quarta-feira, 9 de outubro de 2024

A leste do Éden | 1


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O vale do Salinas fica no norte da Califórnia. É um pântano comprido e estreito entre duas cadeias de montanhas, e o rio Salinas coleia e serpenteia pelo centro até desaguar na baía de Monterey.
Lembro os nomes da minha infância para ervas e flores secretas. Lembro onde vivem os sapos e a que hora os pássaros acordam no verão — o cheiro das árvores e das estações — a fisionomia das pessoas, seu jeito de andar e até o seu cheiro. A memória dos odores é muito rica.
Lembro que as montanhas Gabilan a leste do vale eram montanhas claras e alegres, cheias de sol, de vida e de uma espécie de convite que dava vontade de subir por seus contrafortes, quase a mesma vontade que se tinha de subir ao colo de uma mãe adorada. Eram montanhas que nos acenavam com o amor da relva dourada. As montanhas de Santa Lúcia se alçavam ao céu a oeste e separavam o vale do mar aberto, e elas eram escuras e soturnas — hostis e perigosas. Sempre senti pavor do oeste e amor pelo leste. De onde tirei essa ideia, eu não sei dizer, a não ser que a manhã tenha passado sobre os picos das Gabilan e a noite se ocultado atrás das cristas das Santas Lúcias. Pode ser que o nascimento e a morte do dia tivessem algo a ver com o meu sentimento em relação às duas cadeias de montanhas.
De ambos os lados do vale, pequenos regatos desciam das gargantas das montanhas e caíam no leito do rio Salinas. No inverno de anos chuvosos, as torrentes vinham em jorros e enchiam tanto o rio que às vezes ele se agitava e espumava, as barrancas repletas, e aí então se tornava um destruidor. O rio arrancava as sebes das terras cultivadas e levava consigo hectares inteiros de plantação; derrubava celeiros e casas, que saíam aos pedaços flutuando para longe. Encurralava o gado, porcos e carneiros, afogando-os em suas águas marrons lamacentas e carregando-os para o mar. Então, quando chegava o final da primavera, o rio encolhia e os bancos de areia apareciam em suas margens. E no verão o rio mal chegava a correr. Ficavam algumas poças nos cantos dos redemoinhos mais profundos junto às ribanceiras mais altas. Espinheiros e relvas voltavam a crescer e os salgueiros se empertigavam com destroços da inundação em seus galhos mais altos. O Salinas era apenas um rio sazonal. O sol do verão o empurrava para o subsolo. Não era um grande rio, mas era o único que tínhamos, e nos orgulhávamos dele — como era perigoso num inverno chuvoso e como era seco num verão árido. Podemos nos orgulhar de qualquer coisa, se ela é tudo o que temos. Quanto menos se tem, talvez mais precisemos nos orgulhar.
O chão do vale do Salinas, entre as cadeias de montanhas e abaixo dos contrafortes, é plano porque este vale era o fundo de uma enseada de cento e cinquenta quilômetros mar adentro. A foz do rio em Moss Landing foi, séculos atrás, a entrada deste longo braço-de-mar. Uma vez, a uns oitenta quilômetros de distância do mar, meu pai perfurou um poço no vale. A broca encontrou primeiro terra, depois cascalho, e por fim areia branca do mar cheia de conchas e até pedaços de ossos de baleia. Havia seis metros de areia e depois terra negra de novo, até um pedaço de sequoia, aquela madeira imperecível que não apodrece. Antes do braço-de-mar, o vale devia ter sido uma floresta. E aquelas coisas tinham acontecido bem debaixo dos nossos pés. Parecia-me às vezes à noite que eu podia sentir o mar e, antes dele, a floresta de sequoias.
Nos vastos hectares planos do vale a terra era profunda e fértil. Era preciso apenas um inverno rico de chuva para que ela explodisse em gramíneas e flores. As flores da primavera num ano chuvoso eram incríveis. Todo o chão do vale e as encostas ficavam atapetados de tremoços e papoulas. Certa vez uma mulher me disse que as flores coloridas pareceriam mais vibrantes quando se acrescentavam flores brancas para dar definição às cores. Cada pétala de tremoço é emoldurada de branco, de modo que um campo de tremoços é mais azul do que se pode imaginar. E vinha entremeado de salpicos de papoulas da Califórnia. Estas têm uma cor flamejante — não laranja, nem ouro, mas, se o ouro puro fosse líquido e pudesse produzir um creme, aquele creme dourado poderia ser da cor das papoulas. Quando acabava a sua temporada, era a vez da mostarda amarela, que crescia bem alta. Quando meu avô chegou ao vale, a mostarda era tão alta que, de um homem a cavalo, só aparecia a cabeça sobre as flores amarelas. Nos terrenos elevados, a relva era entremeada de botões-de-ouro, margaridas e violetas amarelas de centro preto. E um pouco adiante na estação, era a vez das vassourinhas-da-índia vermelhas e amarelas. Estas eram as flores dos locais abertos expostos ao sol.
Debaixo dos carvalhos, sombreados e escuros, floresciam as avencas que exalavam um perfume agradável, e debaixo das ribanceiras cheias de musgo dos cursos de água pendiam inumeráveis fileiras de samambaias e tinhorões. Havia ainda campainhas, minúsculas lanternas, de um branco cremoso e aparência quase pecaminosa, e eram tão raras e mágicas que uma criança, ao encontrar uma delas, se sentia premiada e especial o dia inteiro.
Quando junho chegava, o relvado definhava e ficava marrom, e as colinas assumiam um tom marrom que não era bem marrom, mas uma mistura de ouro, açafrão e vermelho — uma cor indescritível. E a partir daí até as próximas chuvas, a terra secava e os riachos deixavam de correr. Rachaduras apareciam no solo. O rio Salinas afundava sob a sua areia. O vento varria o vale, levantando poeira e palha, e ficava mais forte e mais duro à medida que descia para o sul. E parava à noite. Era um vento rascante e nervoso e as partículas de poeira cortavam a pele de um homem e queimavam seus olhos. Homens que trabalhavam nos campos usavam óculos de motociclista e amarravam lenços cobrindo o nariz para se protegerem do pó.
A terra do vale era profunda e rica, mas as encostas só tinham uma camada de terra não mais espessa do que as raízes do capim; e, quanto mais se subia o morro, mais ralo ficava o solo, espetado de pedras, até que na divisa era apenas uma espécie de cascalho seco que oferecia um reflexo ofuscante do sol quente.
Falei dos anos ricos em que as chuvas eram generosas. Mas havia os anos secos também e eles disseminavam o terror no vale. A água cumpria um ciclo de trinta anos. Havia cinco ou seis anos de chuva maravilhosos, com uma precipitação de 500 a 600 milímetros, e a vegetação explodia da terra. Vinham depois seis ou sete anos muito bons, com uma precipitação de chuva de 300 a 400 milímetros. E vinham depois os anos secos, e às vezes caíam apenas de 150 a 200 milímetros de água. A terra secava e a vegetação não medrava, com poucos centímetros de altura, e grandes espaços áridos salpicavam o vale. Os carvalhos pareciam ásperos e a artemísia se acinzentava. A terra rachava, as fontes secavam e o gado mordiscava apaticamente galhos ressequidos. Então os fazendeiros e os criadores de gado ficavam cheios de desgosto pelo vale do Salinas. As vacas emagreciam e às vezes morriam de fome. As pessoas tinham de ir até suas fazendas buscar água em barris só para terem o que beber. Algumas famílias vendiam tudo o que tinham por quase nada e iam embora. E nos anos de seca as pessoas se esqueciam dos anos ricos e durante os anos de boa chuva elas perdiam toda a lembrança dos anos secos. Era sempre assim.

John Steinbeck, em A leste do Éden

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