabaio e umas passagem de ônibus?
Ah, claro, George. Agora eu lembrei. – Percorreu rapidamente com as mãos os bolsos laterais do casaco. Disse bem baixinho:
George… o meu num tá aqui. Devo tê perdido em algum lugá. – Olhou para o chão, desesperado.
O seu nunca ficou co’ocê, seu idiota loco. Os dois tão aqui comigo. Ocê acha que eu ia dexá ocê carregá seu cartão de trabaio?Lennie sorriu aliviado:
Eu… eu achei que tinha colocado no bolso. – Colocou a mão no bolso de novo.
George olhou para ele com severidade:
O que foi que ocê tirou aí desse bolso?
Num tem nada no meu bolso – Lennie disse, com esperteza.
Eu sei que num tem. Ocê tá segurando na mão. O que é qu’ocê tem aí na mão… o que qu’ocê tá escondendo?
Num tem nada, não, George. Sério.
Anda logo, dá aqui.
Lennie afastou de George a mão fechada:
É só um rato, George.
Um rato? Um rato vivo?
Não. Só um rato morto, George, num fui eu que matou. Sério! Eu achei. Achei morto.
Dá aqui! – disse George.
Ah, deixa eu ficá com ele, George.
Dá aqui!
A mão de Lennie obedeceu vagarosamente. George pegou o rato e jogou por sobre a lagoa, para o outro lado, no meio do bosque.
Pra que é qu’ocê qué um rato morto, hein?
Eu fiquei agradando ele co’o dedão enquanto a gente ficou andando – respondeu Lennie.
Bom, ocê não vai ficá agradando rato nenhum enquanto anda comigo. Agora ocê lembra onde a gente tá indo?
Lennie pareceu confuso e então, envergonhado, escondeu a cabeça entre os joelhos:
Isqueci de novo.– Jesus Cristo – George disse, cheio de resignação. – Bom… olha, a gente tá indo pr’uma fazenda igual àquela lá do Norte, de onde a gente tá vindo.
Lá do Norte?
De Weed.
Ah, tá. Eu lembro. De Weed.
A fazenda pra onde a gente vai é logo ali, a uns quinhentos metro. A gente vai lá falá co’o patrão. Então, vê bem… eu vô dá pra ele os tíquete de trabaio, mas ocê num vai dá nenhum pio. Ocê só vai ficá lá parado sem dizê nada. Se ele descobri o idiota loco qu’ocê é, a gente não vai consegui trabaio nenhum, mas se ele vê ocê trabaiá antes de ouvi ocê falá, pronto. Entendeu?
Claro, George, claro que entendi.
Tudo bem. Então, quando a gente for falá co’o patrão, o que é memo que ocê vai dizê?
Eu… eu – Lennie estava pensando. O seu rosto ficou rígido de tanto esforço. – Eu… eu num vô falá nada. Só vô ficá lá parado.
Bom garoto. É isso aí. Fala isso umas duas, treis veiz, pra tê certeza que ocê num vai isquecê.
Lennie murmurou para si mesmo, bem baixinho:
Num vô falá nada… Num vô falá nada… Num vô falá nada.
Tudo bem – George disse. – E ocê também num vai fazê nenhuma coisa errada, igual qu’ocê feiz em Weed, viu?
Lennie ficou com cara de quem não estava entendendo nada:
Igual eu fiz em Weed?
Ah, então ocê também isqueceu daquilo, é? Bom, eu é que num vô fazê ocê lembrá, pr’ocê num fazê de novo.
Uma luz de compreensão invadiu o rosto de Lennie.
Eles ixpulsô a gente de Weed – explodiu, cheio de triunfo.
É, foi memo, caramba – George disse, desgostoso. – A gente saiu correndo. O pessoal tava memo atrás da gente, mas ninguém pegô a gente.
Lennie deu risadinhas alegres.
Num isqueci isso, pode tê certeza.
George se deitou sobre a areia e cruzou as mãos por sob a nuca, e Lennie o imitou, erguendo um pouco a cabeça para conferir se estava fazendo certo.
Caramba, ocê dá o maió trabaio – George disse. – Eu podia tá me dando muito bem se num tivesse ocê no meu pé. Eu ia podê levá uma vida fácil e, vai sabê, podia até arrumá uma muié pra mim.
Por um instante, Lennie ficou lá quieto, e daí disse, cheio de esperança:
A gente vai trabaiá numa fazenda, George?
É isso aí. Isso ocê entendeu. Mas hoje a gente vai dormi aqui porque eu quero.
O dia estava indo embora rapidamente. Apenas o topo das montanhas Gabilan queimava com a luz do sol que já tinha ido embora do vale. Uma cobra-d’água deslizou pela lagoa, com a cabeça erguida como um pequeno periscópio. Os juncos estremeciam um pouco por causa da corrente. Ao longe, na direção da estrada, um homem gritou alguma coisa, e outro homem gritou em resposta. Os galhos dos plátanos farfalharam um pouco devido a uma brisa fraca que morreu imediatamente.
George… por que é que a gente num vai até lá na fazenda arrumá uma janta? Tem janta na fazenda.
George rolou o corpo para o lado.
Num vô dá razão nenhuma pr’ocê. Eu gostei daqui. Amanhã a gente vai lá trabaiá. Vi umas máquina de debulhá no caminho pra cá. Isso qué dizê que a gente vai tê que ficá carregando saco de cereal, a gente vai estourá as tripa. Hoje vô ficá aqui deitado olhando pra cima. Gostei da ideia.
Lennie ficou de joelhos e olhou para George:
A gente não vai jantá?
Claro que vai, se ocê fô buscá uns galho seco de salgueiro. Tenho treis lata de fejão na minha troxa. Ocê arruma o fogo. Eu te dô um fósfro quando a madera tivé pronta. Daí a gente isquenta o fejão e janta.
Lennie disse:
Eu gosto de comê fejão com molho de tomate.
Bom, a gente num tem molho de tomate nenhum. Vai lá buscá a madera. E num vai ficá dando volta por aí. Logo, logo vai iscurecê.
Lennie ficou de pé e desapareceu no meio do bosque. George ficou deitado onde estava e assobiou baixinho para si mesmo. Ouviu um som de chapinhar rio abaixo, na direção que Lennie tinha tomado. Parou de assobiar e ficou prestando atenção.
Que idiota, coitado – disse em voz baixa e logo recomeçou a assobiar.
Logo Lennie voltou, atravessando o bosque ruidosamente. Carregava um galhinho de salgueiro na mão. George se sentou.
Muito bem – disse, brusco. – Pode me dá esse rato agora memo!
Mas Lennie fez uma elaborada pantomima de inocência.
Que rato, George? Num tem rato nenhum.
George esticou a mão.
Anda logo. Pode me dá. Ocê não engana ninguém.
Lennie hesitou, recuou, olhou inquieto para o bosque que margeava o rio, como se estivesse considerando a possibilidade de correr para a liberdade. George disse, com frieza:
Ocê vai me dá esse rato ou eu vô tê que te dá uma surra?
Te dá o que, George?
Ocê sabe muito bem o quê. Eu quero esse rato.
Lennie enfiou a mão no bolso com relutância. A voz tremeu um pouco:
Num sei por que que eu num posso ficá com ele. Esse rato num é de ninguém. Eu num robei. Achei jogado do lado da estrada.
A mão de George continuou estendida, cheia de decisão. Lentamente, como um cão terrier que não quer entregar uma bola ao dono, Lennie se aproximou, recuou, aproximou-se de novo. George estalou os dedos com força, e, a esse som, Lennie colocou o rato na mão dele.
Eu num tava fazendo nada de mau com ele, George. Só tava agradando.
George se levantou e jogou o rato o mais longe que conseguiu no meio do bosque, depois foi até a lagoa e lavou as mãos.
Seu bobo loco. Ocê acha que eu num vi que os seus pé tá tudo molhado porque ocê atravessô o rio pra buscá ele? – Ouviu o choro manhoso de Lennie e deu meia-volta. – Tá chorando que nem um bebê! Jesus Cristo! Um sujeito grande igual ocê.
O lábio de Lennie tremeu e lágrimas brotaram de seus olhos.
Ah, Lennie! – George colocou a mão no ombro de Lennie. – Num tirei d’ocê por maldade. Aquele rato num tá nada fresco, Lennie; e, além disso, ocê quebrô ele co’os seus agrado. Se ocê arrumá otro rato mais fresco, eu deixo ocê ficá com ele um pouquinho.
Lennie sentou-se no chão e deixou a cabeça cair, desalentado.
Num sei onde é que vai tê otro rato. Eu lembro de uma moça que sempre dava os rato dela pra mim… ela me dava todos os rato que ela tinha. Mais aquela moça num tá aqui.
George caçoou:
Moça, é? Ocê nem lembra quem era essa moça? Era a tua tia Clara, ela mesma. E ela parô de dá pr’ocê. Porque ocê sempre matava todos os rato.
Lennie olhou para ele com tristeza.
Eles era tão pequenininho – disse, como que pedindo desculpas. – Eu agradava eles e logo eles começava a mordê o meu dedo e eu apertava a cabeça deles um poco e logo eles morria… porque eles era pequenininho demais. Eu queria que a gente tivesse coelho logo, George. Eles num são assim tão pequeno.
Que se dane os coelho. E num dá pra confiá em te dá um rato vivo pr’ocê segurá na tua mão. Tua tia Clara deu pr’ocê um rato de borracha, mais ocê num quis sabê dele.
Ele num era bom de agradá – respondeu Lennie.
A chama do pôr do sol sumiu do topo das montanhas, e o anoitecer caiu sobre o vale, e a semiescuridão penetrou por entre os chorões e os plátanos. Uma grande carpa subiu até a superfície da lagoa, tomou um gole de ar e tornou a afundar misteriosamente na água escura, deixando na superfície d’ água anéis que foram se propagando. Lá em cima, as folhas começaram a farfalhar de novo, e pequenos sopros de algodão de salgueiro saíram voando e pousaram sobre a superfície da lagoa.
Ocê vai buscá aquela madera? – George quis saber. – Tem um monte ali, atrás daquele plátano. Madera de enchente. Agora vai lá buscá.
Lennie foi até atrás da árvore e trouxe um carregamento de folhas secas e galhos. Jogou tudo em cima da pilha de cinzas e voltou para buscar mais e mais. Já era quase noite. As asas de uma pomba sibilaram por sobre a água. George caminhou até a pilha da fogueira e acendeu as folhas secas. A chama estalou por entre os galhos e começou a trabalhar. George desamarrou a trouxa e tirou três latas de feijão lá de dentro. Ficou parado ao lado do fogo, bem perto das chamas, mas sem encostar nas labaredas.
Aqui tem fejão que chega pra quatro homem – George disse.
Lennie ficou observando-o através da fogueira. Disse, com muita paciência:
Eu gosto de comê com molho de tomate.
Bom, a gente não tem nada disso aqui – George explodiu. – Ocê sempre qué tudo que a gente num tem. Pelo amor de Deus, se eu tivesse sozinho, ia consegui vivê bem fácil. Ia arrumá um emprego e trabaiá, sem problema nenhum. Nenhuma confusão, e quando fosse o fim do meis, eu ia podê pegá meus cinquenta pau e ir pra cidade e comprá tudo que eu queria. Ah, eu ia podê passá a noite intera num putero. Ia podê comê em qualqué lugá que eu quisesse, num hotel ou qualqué otro lugá, e ia pedi qualqué coisa que me desse na telha. E ia podê fazê isso todo meis, que porcaria. Ia podê comprá um garrafão de uísque, ou ir numa casa de jogo e fazê uma partida de carta ou de sinuca.
Lennie se ajoelhou e olhou através do fogo para George, que estava bravo. E o rosto de Lennie foi tomado pelo terror.
E o que é que eu tenho? – George prosseguiu, furioso. – Eu tenho ocê! Ocê num consegue ficá em emprego nenhum e ainda me faiz perdê tudo que é emprego que eu arrumo. Só me faiz ficá andando de cima pra baixo sem pará o tempo intero. E isso aí nem é o pió de tudo. Ocê se mete em confusão. Ocê faiz umas coisa ruim e eu tenho que livrá a sua cara. – Sua voz se elevou em um quase grito. – Seu filho da puta loco. Ocê me mete em apuro o tempo todo. – Assumiu aquele trejeito elaborado de menininhas quando estão imitando umas as outras. – “Só queria pegá no vestido daquela moça… só queria agradá igual se fosse um rato…” Bom, como é que ela ia sabê qu’ocê só queria pegá no vestido dela? Ela desvia d’ocê e ocê continua segurando, como se fosse um rato. Ela grita e a gente precisa ficá o dia intero escondido em uma vala de irrigação, com uns sujeito atrás da gente, e a gente precisa fugi no meio da noite e sumi da região. Tem coisa assim o tempo todo… o tempo todo. Eu bem que queria podê enfiá ocê dentro duma jaula com um milhão de rato e dexá ocê lá se divertindo.
A raiva se esvaiu dele de repente. Olhou através da fogueira para o rosto angustiado de Lennie, e então olhou envergonhado para as chamas.
Já estava bem escuro, mas o fogo iluminava o tronco das árvores e os galhos recurvados acima deles. Lennie arrastou-se cuidadosamente em volta da fogueira até chegar perto de George. Sentou-se sobre os calcanhares. George virou as latas de feijão para que o outro lado ficasse no fogo. Fingiu não perceber que Lennie estava ali tão perto dele.
George – bem baixinho. Sem resposta. – George!
O que é qu’ocê qué?
Eu só tava brincando, George. Num quero molho de tomate nenhum. Eu num ia comê molho de tomate nem que tivesse um pote bem aqui do meu lado.
Se a gente tivesse molho de tomate, ocê ia podê comê um poco.
Mas eu num ia comê nada, George. Ia dexá tudo pr’ocê. Ocê ia podê cobri o seu fejão com ele e eu nem ia incostá.
George continuava olhando para a fogueira morosamente.
Quando eu fico pensando em tudo de bom que eu ia podê fazê se num tivesse ocê cumigo, eu fico loco. Nunca tenho paz.
Lennie continuava ajoelhado. Olhou para dentro da escuridão do outro lado do rio.
George, ocê qué que eu vô imbora e deixo ocê em paz?
Pra onde diabos é que ocê ia?
Bom, sei lá, eu ia. Eu podia ir pr’aquelas montanha ali. Pr’algum lugá onde desse pra achá uma caverna.
Ah é? E como é que ocê ia comê? Ocê num tem capacidade que chega pra achá alguma coisa pra comê.
Eu ia achá uma coisa, George. Num preciso de comida gostosa com molho de tomate. Ia ficá lá deitado no sol e ninguém ia fazê maldade cumigo. E quando eu achava um rato, eu ia podê ficá com ele. Ninguém ia tirá ele de mim.
George olhou para ele, severo e com ar de dúvida no rosto.
Eu fui mau, né?
Se ocê num qué sabê de mim, posso ir pras montanha e achá uma caverna. Posso ir imbora qualqué hora.
Num é isso… olha aqui! Eu só tava brincando, Lennie. Porque eu quero qu’ocê fique comigo. O problema co’os rato é qu’ocê sempre mata eles. – Fez uma pausa. – Vou te dizê uma coisa, Lennie. Na primera chance que tivé, arrumo um cachorrinho pr’ocê. Quem sabe, talvez ocê num vai consegui matá ele. Ia sê meió do que um rato. E ocê ia podê agradá ele mais forte.
Lennie evitou a isca. Tinha sentido que estava em vantagem.
Se ocê num qué sabê de mim, é só falá, e eu vô imbora pr’aquelas montanha bem ali… bem ali naquelas montanha pra vivê sozinho. E daí ninguém vai roubá rato nenhum de mim.
George disse:
Eu quero qu’ocê fica comigo, Lennie. Jesus Cristo, alguém ia atirá n’ocê achando que era um coiote se ocê tivesse sozinho. Nada disso, ocê fica comigo. Tua tia Clara num ia gostá se ocê ficasse andando por aí sozinho, apesar dela já tê morrido.
Lennie falou, todo engenhoso:
Me conta… igual que ocê fez antes.
Contá o quê?
Dos coelho.
George explodiu:
Ocê não vai me enrolá.
Lennie implorou:
Ah, George. Conta. Por favô, George. Igual que ocê fez antes.
Ocê gosta memo dessa história, né? Tudo bem, vô contá, e depois a gente vai jantá…A voz de George ficou mais profunda. Repetiu as palavras ritmadamente, como se já as tivesse proferido muitas vezes antes daquela.
Uns sujeito que nem a gente, que trabaia nas fazenda, é os sujeito mais sozinho do mundo. Essa gente num tem família. Essa gente num pertence a lugá nenhum. Eles vai até uma fazenda e trabaia pra ganhá um dinhero e daí vai pra cidade gastá o dinhero, e logo já tá lá, arrastando o rabo em otra fazenda. Essa gente num tem nada que esperá do futuro.
Lennie ficou deliciado.
É isso aí… é isso aí. Agora conta aquela parte da gente.
George prosseguiu.
Com a gente, num é assim. A gente tem futuro. A gente tem alguém com quem conversá, alguém que se importa co’a gente. A gente num precisa ficá sentado em bar nenhum gastando o nosso dinhero só porque num tem otro lugá pra ir. Se um desses sujeito vai pra cadeia, pode apodrecê lá que ninguém tá nem aí. Mas co’a gente é diferente.
Lennie interrompeu:
Mas isso num vai acontecê co’a gente! E por quê? Porque… porque eu tenho ocê pra cuidá de mim, e ocê tem eu pra cuidá d’ocê, e é por isso – riu de tanta alegria. – Agora pode continuá, George.
Ocê já decorô. Pode continuá sozinho.
Nada disso, ocê é que sabe contá. Eu isqueço umas coisa. Conta como é que vai sê.
Tudo bem. Um dia desse… a gente vai juntá um dinhero e vai comprá uma casinha e uns alquere de terra e uma vaca e uns porco e…
E vai vivê da terra – Lennie exclamou. – E vai tê coelho. Vai, George! Conta do que a gente vai tê no jardim e dos coelho nas gaiola e da chuva no inverno e do fogão, e da nata do leite que é tão grossa que a gente nem consegue cortá. Conta essas coisa, George.
Por que é qu’ocê num conta sozinho? Ocê já sabe tudo.
Nada disso… ocê que sabe contá. Num é a mesma coisa quando eu conto. Vai, George… Conta como é que eu cuido dos coelho.
Bom – George disse –, a gente vai tê uma horta bem grande e um vivero de coelho e umas galinha. E quando chovê no inverno, a gente só vai mandá o trabaio pro diabo, e a gente vai acendê o fogão e ficá do lado dele só ouvindo a chuva batê no telhado… que locura! – Pegou o canivete. – Num tenho mais tempo pra falá.
Enfiou o canivete ao redor da parte de cima de uma das latas, removeu a tampa e entregou para Lennie. Daí abriu outra lata. Tirou duas colheres do bolso lateral do casaco e deu uma para Lennie. Sentaram-se ao lado do fogo e encheram a boca de feijão e mastigaram com gosto. Alguns feijões escorregaram pelo canto da boca de Lennie. George fez um gesto com a colher.– O que é qu’ocê vai dizê amanhã, quando o patrão te perguntá as coisa?
Lennie parou de mastigar e engoliu. O rosto estava concentrado.
Eu… eu num vô falá… nenhuma palavra.
Muito bem! É isso aí, Lennie! Acho qu’ocê tá melhorando. Quando a gente consegui uns alquere de terra, vô podê dexá ocê cuidá dos coelho memo. Principalmente se ocê consegui lembrá das coisa desse jeito.
Lennie engasgou de tanto orgulho.
Eu vô lembrá – disse.
George fez outro gesto com a colher:
Olha, Lennie. Eu quero qu’ocê dê uma boa olhada nesse lugá aqui. Ocê vai consegui lembrá desse lugá, né? A fazenda fica a uns quinhentos metro por ali. É só segui o rio.
Claro – disse Lennie. – Eu vô lembrá disso. Eu num lembrei que num é pra falá nada?
Claro que lembrô. Bom, olha. Lennie… se por acaso ocê se metê em confusão como sempre acontece, quero qu’ocê volta direto pra cá e fica escondido no mato.
Eu vô me escondê no mato – disse Lennie, bem devagar.
Ocê se esconde no mato até eu vim te buscá. Vai consegui lembrá disso?
Claro que vô, George. Eu me escondo no mato até ocê chegá.
Mais ocê num vai se metê em confusão nenhuma, porque se isso acontecê, eu num vou dexá ocê cuidá dos coelho. – Jogou a lata vazia de feijão no mato.
Eu num vô me metê em confusão nenhuma, George. E num vô falá nenhuma palavra.
Tudo bem. Traiz a sua troxa aqui pra perto do fogo. Vai sê gostoso de durmi aqui. Olhando lá pra cima, pr’as folha. Pode pará de colocá mais madera na foguera. A gente vai dexá ela apagá sozinha.
Fizeram a cama em cima da areia e, à medida que as chamas foram diminuindo na fogueira, a esfera de luz foi ficando menor; os galhos recurvados desapareceram e só se via um brilho fraco no lugar em que estavam os troncos das árvores. Do meio da escuridão, Lennie chamou:
George… ocê já durmiu?
Num durmi. O que é que ocê qué?
A gente vai podê tê uns coelho de um monte de cor?
Claro que vamo – George respondeu, sonado. – Uns coelho vermelho e uns azul e uns verde, Lennie. Um milhão de coelho.
E eles vão sê peludo, George, igual eu vi na fera de Sacramento.
Claro, bem peludo.
Porque s’ocê quisé, eu também posso ir imbora, pra morá numa caverna.
Ocê também pode ir pro inferno – George respondeu. – Agora, vê se cala a boca.
A luz vermelha ia sumindo nas brasas. Lá em cima da montanha, ao lado do rio, um coiote uivou, e um cachorro respondeu da outra margem do riacho. As folhas dos plátanos cochichavam na fraca brisa da noite.

John Steinbeck, em Ratos e Homens

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