domingo, 1 de setembro de 2024

Será intolerância minha ou foi uma bofetada? (Desculpem o título tão comprido mas era necessário)

Trata-se de dona Maria Eglantina – amorosíssima avó de muitos netos – e que vivia indo ao que ela chamava, como se mastigasse um suculento morango, “ao meu médico”. A esse médico ela telefonava ao primeiro sinal de alguma cor mais acentuada na face, sugerindo um exame de sangue que, evidentemente, lhe era negado. Não é necessário dizer: o médico já não aguentava mais e engolia a profissão de médico bastante dificilmente. Uma vez dona Eglantina teve lá o seu embaraço gástrico e pôs em alarme toda a enorme família, incluindo genros e noras e crianças assustadas. Resultado perfeito: tirar uma radiografia do estômago e radiografia significava-lhe o máximo do esforço médico. Diante da radiografia perfeita, o médico – cheio até a garganta – se revelou um diabólico: nada lhe receitou. E ela?
Mas nem ao menos uma pilulazinha, meu doutor?
Ele severo, causticante e inapelável:
Nada, minha senhora, hoje não lhe dou nada! Com perdão da palavra, arrume-se como puder.
Diante daquele inesperado mau humor, dona Eglantina pensou e pensou e pensou até finalmente resolver: neste dia o médico devia certamente ter brigado com a própria mulher. Não desconfiava nem de longe que era ela mesma que havia bafejado o médico com sua poderosa força maléfica. Aliás, fora disso, era uma pessoa boníssima.
No dia seguinte sentia-se tão bem como qualquer um de nós e confundiu tudo: achava que ficara boa por ter sido radiografada. Guardou a radiografia com carinho e de quando em quando espiava-a com um prazer todo inexplicável por palavras: então era assim bonitinha que ela era por dentro? Mas que riqueza oculta, a dela, que riqueza profunda! Pena que somente a família inteira tivesse visto. Telefonou para o médico a fim de agradecer-lhe. Quanto ao médico, bem, todo ser humano tem dentro de si essa abundância que, ai de nós, às vezes apodrece. Ele quase apodreceu.
(Eu, mera escrivã, devo acrescentar que a história de dona Maria Eglantina está sendo acompanhada pela urgente orquestração de vários violinos finíssimos, entrecortados aqui e acolá por um “piu, piu, piu”. É que, enquanto moça, costumava cantar modinhas para as visitas e agora quando abre a boca sai o inopinado: piu, piu, piu.)
Também porque a cara senhora tinha no corpo o feitio de um pinto: pernas extremamente finas que se emendavam numa total ausência de quadril e esse é que aos poucos tomava volume inusitado no peito. Quanto a braços – eram braços magros de quem nunca voou. E trinava “piu, piu, piu” enquanto fazia uma imperdoavelmente malfeita omelete para o seu resignado marido. Sem falar que fazia omelete murcha e triste, mantendo os cabelos enrolados em “bigudis” e com a cara toda coberta de Hipoglós. O marido, este, só comia nessas tétricas circunstâncias porque tinha muita fome e com fome de homem não se brinca. Senão, amargurado, passaria necessidade. Devo informar que a pomada Hipoglós é matéria engorduradíssima, altamente brilhante e que algumas senhoras a usam para lubrificar a pele, só que não na frente dos maridos.
O marido – tipo taurino – era corretor da Bolsa de Valores e vivia atormentado pelas mesmas idênticas perguntas até de quase estranhos: “Diga-me aqui, como é? Está na alta ou na baixa?”
Quanto a dona Maria Eglantina estava sempre na altíssima. E na “alta” era-lhe o marido aguentar suas imaginosas, flutuantes e farfalhantes doenças. Também a mim ela me fazia viver na altíssima, de tanta delicadeza incomodativa:
Coma um pouquinho de pudinzinho com gelatininha!
Não quero não, senhora, obrigada.
Quer sim senhora! Você está negando só por fazer cerimônia!
Olha, dona Maria Eglantina, eu disse que não-quero-não-obrigada. Muito o-bri-ga-da.
Como não?!
Eu prometi para mim mesma: morro e não como o tal pudinzinho. Mas além de ser de marcha a ré ela era ainda por cima contramão e avisou-me enviesadamente de través:
Vou lhe dar umas frutinhas para você levar para sua casa!
Obrigada, detesto frutas.
Então umas tangerinazinhas!
Desculpe, mas eu as abomino.
Qual é o fim deste contundente diálogo? Levei cabisbaixa o embrulho de tangerinas que lá estão na minha copa me olhando, vítimas inocentes da bondade de dona Eglantina.
Lá um dia – perdido entre mil outros – me contou uma coisa que não era de doença nem de pudinzinho: era uma coisa muito antiga. Disse-me que quando era pequena não se chamava álcool de álcool: chamavam-no lindamente de “espírito de vinho”. Como eram delicados os antigos.
Ela me achava tão agudamente encantadora que tornava a minha vida insuportável. Por exemplo: acontece que eu não gosto, quando falam comigo, que me peguem. Pois ela pegava: e não havia como fugir. Tive que pagar caro pela novidade tão bonita do espírito de vinho. Acertaram: comi um pouco de pudinzinho. Que aliás, tinha gosto de papelão ou de borracha macia ou de meia suja de homem, embora eu não tenha jamais experimentado tais estranhos sabores. Eu mal pude comer, tão vigiada era pelos olhos faruscantes dessa poderosa madame.
As circunstâncias faziam com que me fosse impossível não vê-la. O que fazer? Resolvi submeter-me a só dar a cada dia uma chegada na sua casa, para satisfazê-la da necessidade que sentia por mim. Então ela me pega e me despega, ela me torce, ela me contorce, e de mim, fruto esmagado, escorre um líquido grosso como sangue meloso. Este meu sangue meloso que ela bebe.
Bem...Mas houve um dia especial quando aconteceu algo extraordinário que me vingou – com a vantagem de não me dar sentimento de culpa pois não participei do evento.
A situação foi a seguinte: dona Maria Eglantina Tavares Pires Cordeiro estava de pé, na calçada da rua, perto de um poste, à espera que abrisse o sinal verde que lhe permitisse atravessar a rua. Junto a ela, um rapaz distraído, que sinal demorado aquele.
Ninguém sabe como aconteceu. Tenho vontade de rir e de me dolorir ao mesmo tempo. É que o rapaz resolveu pegar alguma coisa no bolso e, não se sabe por quê – talvez para mandar parar um táxi – retirou a mão muito bruscamente. Tão bruscamente que, com o dorso da mão, ele esbofeteou violentamente a face esquerda da surpreendidíssima senhora. O tapa foi um só, mas valeu. Uma grossa e plena bofetada. Como se fosse fatídica.
O rapaz e dona Eglantina ficaram se olhando, ambos aterrorizados. Ela de olhos esbugalhados e ele, passados o susto e a surpresa, começou a desculpar-se completamente canhestro:
Mas... mas eu lhe juro, minha senhora! Eu lhe juro que foi sem querer! Eu ia apenas chamar o táxi! Não compreendo o que aconteceu. Pelo amor de Deus, me perdoe!... Não sei explicar.
É.
Mas eu sei explicar o que aconteceu.
E não foi sem querer. Tenho a única explicação possível. É que o anjo da guarda de dona Eglantina se enjoou dela de súbito e deu-lhe uma bofetada memorável usando como instrumento a mão inocente do rapaz. Como uma palmada lascada no traseiro macio de uma criança. Ela – que era bondosa – gaguejou o seu perdão para o rapaz. Não sei o que lhe disse. Mas resume-se em: piu, piu, piu.
Sem comentários.
Não, um comentário, sim. O anjo da guarda se arrependeu porque ninguém tem culpa de ser chata. E, por intermédio de uma brisa fresca que veio do mar, esse anjo com a mão de veludo acariciou a face magoada. E eu digo amém. Porque eu lhe perdoei: só quem é extremamente carente é que se transforma numa dona Eglantina. E digo com ela docemente: piu, piu, piu.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

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