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O
vale do Salinas fica no norte da Califórnia. É um pântano comprido
e estreito entre duas cadeias de montanhas, e o rio Salinas coleia e
serpenteia pelo centro até desaguar na baía de Monterey.
Lembro
os nomes da minha infância para ervas e flores secretas. Lembro onde
vivem os sapos e a que hora os pássaros acordam no verão — o
cheiro das árvores e das estações — a fisionomia das pessoas,
seu jeito de andar e até o seu cheiro. A memória dos odores é
muito rica.
Lembro
que as montanhas Gabilan a leste do vale eram montanhas claras e
alegres, cheias de sol, de vida e de uma espécie de convite que dava
vontade de subir por seus contrafortes, quase a mesma vontade que se
tinha de subir ao colo de uma mãe adorada. Eram montanhas que nos
acenavam com o amor da relva dourada. As montanhas de Santa Lúcia se
alçavam ao céu a oeste e separavam o vale do mar aberto, e elas
eram escuras e soturnas — hostis e perigosas. Sempre senti pavor do
oeste e amor pelo leste. De onde tirei essa ideia, eu não sei dizer,
a não ser que a manhã tenha passado sobre os picos das Gabilan e a
noite se ocultado atrás das cristas das Santas Lúcias. Pode ser que
o nascimento e a morte do dia tivessem algo a ver com o meu
sentimento em relação às duas cadeias de montanhas.
De
ambos os lados do vale, pequenos regatos desciam das gargantas das
montanhas e caíam no leito do rio Salinas. No inverno de anos
chuvosos, as torrentes vinham em jorros e enchiam tanto o rio que às
vezes ele se agitava e espumava, as barrancas repletas, e aí então
se tornava um destruidor. O rio arrancava as sebes das terras
cultivadas e levava consigo hectares inteiros de plantação;
derrubava celeiros e casas, que saíam aos pedaços flutuando para
longe. Encurralava o gado, porcos e carneiros, afogando-os em suas
águas marrons lamacentas e carregando-os para o mar. Então, quando
chegava o final da primavera, o rio encolhia e os bancos de areia
apareciam em suas margens. E no verão o rio mal chegava a correr.
Ficavam algumas poças nos cantos dos redemoinhos mais profundos
junto às ribanceiras mais altas. Espinheiros e relvas voltavam a
crescer e os salgueiros se empertigavam com destroços da inundação
em seus galhos mais altos. O Salinas era apenas um rio sazonal. O sol
do verão o empurrava para o subsolo. Não era um grande rio, mas era
o único que tínhamos, e nos orgulhávamos dele — como era
perigoso num inverno chuvoso e como era seco num verão árido.
Podemos nos orgulhar de qualquer coisa, se ela é tudo o que temos.
Quanto menos se tem, talvez mais precisemos nos orgulhar.
O
chão do vale do Salinas, entre as cadeias de montanhas e abaixo dos
contrafortes, é plano porque este vale era o fundo de uma enseada de
cento e cinquenta quilômetros mar adentro. A foz do rio em Moss
Landing foi, séculos atrás, a entrada deste longo braço-de-mar.
Uma vez, a uns oitenta quilômetros de distância do mar, meu pai
perfurou um poço no vale. A broca encontrou primeiro terra, depois
cascalho, e por fim areia branca do mar cheia de conchas e até
pedaços de ossos de baleia. Havia seis metros de areia e depois
terra negra de novo, até um pedaço de sequoia, aquela madeira
imperecível que não apodrece. Antes do braço-de-mar, o vale devia
ter sido uma floresta. E aquelas coisas tinham acontecido bem debaixo
dos nossos pés. Parecia-me às vezes à noite que eu podia sentir o
mar e, antes dele, a floresta de sequoias.
Nos
vastos hectares planos do vale a terra era profunda e fértil. Era
preciso apenas um inverno rico de chuva para que ela explodisse em
gramíneas e flores. As flores da primavera num ano chuvoso eram
incríveis. Todo o chão do vale e as encostas ficavam atapetados de
tremoços e papoulas. Certa vez uma mulher me disse que as flores
coloridas pareceriam mais vibrantes quando se acrescentavam flores
brancas para dar definição às cores. Cada pétala de tremoço é
emoldurada de branco, de modo que um campo de tremoços é mais azul
do que se pode imaginar. E vinha entremeado de salpicos de papoulas
da Califórnia. Estas têm uma cor flamejante — não laranja, nem
ouro, mas, se o ouro puro fosse líquido e pudesse produzir um creme,
aquele creme dourado poderia ser da cor das papoulas. Quando acabava
a sua temporada, era a vez da mostarda amarela, que crescia bem alta.
Quando meu avô chegou ao vale, a mostarda era tão alta que, de um
homem a cavalo, só aparecia a cabeça sobre as flores amarelas. Nos
terrenos elevados, a relva era entremeada de botões-de-ouro,
margaridas e violetas amarelas de centro preto. E um pouco adiante na
estação, era a vez das vassourinhas-da-índia vermelhas e amarelas.
Estas eram as flores dos locais abertos expostos ao sol.
Debaixo
dos carvalhos, sombreados e escuros, floresciam as avencas que
exalavam um perfume agradável, e debaixo das ribanceiras cheias de
musgo dos cursos de água pendiam inumeráveis fileiras de samambaias
e tinhorões. Havia ainda campainhas, minúsculas lanternas, de um
branco cremoso e aparência quase pecaminosa, e eram tão raras e
mágicas que uma criança, ao encontrar uma delas, se sentia premiada
e especial o dia inteiro.
Quando
junho chegava, o relvado definhava e ficava marrom, e as colinas
assumiam um tom marrom que não era bem marrom, mas uma mistura de
ouro, açafrão e vermelho — uma cor indescritível. E a partir daí
até as próximas chuvas, a terra secava e os riachos deixavam de
correr. Rachaduras apareciam no solo. O rio Salinas afundava sob a
sua areia. O vento varria o vale, levantando poeira e palha, e ficava
mais forte e mais duro à medida que descia para o sul. E parava à
noite. Era um vento rascante e nervoso e as partículas de poeira
cortavam a pele de um homem e queimavam seus olhos. Homens que
trabalhavam nos campos usavam óculos de motociclista e amarravam
lenços cobrindo o nariz para se protegerem do pó.
A
terra do vale era profunda e rica, mas as encostas só tinham uma
camada de terra não mais espessa do que as raízes do capim; e,
quanto mais se subia o morro, mais ralo ficava o solo, espetado de
pedras, até que na divisa era apenas uma espécie de cascalho seco
que oferecia um reflexo ofuscante do sol quente.
Falei
dos anos ricos em que as chuvas eram generosas. Mas havia os anos
secos também e eles disseminavam o terror no vale. A água cumpria
um ciclo de trinta anos. Havia cinco ou seis anos de chuva
maravilhosos, com uma precipitação de 500 a 600 milímetros, e a
vegetação explodia da terra. Vinham depois seis ou sete anos muito
bons, com uma precipitação de chuva de 300 a 400 milímetros. E
vinham depois os anos secos, e às vezes caíam apenas de 150 a 200
milímetros de água. A terra secava e a vegetação não medrava,
com poucos centímetros de altura, e grandes espaços áridos
salpicavam o vale. Os carvalhos pareciam ásperos e a artemísia se
acinzentava. A terra rachava, as fontes secavam e o gado mordiscava
apaticamente galhos ressequidos. Então os fazendeiros e os criadores
de gado ficavam cheios de desgosto pelo vale do Salinas. As vacas
emagreciam e às vezes morriam de fome. As pessoas tinham de ir até
suas fazendas buscar água em barris só para terem o que beber.
Algumas famílias vendiam tudo o que tinham por quase nada e iam
embora. E nos anos de seca as pessoas se esqueciam dos anos ricos e
durante os anos de boa chuva elas perdiam toda a lembrança dos anos
secos. Era sempre assim.
John Steinbeck, em A leste do Éden
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