sexta-feira, 18 de outubro de 2024

O abate de um elefante


Em Moulmein, na Baixa Birmânia, eu era detestado por um grande número de pessoas — a única vez na vida que fui importante o suficiente para isso acontecer comigo. Eu era policial de subdivisão na cidade, e, de maneira mesquinha e aleatória, o sentimento antieuropeu era bastante acrimonioso. Ninguém tinha coragem de se amotinar, mas se uma mulher europeia andasse pelos bazares sozinha alguém provavelmente lhe cuspiria suco de bétel no vestido. Como policial, eu era um alvo óbvio, importunado toda vez que podiam fazer isso com segurança. Quando um birmanês ágil me passou uma rasteira no campo de futebol e o juiz (outro birmanês) desviou o olhar, a multidão explodiu numa gargalhada revoltante. Isso aconteceu mais de uma vez. No fim os rostos amarelos e sarcásticos dos jovens que me encaravam em toda parte, os insultos que gritavam para mim quando eu me achava a uma distância segura, tudo me dava nos nervos. Os jovens sacerdotes budistas eram os piores. Havia milhares deles na cidade, e davam a impressão de que nada tinham a fazer a não ser ficar parados nas esquinas zombando dos europeus.
Tudo isso era desconcertante e perturbador, porque naquela época eu já tinha concluído que o imperialismo era algo maligno e que quanto antes eu renunciasse ao emprego e saísse dali, tanto melhor. Na teoria — e, claro, no íntimo — eu era a favor dos birmaneses e contra os opressores, os britânicos. Quanto ao trabalho, eu o detestava mais profundamente do que talvez seja capaz de expressar. Os infelizes prisioneiros que se comprimiam nas fétidas celas das prisões, os rostos pardos e assustados dos condenados a longo prazo, os traseiros marcados com cicatrizes dos homens açoitados com bambus — tudo isso me oprimia com uma sensação de culpa insuportável. Mas eu não conseguia ver as coisas com discernimento. Era jovem, mal informado e tinha de pensar em meus problemas no silêncio total imposto a todo inglês no Oriente. Nem sequer sabia que o Império Britânico estava agonizando, muito menos que era bem melhor do que impérios mais recentes que caminhavam para substituí-lo. Sabia apenas que estava empatado entre o ódio pelo império que eu servia e minha ira contra os brutos perversos que tentavam tornar meu trabalho impossível. Com um lado da cabeça, eu pensava que a soberania britânica era uma tirania inquebrantável, algo imposto, in saecula saeculorum, contra a vontade dos povos humilhados; com o outro lado, pensava que o maior prazer do mundo seria enterrar uma baioneta nas entranhas dos sacerdotes budistas. Sentimentos como esses são consequências normais do imperialismo; pergunte a qualquer oficial anglo-indiano, se encontrar um de folga.
Um dia aconteceu uma coisa que, de maneira indireta, foi esclarecedora. Um incidente insignificante, mas que me deu uma ideia melhor da verdadeira natureza do imperialismo — dos verdadeiros motivos pelos quais governos despóticos agem. Numa manhã bem cedinho, o subinspetor de uma delegacia do outro lado da cidade me telefonou para dizer que um elefante estava destruindo um bazar. Poderia eu ir até lá e fazer alguma coisa? Eu não sabia o que poderia fazer, mas, querendo verificar o que acontecia, montei num pônei e rumei para lá. Levei comigo meu fuzil, um velho Winchester calibre quarenta e quatro, muito pequeno para matar um elefante, mas achei que o barulho seria útil in terrorem. Vários birmaneses me pararam no caminho e me contaram sobre as ações do elefante. Não era, claro, um elefante selvagem, e sim um elefante domesticado “enfurecido”. Havia sido acorrentado, como sempre ocorre com elefantes domesticados quando estão prestes a se enfurecer, porém na noite anterior arrebentara as correntes e escapara. Seu condutor, a única pessoa capaz de dominá-lo naquele estado, saíra em sua busca, mas havia seguido na direção errada e agora se achava a uma distância de doze horas de jornada, e de manhã o elefante reaparecera de repente na cidade. A população birmanesa não possuía armas e estava indefesa. Ele já havia destruído uma choupana de bambu, matado uma vaca, atacado uma barraca de frutas e devorado todo o seu estoque; havia ainda topado com a caminhonete coletora de lixo e, depois de o motorista saltar para fora e sair correndo, tombara a caminhonete e a golpeara com violência.
O subinspetor birmanês e alguns guardas indianos me esperavam no bairro em que o elefante fora visto. Era um bairro bastante pobre, um labirinto de choupanas de bambu miseráveis, cobertas com folhas de palmeira, que serpenteavam numa encosta íngreme. Lembro-me de que era uma manhã saturada de nuvens no princípio das chuvas. Começamos a perguntar às pessoas para onde o elefante havia ido e, como de costume, não obtivemos nenhuma informação clara. Isso é o que invariavelmente ocorre no Oriente; uma história sempre parece clara a distância, mas quanto mais nos aproximamos do lugar dos acontecimentos, mais vaga ela vai ficando. Algumas pessoas disseram que o elefante havia ido numa direção, outras disseram que havia ido em outra, algumas afirmaram não ter sequer ouvido falar de um elefante. Eu estava quase chegando à conclusão de que a história toda não passava de uma grande mentira, quando ouvimos gritos não muito longe dali. Soou um berro escandalizado e alto de “Saia daqui, menino! Vá embora já!”, e uma velha de chicote na mão surgiu dando a volta no canto de uma choupana, a enxotar furiosa um bando de crianças nuas. Outras mulheres apareceram, estalando a língua e vociferando; sem dúvida havia alguma coisa lá que as crianças não deveriam ver. Dei a volta no canto da choupana e vi o corpo de um homem morto estendido no barro. Era um indiano, um cule dravidiano pardo, quase nu, morto não mais do que alguns minutos antes. As pessoas disseram que o elefante o atacara de surpresa no canto da choupana, pegara-o com a tromba, pusera a pata sobre suas costas e o prensara contra o chão. Era a estação das chuvas, a terra estava fofa, e o rosto dele abrira uma vala de uns trinta centímetros de profundidade, e o corpo, uma de uns dois metros de comprimento. Estava de bruços, com os braços abertos, a cabeça bruscamente virada para o lado. O rosto estava coberto de barro, os olhos arregalados, os dentes arreganhados, com uma expressão de agonia insuportável. (A propósito, nunca me diga que um morto parecia tranqüilo. A maioria dos cadáveres que vi parecia diabólica.) A fricção da pata do enorme animal arrancara a pele das costas do homem de forma tão perfeita como se tira a pele de um coelho. Assim que vi o morto, mandei um ordenança à casa de um amigo para tomar emprestado um fuzil capaz de abater um elefante. Eu já tinha enviado o pônei de volta, por não querer que enlouquecesse de medo e me derrubasse caso farejasse o elefante.
O ordenança voltou dali a alguns minutos com um fuzil e cinco cartuchos. Nesse ínterim, alguns birmaneses haviam chegado, contando-nos que o elefante estava nos arrozais, a apenas uns cem metros dali. Quando comecei a caminhar, praticamente todos os habitantes do bairro saíram aos bandos das casas e me seguiram. Tinham visto o fuzil e gritavam com alvoroço que eu abateria o elefante. Não tinham mostrado muito interesse no elefante quando ele estava apenas destruindo as casas, mas agora que seria abatido era diferente. Significava um pouco de diversão para eles, como seria para uma multidão de ingleses; além disso, queriam a carne. Isso me deixou um tanto preocupado. Não tinha a intenção de abater o elefante — só pedi que buscassem o fuzil para me defender, se necessário —, e é sempre enervante ter uma multidão seguindo a gente. Desci a colina, parecendo e me sentindo um bobo, com o fuzil no ombro e o bando cada vez maior de pessoas acotoveladas atrás de mim. Na base da colina, depois de as choupanas terem ficado para trás, havia uma estrada de cascalhos, e mais adiante, um terreno lodoso de arrozais que se estendia por uns mil metros, ainda não arado, mas encharcado com os primeiros aguaceiros e pontilhado de capins grosseiros. O elefante estava a uns oitenta metros da estrada, o lado esquerdo voltado para nós. Não prestou a menor atenção na chegada da multidão. Arrancava punhados de capim, batia-os contra os joelhos para limpá-los e os enfiava na boca.
Eu tinha parado na estrada. Assim que vi o elefante, tive certeza absoluta de que não deveria abatê-lo. É uma coisa grave matar um elefante que trabalha — comparável a destruir uma maquinaria enorme e cara —, e era evidente que não se devia fazer isso, caso se pudesse evitar. E daquela distância, comendo pacificamente, o elefante não parecia mais perigoso do que uma vaca. Pensei no momento, e penso hoje, que seu ataque de “fúria” já estava passando; nesse caso, apenas andaria a esmo, inofensivo, até o condutor voltar e pegá-lo. Além do mais, eu não queria de modo algum abatê-lo. Resolvi observá-lo um pouco, até ter certeza de que não se enfureceria de novo, e depois voltaria para casa.
Naquele momento, porém, olhei para a multidão que havia me seguido. Era um mundo de gente, no mínimo duas mil pessoas, e aumentando a cada minuto. Bloqueava a estrada dos dois lados por uma longa distância. Olhei para os rostos amarelos acima das roupas vistosas — rostos felizes e agitados com aquele pouco de diversão, todos certos de que o elefante seria abatido. Observavam-me como observariam um feiticeiro prestes a fazer algum truque. Não gostavam de mim, mas com o fuzil mágico nas mãos eu merecia por um instante ser observado. E de repente me dei conta de que deveria afinal abater o elefante. Esperavam isso de mim, e teria de fazê-lo; podia sentir as duas mil vontades me apressando de forma irresistível. E foi naquele momento, parado com o fuzil nas mãos, que compreendi pela primeira vez o vazio, a futilidade do domínio dos brancos no Oriente. Ali estava eu, o branco com uma arma de fogo, diante de uma multidão de nativos desarmados — aparentemente o ator principal da cena, mas na realidade apenas um fantoche absurdo empurrado de um lado para outro pela vontade daqueles rostos amarelos atrás de mim. Entendi naquele momento que quando o branco se torna tirano é sua própria liberdade que ele destrói. Transforma-se numa espécie de boneco oco e presunçoso, a figura convencionada de um saíbe. Porque é a condição de seu poder que passe a vida tentando impressionar os “nativos”, e assim, em todas as crises, terá de fazer o que os “nativos” esperam dele. Ele usa uma máscara, e seu rosto se ajusta a ela. Eu tinha de abater o elefante. Comprometi-me a fazê-lo quando mandei buscar o fuzil. Um saíbe tem de agir como um saíbe; tem de parecer resoluto, saber o que quer e definir coisas. Ter chegado até ali, fuzil na mão, com duas mil pessoas caminhando atrás de mim, e depois recuar frouxamente, nada tendo feito — não, isso era impossível. A multidão zombaria de mim. E minha vida inteira, a vida de todos os brancos no Oriente, era um longo esforço do qual não se devia zombar.
Mas eu não queria abater o elefante. Observava-o bater os feixes de capim contra os joelhos, com aquele ar de avó preocupada que os elefantes têm. A mim parecia um assassínio abatê-lo. Naquela idade, eu não tinha escrúpulos em matar animais, porém nunca havia abatido um elefante e nunca o desejara. (De certa forma sempre parece pior matar um animal grande.) Além disso, havia que levar em consideração o dono do animal. Vivo, o elefante valia no mínimo cem libras esterlinas; morto, teria apenas o valor das presas — cinco libras esterlinas, possivelmente. No entanto eu precisava agir rápido. Virei-me para uns birmaneses aparentemente experientes que estavam lá quando cheguei e perguntei como o elefante havia se comportado. Todos responderam a mesma coisa: não prestaria atenção na gente se o deixássemos em paz, mas atacaria se chegássemos muito perto.
Ficou bastante claro para mim o que eu deveria fazer. Deveria me aproximar do elefante a uma distância, digamos, de vinte e cinco metros e pôr à prova seu comportamento. Se atacasse, eu poderia atirar. Se não prestasse atenção em mim, seria seguro deixá-lo até o condutor voltar. Porém eu também sabia que não faria isso. Era pouco hábil com um fuzil, e o chão era de um barro mole em que se afundava a cada passo. Se o elefante atacasse e eu errasse o alvo, teria a mesma oportunidade de escapar que um sapo debaixo de um rolo compressor. Mesmo assim não pensava na minha pele em especial, só nos rostos amarelos atentos atrás de mim. Porque naquele momento, com a multidão a me observar, não sentia um medo comum, como sentiria se estivesse sozinho. Um branco não deve demonstrar medo na frente dos “nativos”; e assim, em geral, não tem medo. O único pensamento em minha cabeça era que, se algo desse errado, aqueles dois mil birmaneses me veriam perseguido, pego, esmagado e reduzido a um cadáver de dentes arreganhados como aquele indiano no topo da colina. E, se isso acontecesse, seria bem provável que alguns deles rissem. Isso não seria bom. Havia apenas uma alternativa. Meti os cartuchos no depósito do fuzil e me deitei na estrada para poder mirar melhor.
A multidão se imobilizou, e inúmeras gargantas soltaram um suspiro profundo, baixo e feliz, como de pessoas que veem a cortina do teatro enfim se erguer. Teriam afinal um pouco de diversão. O fuzil era um belo objeto alemão com ponto de mira de retículo de fios cruzados. Naquele momento eu não sabia que, ao abater um elefante, deve-se atirar para cortar uma barra imaginária que vai de um ouvido a outro. Deveria, portanto, uma vez que o elefante estava de lado, ter mirado o ouvido; na verdade mirei vários centímetros à frente dele, achando que o cérebro estaria mais adiante.
Quando puxei o gatilho, não ouvi o estrondo nem senti o coice — nunca se sente quando se atinge o alvo —, mas ouvi o barulho infernal de alegria que estourou da multidão. Naquele instante, num espaço de tempo bem curto, mesmo para um projétil chegar lá, uma mudança misteriosa e terrível se deu no elefante. Ele não se agitou nem tombou, mas cada traço de seu corpo se alterou. Parecia de repente ferido, contraído, extremamente velho, como se o espantoso impacto do projétil o tivesse paralisado sem derrubar. Por fim, depois do que pareceu muito tempo — devem ter sido uns cinco segundos —, ele cedeu, fraco, sobre os joelhos. A boca babou. Uma enorme senilidade pareceu tomar conta dele. Era possível imaginá-lo com mil anos de idade. Atirei de novo no mesmo ponto. No segundo tiro, ele não caiu, mas se firmou com desesperada lentidão sobre as patas e se manteve de pé, combalido, as pernas fraquejando e a cabeça pendendo. Atirei uma terceira vez. Foi o tiro de misericórdia. Era possível ver a agonia sacudir-lhe o corpo inteiro e arrancar-lhe das pernas o último resquício de força. Mas ao tombar pareceu por um momento que se levantava, porque, quando as pernas traseiras cederam, ele deu a impressão de se elevar como uma enorme pedra, a tromba erguendo-se em direção ao céu como uma árvore. Ele barriu, pela primeira e última vez. E em seguida caiu, a barriga voltada para mim, com um estrondo que pareceu estremecer até mesmo o chão em que eu estava deitado.
Levantei-me. Os birmaneses já passavam correndo pelo barro. Era evidente que o elefante jamais voltaria a se erguer, mas não estava morto. Respirava de forma cadenciada, com longos arquejos estrondosos, o volumoso flanco a se expandir e retrair dolorosamente. A boca estava escancarada — pude enxergar em seu interior cavernas de uma garganta rosa-claro. Esperei um longo tempo que ele morresse, mas a respiração não enfraquecia. Por fim disparei os dois projéteis restantes no ponto em que pensei que o coração deveria estar. O sangue grosso jorrou dele como veludo vermelho, e ainda assim ele não morreu. O corpo nem sequer se contraiu quando os projéteis o atingiram, a respiração torturada prosseguiu sem uma pausa. Estava morrendo, muito devagar e numa grande agonia, porém em algum mundo distante de mim em que nem mesmo um projétil poderia mais lhe fazer mal. Senti que tinha de pôr um fim àquele barulho medonho. A mim parecia horrendo ver um animal enorme deitado lá, sem forças para se mexer e no entanto sem forças para morrer, sem que eu fosse capaz de matá-lo. Mandei buscar meu fuzil pequeno e despejei projétil atrás de projétil em seu coração e em sua garganta. Pareceram não ter efeito. Os arquejos torturados continuaram com a mesma regularidade de um ponteiro de relógio.
No fim não consegui suportar mais e fui embora. Soube depois que levou meia hora para ele morrer. Os birmaneses chegaram com dah e cestas antes mesmo de eu ir, e me contaram que, à tarde, tinham pelado o corpo quase até os ossos.
Depois, claro, houve discussões intermináveis sobre o abate do elefante. O dono ficou furioso, mas era apenas um indiano e nada podia fazer. Além do mais, legalmente eu fizera a coisa certa, pois um elefante furioso deve ser morto, como um cão raivoso, se o dono não o controlar. Entre os europeus, a opinião se dividiu. Os mais velhos disseram que eu estava certo, os mais jovens, que era uma lástima terrível abater um elefante por ele ter matado um cule, porque um elefante vale bem mais do que um maldito cule de Coringhee. E mais tarde fiquei contente de que o cule estivesse morto; fornecia-me a razão legal e pretexto suficiente para que eu tivesse abatido o elefante. Muitas vezes me perguntei se alguém percebeu que fiz o que fiz unicamente para evitar parecer um bobo.

George Orwell, em Dentro da baleia e outros ensaios

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