Alguns
quilômetros ao sul de Soledad, o rio Salinas aproxima-se do sopé
das colinas e fica bem profundo e verde. A água também é quente,
por deslizar, reluzente, sobre as areias amarelas banhadas pelo sol
antes de chegar à lagoa estreita. De um lado do rio, as encostas das
colinas sobem até as montanhas Gabilan, fortes e rochosas, mas, do
lado do vale, a água se faz acompanhar por uma fileira de árvores –
chorões que se renovam verdejantes a cada primavera, segurando nos
entroncamentos das folhas mais baixas os restos das enchentes de
inverno; e plátanos com troncos e galhos cobertos de manchas,
brancos e recurvados, que se arqueiam por sobre a lagoa. Na margem
arenosa sob as árvores, uma grossa camada de folhas se aglomera tão
seca que um lagarto que passe correndo por lá faz muito barulho.
Lebres saem do bosque para se acomodar sobre a areia ao cair da
noite, e a porção úmida das margens fica coberta com os rastros
noturnos dos guaxinins, com as almofadinhas espaçadas das patas dos
cães das fazendas, e com as pegadas em forma de V dos veadinhos que
vão até ali beber água no escuro.
Há
uma trilha entre os chorões e os plátanos, uma trilha bem
desgastada pelos garotos que vêm das fazendas para nadar na lagoa, e
desgastada pelos mendigos que descem cansados da estrada ao anoitecer
para se aninhar perto da água. Na frente do tronco baixo e
horizontal de um plátano gigante há uma pilha de cinzas formada por
muitas fogueiras antigas; o lugar do tronco em que os homens costumam
se sentar é liso.
O
anoitecer de um dia quente fez com que uma brisa começasse a soprar
por entre as folhas. A sombra ia subindo pelas montanhas, em direção
ao topo. Nas margens arenosas, as lebres se acomodaram como se fossem
pedrinhas cinzentas e esculpidas. E então, dos lados da autoestrada
estadual, veio o som de passos sobre as folhas de plátano secas. As
lebres saíram correndo em silêncio, em busca de abrigo. Uma garça
que ali descansava saiu voando rio abaixo. Por um instante o lugar
ficou sem vida, e então dois homens surgiram da trilha e passaram à
clareira ao lado da lagoa verde.
Haviam
caminhado em fila indiana pela trilha, e mesmo ali, em terreno
aberto, continuavam um atrás do outro. Ambos usavam calças de brim
e jaquetas de brim com botões de latão. Ambos usavam um chapéu
preto disforme e ambos carregavam cobertores enrolados bem apertados,
pendurados no ombro. O primeiro era pequeno e rápido, moreno de
rosto, com olhos inquietos e traços bem definidos e fortes. Cada
parte dele era bem definida: mãos pequenas e fortes, braços
delgados, nariz fino e ossudo. Atrás dele vinha sua antítese, um
homem enorme, sem formas definidas no rosto, com olhos grandes e
claros, com ombros caídos e amplos, que caminhava pesadamente,
arrastando um pouco os pés, da maneira como um urso arrasta as
patas. Os braços não balançavam ao lado do corpo, apenas
permaneciam soltos.
O
primeiro homem parou de repente na clareira, e seu seguidor quase
passou por cima dele. Tirou o chapéu, limpou a faixa interna com o
indicador e sacudiu a mão para se livrar da umidade. Seu enorme
companheiro deixou cair os cobertores, se jogou no chão e bebeu a
água da superfície da lagoa verde; bebeu com goles compridos,
fazendo barulho na água como se fosse um cavalo. O homenzinho parou
em pé ao seu lado, nervoso.
– Lennie!
– disse com severidade. – Lennie, pelo amor de Deus, num bebe
tanto assim.
Lennie
continuou a beber ruidosamente. O homenzinho se abaixou e o sacudiu
pelo ombro.
– Lennie.
Ocê vai se sentir mal, igual na noite passada.
Lennie
enfiou toda a cabeça na água, com chapéu e tudo, então se sentou
na margem e a água no chapéu pingou na jaqueta e escorreu pelas
costas.
– Foi
bom – disse. – Bebe um pouco, George. Bebe um golão. – Sorriu
alegremente.
George
soltou a alça da trouxa e a colocou com cuidado no chão:
– Num
sei se essa água é boa – disse. – Parece meio cheia de lodo.
Lennie
enfiou sua patarra na água e remexeu os dedos, fazendo com que a
água espirrasse em pequenos jorros; anéis se formaram e chegaram ao
outro lado da lagoa e então voltaram. Lennie ficou observando o
trajeto:
– Oia,
George. Oia o que eu fiz.
George
se ajoelhou ao lado da lagoa e bebeu com a mão em forma de concha,
em porções rápidas.
– O
gosto é normal – reconheceu. – Mas num parece corrente. A gente
nunca deve bebê água que num corre, Lennie – disse, inutilmente.
– Ocê
ia bebê água da sarjeta se tivesse com sede.
Jogou
uma porção de água no rosto e a espalhou com a mão, sob o queixo
e em volta do pescoço. Então recolocou o chapéu, deixou-se cair
sentado no chão, colocou os joelhos perto do corpo e os abraçou.
Lennie, que tinha observado tudo com atenção, imitou George com
exatidão. Deixou-se cair sentado no chão, puxou os joelhos para
perto do corpo e os abraçou, olhou para George para ver se tinha
feito certo. Puxou o chapéu mais um pouco por sobre os olhos, para
ficar igual ao chapéu de George.
George
ficou olhando morosamente para a água. Seus olhos estavam vermelhos
por causa do brilho do sol. Disse, bem bravo:
– A
gente bem que podia tê chegado direto na fazenda se aquele idiota
daquele motorista de ônibus soubesse o que tava falando. “Só uma
caminhadinha curtinha, saindo da estrada”, ele disse. “Só uma
caminhadinha curtinha.” Que diabo, foi mais de seis quilômetro,
isso sim! Ele não quis é pará na portera da fazenda, só isso.
Preguiçoso dimais pra estacioná. Tô aqui pensando que ele deve de
se achá bom dimais pra pará em Soledad também. Chuta a gente pra
fora e fala “só uma caminhadinha curtinha, saindo da estrada”.
Aposto que era mais que seis quilômetro. Que porcaria de dia quente.
Lennie
olhou para ele, todo tímido:
– George?
– O
que ocê qué?
– Pr’onde
é que a gente tá indo, George?
O
homenzinho puxou para baixo a aba do chapéu e olhou torto para
Lennie.
– Então,
ocê já isqueceu, foi? Vô tê que falá de novo, né? Jesus Cristo,
ocê é um idiota loco!
– Isqueci
– Lennie disse suavemente. – Eu tentei não isquecê. Juro por
Deus que tentei, George.
– Tudo
bem, tudo bem. Vô falá de novo. Não posso fazê nada. Parece que
eu passo o tempo todo falando as coisa pr’ocê, aí ocê isquece e
eu falo tudo de novo.
– Eu
tentei, tentei sim – Lennie disse. – Mas não adiantô nada. Eu
lembro daquilo dos coelho, George.
– Que
se dane os coelho. A única coisa que ocê consegue lembrá é esses
coelho. Tudo bem! Agora vê se ouve bem e dessa veiz ocê vai tê que
lembrá pra gente não se metê em encrenca. Ocê lembra de quando a
gente tava sentado naquela sarjeta da rua Howard e viu uma placa?
O
rosto de Lennie se abriu em um sorriso cheio de satisfação:
– Mas
claro que sim, George, lembro sim… mas… o que foi memo que a
gente fez depois? Lembro de umas moça que passô, e ocê disse…
ocê disse…
– Que
se dane o que eu disse. Ocê lembra que a gente entrou no escritório
do Murray e do Ready, e que eles deu pra gente uns cartão de trabaio
e umas passagem de ônibus?
– Ah,
claro, George. Agora eu lembrei. – Percorreu rapidamente com as
mãos os bolsos laterais do casaco. Disse bem baixinho:
– George…
o meu num tá aqui. Devo tê perdido em algum lugá. – Olhou para o
chão, desesperado.
– O
seu nunca ficou co’ocê, seu idiota loco. Os dois tão aqui comigo.
Ocê acha que eu ia dexá ocê carregá seu cartão de trabaio?Lennie
sorriu aliviado:
– Eu…
eu achei que tinha colocado no bolso. – Colocou a mão no bolso de
novo.
George
olhou para ele com severidade:
– O
que foi que ocê tirou aí desse bolso?
– Num
tem nada no meu bolso – Lennie disse, com esperteza.
– Eu
sei que num tem. Ocê tá segurando na mão. O que é qu’ocê tem
aí na mão… o que qu’ocê tá escondendo?
– Num
tem nada, não, George. Sério.
– Anda
logo, dá aqui.
Lennie
afastou de George a mão fechada:
– É
só um rato, George.
– Um
rato? Um rato vivo?
– Não.
Só um rato morto, George, num fui eu que matou. Sério! Eu achei.
Achei morto.
– Dá
aqui! – disse George.
– Ah,
deixa eu ficá com ele, George.
– Dá
aqui!
A
mão de Lennie obedeceu vagarosamente. George pegou o rato e jogou
por sobre a lagoa, para o outro lado, no meio do bosque.
– Pra
que é qu’ocê qué um rato morto, hein?
– Eu
fiquei agradando ele co’o dedão enquanto a gente ficou andando –
respondeu Lennie.
– Bom,
ocê não vai ficá agradando rato nenhum enquanto anda comigo. Agora
ocê lembra onde a gente tá indo?
Lennie
pareceu confuso e então, envergonhado, escondeu a cabeça entre os
joelhos:
– Isqueci
de novo.– Jesus Cristo – George disse, cheio de resignação. –
Bom… olha, a gente tá indo pr’uma fazenda igual àquela lá do
Norte, de onde a gente tá vindo.
– Lá
do Norte?
– De
Weed.
– Ah,
tá. Eu lembro. De Weed.
– A
fazenda pra onde a gente vai é logo ali, a uns quinhentos metro. A
gente vai lá falá co’o patrão. Então, vê bem… eu vô dá pra
ele os tíquete de trabaio, mas ocê num vai dá nenhum pio. Ocê só
vai ficá lá parado sem dizê nada. Se ele descobri o idiota loco
qu’ocê é, a gente não vai consegui trabaio nenhum, mas se ele vê
ocê trabaiá antes de ouvi ocê falá, pronto. Entendeu?
– Claro,
George, claro que entendi.
– Tudo
bem. Então, quando a gente for falá co’o patrão, o que é memo
que ocê vai dizê?
– Eu…
eu – Lennie estava pensando. O seu rosto ficou rígido de tanto
esforço. – Eu… eu num vô falá nada. Só vô ficá lá parado.
– Bom
garoto. É isso aí. Fala isso umas duas, treis veiz, pra tê certeza
que ocê num vai isquecê.
Lennie
murmurou para si mesmo, bem baixinho:
– Num
vô falá nada… Num vô falá nada… Num vô falá nada.
– Tudo
bem – George disse. – E ocê também num vai fazê nenhuma coisa
errada, igual qu’ocê feiz em Weed, viu?
Lennie
ficou com cara de quem não estava entendendo nada:
– Igual
eu fiz em Weed?
– Ah,
então ocê também isqueceu daquilo, é? Bom, eu é que num vô fazê
ocê lembrá, pr’ocê num fazê de novo.
Uma
luz de compreensão invadiu o rosto de Lennie.
– Eles
ixpulsô a gente de Weed – explodiu, cheio de triunfo.
– É,
foi memo, caramba – George disse, desgostoso. – A gente saiu
correndo. O pessoal tava memo atrás da gente, mas ninguém pegô a
gente.
Lennie
deu risadinhas alegres.
– Num
isqueci isso, pode tê certeza.
George
se deitou sobre a areia e cruzou as mãos por sob a nuca, e Lennie o
imitou, erguendo um pouco a cabeça para conferir se estava fazendo
certo.
– Caramba,
ocê dá o maió trabaio – George disse. – Eu podia tá me dando
muito bem se num tivesse ocê no meu pé. Eu ia podê levá uma vida
fácil e, vai sabê, podia até arrumá uma muié pra mim.
Por
um instante, Lennie ficou lá quieto, e daí disse, cheio de
esperança:
– A
gente vai trabaiá numa fazenda, George?
– É
isso aí. Isso ocê entendeu. Mas hoje a gente vai dormi aqui porque
eu quero.
O
dia estava indo embora rapidamente. Apenas o topo das montanhas
Gabilan queimava com a luz do sol que já tinha ido embora do vale.
Uma cobra-d’água deslizou pela lagoa, com a cabeça erguida como
um pequeno periscópio. Os juncos estremeciam um pouco por causa da
corrente. Ao longe, na direção da estrada, um homem gritou alguma
coisa, e outro homem gritou em resposta. Os galhos dos plátanos
farfalharam um pouco devido a uma brisa fraca que morreu
imediatamente.
– George…
por que é que a gente num vai até lá na fazenda arrumá uma janta?
Tem janta na fazenda.
George
rolou o corpo para o lado.
– Num
vô dá razão nenhuma pr’ocê. Eu gostei daqui. Amanhã a gente
vai lá trabaiá. Vi umas máquina de debulhá no caminho pra cá.
Isso qué dizê que a gente vai tê que ficá carregando saco de
cereal, a gente vai estourá as tripa. Hoje vô ficá aqui deitado
olhando pra cima. Gostei da ideia.
Lennie
ficou de joelhos e olhou para George:
– A
gente não vai jantá?
– Claro
que vai, se ocê fô buscá uns galho seco de salgueiro. Tenho treis
lata de fejão na minha troxa. Ocê arruma o fogo. Eu te dô um
fósfro quando a madera tivé pronta. Daí a gente isquenta o fejão
e janta.
Lennie
disse:
– Eu
gosto de comê fejão com molho de tomate.
– Bom,
a gente num tem molho de tomate nenhum. Vai lá buscá a madera. E
num vai ficá dando volta por aí. Logo, logo vai iscurecê.
Lennie
ficou de pé e desapareceu no meio do bosque. George ficou deitado
onde estava e assobiou baixinho para si mesmo. Ouviu um som de
chapinhar rio abaixo, na direção que Lennie tinha tomado. Parou de
assobiar e ficou prestando atenção.
– Que
idiota, coitado – disse em voz baixa e logo recomeçou a assobiar.
Logo
Lennie voltou, atravessando o bosque ruidosamente. Carregava um
galhinho de salgueiro na mão. George se sentou.
– Muito
bem – disse, brusco. – Pode me dá esse rato agora memo!
Mas
Lennie fez uma elaborada pantomima de inocência.
– Que
rato, George? Num tem rato nenhum.
George
esticou a mão.
– Anda
logo. Pode me dá. Ocê não engana ninguém.
Lennie
hesitou, recuou, olhou inquieto para o bosque que margeava o rio,
como se estivesse considerando a possibilidade de correr para a
liberdade. George disse, com frieza:
– Ocê
vai me dá esse rato ou eu vô tê que te dá uma surra?
– Te
dá o que, George?
– Ocê
sabe muito bem o quê. Eu quero esse rato.
Lennie
enfiou a mão no bolso com relutância. A voz tremeu um pouco:
– Num
sei por que que eu num posso ficá com ele. Esse rato num é de
ninguém. Eu num robei. Achei jogado do lado da estrada.
A
mão de George continuou estendida, cheia de decisão. Lentamente,
como um cão terrier que não quer entregar uma bola ao dono, Lennie
se aproximou, recuou, aproximou-se de novo. George estalou os dedos
com força, e, a esse som, Lennie colocou o rato na mão dele.
– Eu
num tava fazendo nada de mau com ele, George. Só tava agradando.
George
se levantou e jogou o rato o mais longe que conseguiu no meio do
bosque, depois foi até a lagoa e lavou as mãos.
– Seu
bobo loco. Ocê acha que eu num vi que os seus pé tá tudo molhado
porque ocê atravessô o rio pra buscá ele? – Ouviu o choro
manhoso de Lennie e deu meia-volta. – Tá chorando que nem um bebê!
Jesus Cristo! Um sujeito grande igual ocê.
O
lábio de Lennie tremeu e lágrimas brotaram de seus olhos.
– Ah,
Lennie! – George colocou a mão no ombro de Lennie. – Num tirei
d’ocê por maldade. Aquele rato num tá nada fresco, Lennie; e,
além disso, ocê quebrô ele co’os seus agrado. Se ocê arrumá
otro rato mais fresco, eu deixo ocê ficá com ele um pouquinho.
Lennie
sentou-se no chão e deixou a cabeça cair, desalentado.
– Num
sei onde é que vai tê otro rato. Eu lembro de uma moça que sempre
dava os rato dela pra mim… ela me dava todos os rato que ela tinha.
Mais aquela moça num tá aqui.
George
caçoou:
– Moça,
é? Ocê nem lembra quem era essa moça? Era a tua tia Clara, ela
mesma. E ela parô de dá pr’ocê. Porque ocê sempre matava todos
os rato.
Lennie
olhou para ele com tristeza.
– Eles
era tão pequenininho – disse, como que pedindo desculpas. – Eu
agradava eles e logo eles começava a mordê o meu dedo e eu apertava
a cabeça deles um poco e logo eles morria… porque eles era
pequenininho demais. Eu queria que a gente tivesse coelho logo,
George. Eles num são assim tão pequeno.
– Que
se dane os coelho. E num dá pra confiá em te dá um rato vivo
pr’ocê segurá na tua mão. Tua tia Clara deu pr’ocê um rato de
borracha, mais ocê num quis sabê dele.
– Ele
num era bom de agradá – respondeu Lennie.
A
chama do pôr do sol sumiu do topo das montanhas, e o anoitecer caiu
sobre o vale, e a semiescuridão penetrou por entre os chorões e os
plátanos. Uma grande carpa subiu até a superfície da lagoa, tomou
um gole de ar e tornou a afundar misteriosamente na água escura,
deixando na superfície d’ água anéis que foram se propagando. Lá
em cima, as folhas começaram a farfalhar de novo, e pequenos sopros
de algodão de salgueiro saíram voando e pousaram sobre a superfície
da lagoa.
– Ocê
vai buscá aquela madera? – George quis saber. – Tem um monte
ali, atrás daquele plátano. Madera de enchente. Agora vai lá
buscá.
Lennie
foi até atrás da árvore e trouxe um carregamento de folhas secas e
galhos. Jogou tudo em cima da pilha de cinzas e voltou para buscar
mais e mais. Já era quase noite. As asas de uma pomba sibilaram por
sobre a água. George caminhou até a pilha da fogueira e acendeu as
folhas secas. A chama estalou por entre os galhos e começou a
trabalhar. George desamarrou a trouxa e tirou três latas de feijão
lá de dentro. Ficou parado ao lado do fogo, bem perto das chamas,
mas sem encostar nas labaredas.
– Aqui
tem fejão que chega pra quatro homem – George disse.
Lennie
ficou observando-o através da fogueira. Disse, com muita paciência:
– Eu
gosto de comê com molho de tomate.
– Bom,
a gente não tem nada disso aqui – George explodiu. – Ocê sempre
qué tudo que a gente num tem. Pelo amor de Deus, se eu tivesse
sozinho, ia consegui vivê bem fácil. Ia arrumá um emprego e
trabaiá, sem problema nenhum. Nenhuma confusão, e quando fosse o
fim do meis, eu ia podê pegá meus cinquenta pau e ir pra cidade e
comprá tudo que eu queria. Ah, eu ia podê passá a noite intera num
putero. Ia podê comê em qualqué lugá que eu quisesse, num hotel
ou qualqué otro lugá, e ia pedi qualqué coisa que me desse na
telha. E ia podê fazê isso todo meis, que porcaria. Ia podê comprá
um garrafão de uísque, ou ir numa casa de jogo e fazê uma partida
de carta ou de sinuca.
Lennie
se ajoelhou e olhou através do fogo para George, que estava bravo. E
o rosto de Lennie foi tomado pelo terror.
– E
o que é que eu tenho? – George prosseguiu, furioso. – Eu tenho
ocê! Ocê num consegue ficá em emprego nenhum e ainda me faiz perdê
tudo que é emprego que eu arrumo. Só me faiz ficá andando de cima
pra baixo sem pará o tempo intero. E isso aí nem é o pió de tudo.
Ocê se mete em confusão. Ocê faiz umas coisa ruim e eu tenho que
livrá a sua cara. – Sua voz se elevou em um quase grito. – Seu
filho da puta loco. Ocê me mete em apuro o tempo todo. – Assumiu
aquele trejeito elaborado de menininhas quando estão imitando umas
as outras. – “Só queria pegá no vestido daquela moça… só
queria agradá igual se fosse um rato…” Bom, como é que ela ia
sabê qu’ocê só queria pegá no vestido dela? Ela desvia d’ocê
e ocê continua segurando, como se fosse um rato. Ela grita e a gente
precisa ficá o dia intero escondido em uma vala de irrigação, com
uns sujeito atrás da gente, e a gente precisa fugi no meio da noite
e sumi da região. Tem coisa assim o tempo todo… o tempo todo. Eu
bem que queria podê enfiá ocê dentro duma jaula com um milhão de
rato e dexá ocê lá se divertindo.
A
raiva se esvaiu dele de repente. Olhou através da fogueira para o
rosto angustiado de Lennie, e então olhou envergonhado para as
chamas.
Já
estava bem escuro, mas o fogo iluminava o tronco das árvores e os
galhos recurvados acima deles. Lennie arrastou-se cuidadosamente em
volta da fogueira até chegar perto de George. Sentou-se sobre os
calcanhares. George virou as latas de feijão para que o outro lado
ficasse no fogo. Fingiu não perceber que Lennie estava ali tão
perto dele.
– George
– bem baixinho. Sem resposta. – George!
– O
que é qu’ocê qué?
– Eu
só tava brincando, George. Num quero molho de tomate nenhum. Eu num
ia comê molho de tomate nem que tivesse um pote bem aqui do meu
lado.
– Se
a gente tivesse molho de tomate, ocê ia podê comê um poco.
– Mas
eu num ia comê nada, George. Ia dexá tudo pr’ocê. Ocê ia podê
cobri o seu fejão com ele e eu nem ia incostá.
George
continuava olhando para a fogueira morosamente.
– Quando
eu fico pensando em tudo de bom que eu ia podê fazê se num tivesse
ocê cumigo, eu fico loco. Nunca tenho paz.
Lennie
continuava ajoelhado. Olhou para dentro da escuridão do outro lado
do rio.
– George,
ocê qué que eu vô imbora e deixo ocê em paz?
– Pra
onde diabos é que ocê ia?
– Bom,
sei lá, eu ia. Eu podia ir pr’aquelas montanha ali. Pr’algum
lugá onde desse pra achá uma caverna.
– Ah
é? E como é que ocê ia comê? Ocê num tem capacidade que chega
pra achá alguma coisa pra comê.
– Eu
ia achá uma coisa, George. Num preciso de comida gostosa com molho
de tomate. Ia ficá lá deitado no sol e ninguém ia fazê maldade
cumigo. E quando eu achava um rato, eu ia podê ficá com ele.
Ninguém ia tirá ele de mim.
George
olhou para ele, severo e com ar de dúvida no rosto.
– Eu
fui mau, né?
– Se
ocê num qué sabê de mim, posso ir pras montanha e achá uma
caverna. Posso ir imbora qualqué hora.
– Num
é isso… olha aqui! Eu só tava brincando, Lennie. Porque eu quero
qu’ocê fique comigo. O problema co’os rato é qu’ocê sempre
mata eles. – Fez uma pausa. – Vou te dizê uma coisa, Lennie. Na
primera chance que tivé, arrumo um cachorrinho pr’ocê. Quem sabe,
talvez ocê num vai consegui matá ele. Ia sê meió do que um rato.
E ocê ia podê agradá ele mais forte.
Lennie
evitou a isca. Tinha sentido que estava em vantagem.
– Se
ocê num qué sabê de mim, é só falá, e eu vô imbora pr’aquelas
montanha bem ali… bem ali naquelas montanha pra vivê sozinho. E
daí ninguém vai roubá rato nenhum de mim.
George
disse:
– Eu
quero qu’ocê fica comigo, Lennie. Jesus Cristo, alguém ia atirá
n’ocê achando que era um coiote se ocê tivesse sozinho. Nada
disso, ocê fica comigo. Tua tia Clara num ia gostá se ocê ficasse
andando por aí sozinho, apesar dela já tê morrido.
Lennie
falou, todo engenhoso:
– Me
conta… igual que ocê fez antes.
– Contá
o quê?
– Dos
coelho.
George
explodiu:
– Ocê
não vai me enrolá.
Lennie
implorou:
– Ah,
George. Conta. Por favô, George. Igual que ocê fez antes.
– Ocê
gosta memo dessa história, né? Tudo bem, vô contá, e depois a
gente vai jantá…A voz de George ficou mais profunda. Repetiu as
palavras ritmadamente, como se já as tivesse proferido muitas vezes
antes daquela.
– Uns
sujeito que nem a gente, que trabaia nas fazenda, é os sujeito mais
sozinho do mundo. Essa gente num tem família. Essa gente num
pertence a lugá nenhum. Eles vai até uma fazenda e trabaia pra
ganhá um dinhero e daí vai pra cidade gastá o dinhero, e logo já
tá lá, arrastando o rabo em otra fazenda. Essa gente num tem nada
que esperá do futuro.
Lennie
ficou deliciado.
– É
isso aí… é isso aí. Agora conta aquela parte da gente.
George
prosseguiu.
– Com
a gente, num é assim. A gente tem futuro. A gente tem alguém com
quem conversá, alguém que se importa co’a gente. A gente num
precisa ficá sentado em bar nenhum gastando o nosso dinhero só
porque num tem otro lugá pra ir. Se um desses sujeito vai pra
cadeia, pode apodrecê lá que ninguém tá nem aí. Mas co’a gente
é diferente.
Lennie
interrompeu:
– Mas
isso num vai acontecê co’a gente! E por quê? Porque… porque eu
tenho ocê pra cuidá de mim, e ocê tem eu pra cuidá d’ocê, e é
por isso – riu de tanta alegria. – Agora pode continuá,
George.
– Ocê
já decorô. Pode continuá sozinho.
– Nada
disso, ocê é que sabe contá. Eu isqueço umas coisa. Conta como é
que vai sê.
– Tudo
bem. Um dia desse… a gente vai juntá um dinhero e vai comprá uma
casinha e uns alquere de terra e uma vaca e uns porco e…
– E
vai vivê da terra – Lennie exclamou. – E vai tê coelho. Vai,
George! Conta do que a gente vai tê no jardim e dos coelho nas
gaiola e da chuva no inverno e do fogão, e da nata do leite que é
tão grossa que a gente nem consegue cortá. Conta essas coisa,
George.
– Por
que é qu’ocê num conta sozinho? Ocê já sabe tudo.
– Nada
disso… ocê que sabe contá. Num é a mesma coisa quando eu conto.
Vai, George… Conta como é que eu cuido dos coelho.
– Bom
– George disse –, a gente vai tê uma horta bem grande e um
vivero de coelho e umas galinha. E quando chovê no inverno, a gente
só vai mandá o trabaio pro diabo, e a gente vai acendê o fogão e
ficá do lado dele só ouvindo a chuva batê no telhado… que
locura! – Pegou o canivete. – Num tenho mais tempo pra falá.
Enfiou
o canivete ao redor da parte de cima de uma das latas, removeu a
tampa e entregou para Lennie. Daí abriu outra lata. Tirou duas
colheres do bolso lateral do casaco e deu uma para Lennie.
Sentaram-se ao lado do fogo e encheram a boca de feijão e mastigaram
com gosto. Alguns feijões escorregaram pelo canto da boca de Lennie.
George fez um gesto com a colher.– O que é qu’ocê vai dizê
amanhã, quando o patrão te perguntá as coisa?
Lennie
parou de mastigar e engoliu. O rosto estava concentrado.
– Eu…
eu num vô falá… nenhuma palavra.
– Muito
bem! É isso aí, Lennie! Acho qu’ocê tá melhorando. Quando a
gente consegui uns alquere de terra, vô podê dexá ocê cuidá dos
coelho memo. Principalmente se ocê consegui lembrá das coisa desse
jeito.
Lennie
engasgou de tanto orgulho.
– Eu
vô lembrá – disse.
George
fez outro gesto com a colher:
– Olha,
Lennie. Eu quero qu’ocê dê uma boa olhada nesse lugá aqui. Ocê
vai consegui lembrá desse lugá, né? A fazenda fica a uns
quinhentos metro por ali. É só segui o rio.
– Claro
– disse Lennie. – Eu vô lembrá disso. Eu num lembrei que num é
pra falá nada?
– Claro
que lembrô. Bom, olha. Lennie… se por acaso ocê se metê em
confusão como sempre acontece, quero qu’ocê volta direto pra cá
e fica escondido no mato.
– Eu
vô me escondê no mato – disse Lennie, bem devagar.
– Ocê
se esconde no mato até eu vim te buscá. Vai consegui lembrá disso?
– Claro
que vô, George. Eu me escondo no mato até ocê chegá.
– Mais
ocê num vai se metê em confusão nenhuma, porque se isso acontecê,
eu num vou dexá ocê cuidá dos coelho. – Jogou a lata vazia de
feijão no mato.
– Eu
num vô me metê em confusão nenhuma, George. E num vô falá
nenhuma palavra.
– Tudo
bem. Traiz a sua troxa aqui pra perto do fogo. Vai sê gostoso de
durmi aqui. Olhando lá pra cima, pr’as folha. Pode pará de colocá
mais madera na foguera. A gente vai dexá ela apagá sozinha.
Fizeram
a cama em cima da areia e, à medida que as chamas foram diminuindo
na fogueira, a esfera de luz foi ficando menor; os galhos recurvados
desapareceram e só se via um brilho fraco no lugar em que estavam os
troncos das árvores. Do meio da escuridão, Lennie chamou:
– George…
ocê já durmiu?
– Num
durmi. O que é que ocê qué?
– A
gente vai podê tê uns coelho de um monte de cor?
– Claro
que vamo – George respondeu, sonado. – Uns coelho vermelho e uns
azul e uns verde, Lennie. Um milhão de coelho.
– E
eles vão sê peludo, George, igual eu vi na fera de Sacramento.
– Claro,
bem peludo.
– Porque
s’ocê quisé, eu também posso ir imbora, pra morá numa caverna.
– Ocê
também pode ir pro inferno – George respondeu. – Agora, vê se
cala a boca.
A
luz vermelha ia sumindo nas brasas. Lá em cima da montanha, ao lado
do rio, um coiote uivou, e um cachorro respondeu da outra margem do
riacho. As folhas dos plátanos cochichavam na fraca brisa da noite.
John Steinbeck, em Ratos e Homens
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