Trata-se
de dona Maria Eglantina – amorosíssima avó de muitos netos – e
que vivia indo ao que ela chamava, como se mastigasse um suculento
morango, “ao meu médico”. A esse médico ela telefonava ao
primeiro sinal de alguma cor mais acentuada na face, sugerindo um
exame de sangue que, evidentemente, lhe era negado. Não é
necessário dizer: o médico já não aguentava mais e engolia a
profissão de médico bastante dificilmente. Uma vez dona Eglantina
teve lá o seu embaraço gástrico e pôs em alarme toda a enorme
família, incluindo genros e noras e crianças assustadas. Resultado
perfeito: tirar uma radiografia do estômago e radiografia
significava-lhe o máximo do esforço médico. Diante da radiografia
perfeita, o médico – cheio até a garganta – se revelou um
diabólico: nada lhe receitou. E ela?
– Mas
nem ao menos uma pilulazinha, meu doutor?
Ele
severo, causticante e inapelável:
– Nada,
minha senhora, hoje não lhe dou nada! Com perdão da palavra,
arrume-se como puder.
Diante
daquele inesperado mau humor, dona Eglantina pensou e pensou e pensou
até finalmente resolver: neste dia o médico devia certamente ter
brigado com a própria mulher. Não desconfiava nem de longe que era
ela mesma que havia bafejado o médico com sua poderosa força
maléfica. Aliás, fora disso, era uma pessoa boníssima.
No
dia seguinte sentia-se tão bem como qualquer um de nós e confundiu
tudo: achava que ficara boa por ter sido radiografada. Guardou a
radiografia com carinho e de quando em quando espiava-a com um prazer
todo inexplicável por palavras: então era assim bonitinha que ela
era por dentro? Mas que riqueza oculta, a dela, que riqueza profunda!
Pena que somente a família inteira tivesse visto. Telefonou para o
médico a fim de agradecer-lhe. Quanto ao médico, bem, todo ser
humano tem dentro de si essa abundância que, ai de nós, às vezes
apodrece. Ele quase apodreceu.
(Eu,
mera escrivã, devo acrescentar que a história de dona Maria
Eglantina está sendo acompanhada pela urgente orquestração de
vários violinos finíssimos, entrecortados aqui e acolá por um
“piu, piu, piu”. É que, enquanto moça, costumava cantar
modinhas para as visitas e agora quando abre a boca sai o inopinado:
piu, piu, piu.)
Também
porque a cara senhora tinha no corpo o feitio de um pinto: pernas
extremamente finas que se emendavam numa total ausência de quadril e
esse é que aos poucos tomava volume inusitado no peito. Quanto a
braços – eram braços magros de quem nunca voou. E trinava “piu,
piu, piu” enquanto fazia uma imperdoavelmente malfeita omelete para
o seu resignado marido. Sem falar que fazia omelete murcha e triste,
mantendo os cabelos enrolados em “bigudis” e com a cara toda
coberta de Hipoglós. O marido, este, só comia nessas tétricas
circunstâncias porque tinha muita fome e com fome de homem não se
brinca. Senão, amargurado, passaria necessidade. Devo informar que a
pomada Hipoglós é matéria engorduradíssima, altamente brilhante e
que algumas senhoras a usam para lubrificar a pele, só que não na
frente dos maridos.
O
marido – tipo taurino – era corretor da Bolsa de Valores e vivia
atormentado pelas mesmas idênticas perguntas até de quase
estranhos: “Diga-me aqui, como é? Está na alta ou na baixa?”
Quanto
a dona Maria Eglantina estava sempre na altíssima. E na “alta”
era-lhe o marido aguentar suas imaginosas, flutuantes e farfalhantes
doenças. Também a mim ela me fazia viver na altíssima, de tanta
delicadeza incomodativa:
– Coma
um pouquinho de pudinzinho com gelatininha!
– Não
quero não, senhora, obrigada.
– Quer
sim senhora! Você está negando só por fazer cerimônia!
– Olha,
dona Maria Eglantina, eu disse que não-quero-não-obrigada. Muito
o-bri-ga-da.
– Como
não?!
Eu
prometi para mim mesma: morro e não como o tal pudinzinho. Mas além
de ser de marcha a ré ela era ainda por cima contramão e avisou-me
enviesadamente de través:
– Vou
lhe dar umas frutinhas para você levar para sua casa!
– Obrigada,
detesto frutas.
– Então
umas tangerinazinhas!
– Desculpe,
mas eu as abomino.
Qual
é o fim deste contundente diálogo? Levei cabisbaixa o embrulho de
tangerinas que lá estão na minha copa me olhando, vítimas
inocentes da bondade de dona Eglantina.
Lá
um dia – perdido entre mil outros – me contou uma coisa que não
era de doença nem de pudinzinho: era uma coisa muito antiga.
Disse-me que quando era pequena não se chamava álcool de álcool:
chamavam-no lindamente de “espírito de vinho”. Como eram
delicados os antigos.
Ela
me achava tão agudamente encantadora que tornava a minha vida
insuportável. Por exemplo: acontece que eu não gosto, quando falam
comigo, que me peguem. Pois ela pegava: e não havia como fugir. Tive
que pagar caro pela novidade tão bonita do espírito de vinho.
Acertaram: comi um pouco de pudinzinho. Que aliás, tinha gosto de
papelão ou de borracha macia ou de meia suja de homem, embora eu não
tenha jamais experimentado tais estranhos sabores. Eu mal pude comer,
tão vigiada era pelos olhos faruscantes dessa poderosa madame.
As
circunstâncias faziam com que me fosse impossível não vê-la. O
que fazer? Resolvi submeter-me a só dar a cada dia uma chegada na
sua casa, para satisfazê-la da necessidade que sentia por mim. Então
ela me pega e me despega, ela me torce, ela me contorce, e de mim,
fruto esmagado, escorre um líquido grosso como sangue meloso. Este
meu sangue meloso que ela bebe.
Bem...Mas
houve um dia especial quando aconteceu algo extraordinário que me
vingou – com a vantagem de não me dar sentimento de culpa pois não
participei do evento.
A
situação foi a seguinte: dona Maria Eglantina Tavares Pires
Cordeiro estava de pé, na calçada da rua, perto de um poste, à
espera que abrisse o sinal verde que lhe permitisse atravessar a rua.
Junto a ela, um rapaz distraído, que sinal demorado aquele.
Ninguém
sabe como aconteceu. Tenho vontade de rir e de me dolorir ao mesmo
tempo. É que o rapaz resolveu pegar alguma coisa no bolso e, não se
sabe por quê – talvez para mandar parar um táxi – retirou a mão
muito bruscamente. Tão bruscamente que, com o dorso da mão, ele
esbofeteou violentamente a face esquerda da surpreendidíssima
senhora. O tapa foi um só, mas valeu. Uma grossa e plena bofetada.
Como se fosse fatídica.
O
rapaz e dona Eglantina ficaram se olhando, ambos aterrorizados. Ela
de olhos esbugalhados e ele, passados o susto e a surpresa, começou
a desculpar-se completamente canhestro:
– Mas...
mas eu lhe juro, minha senhora! Eu lhe juro que foi sem querer! Eu ia
apenas chamar o táxi! Não compreendo o que aconteceu. Pelo amor de
Deus, me perdoe!... Não sei explicar.
É.
Mas
eu sei explicar o que aconteceu.
E
não foi sem querer. Tenho a única explicação possível. É que o
anjo da guarda de dona Eglantina se enjoou dela de súbito e deu-lhe
uma bofetada memorável usando como instrumento a mão inocente do
rapaz. Como uma palmada lascada no traseiro macio de uma criança.
Ela – que era bondosa – gaguejou o seu perdão para o rapaz. Não
sei o que lhe disse. Mas resume-se em: piu, piu, piu.
Sem
comentários.
Não,
um comentário, sim. O anjo da guarda se arrependeu porque ninguém
tem culpa de ser chata. E, por intermédio de uma brisa fresca que
veio do mar, esse anjo com a mão de veludo acariciou a face magoada.
E eu digo amém. Porque eu lhe perdoei: só quem é extremamente
carente é que se transforma numa dona Eglantina. E digo com ela
docemente: piu, piu, piu.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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