quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Por que escrevo


Desde muito pequeno, talvez com cinco ou seis anos de idade, eu sabia que, quando crescesse, seria escritor. Mais ou menos entre dezessete e vinte e quatro anos, tentei abandonar essa ideia, embora ciente de que estava indo contra minha verdadeira natureza e de que cedo ou tarde teria de tomar juízo e escrever livros.
Éramos três irmãos, eu o do meio, mas havia um intervalo de cinco anos entre um e outro, e mal vi meu pai antes dos oito anos. Por esse e outros motivos, eu era um pouco solitário e logo adquiri modos peculiares e pouco simpáticos, que me tornaram malquisto durante toda a minha vida escolar. Tinha o hábito de menino solitário de inventar histórias e travar conversas com pessoas imaginárias, e acho que desde o início minhas ambições literárias se confundiram com o sentimento de ser isolado e subestimado. Sabia que tinha habilidade com as palavras e capacidade para enfrentar fatos desagradáveis, e sentia que isso criava uma espécie de mundo particular em que podia compensar fracassos da vida cotidiana. No entanto, o volume de textos sérios — quer dizer, de intenção séria — que produzi ao longo da infância e da adolescência não somava meia dúzia de páginas. Aos quatro ou cinco anos escrevi meu primeiro poema, que minha mãe anotou enquanto eu ditava. Dele nada me lembro, a não ser que era sobre um tigre e o tigre tinha “dentes iguais a uma cadeira” — uma expressão razoável, mas acho que o poema era plágio de “Tigre, tigre”, de William Blake. Aos onze, quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial (1914-8), escrevi um poema patriótico que foi publicado no jornal local, e outro dois anos mais tarde, sobre a morte do marechal-de-campo Kitchner de Cartum [Horatio Herbert]. Um pouco mais velho, escrevi alguns maus “poemas sobre a natureza”, em estilo georgiano, em geral inacabados. Em duas ocasiões também tentei escrever um conto que foi um tremendo fracasso. Esse foi o total do pretenso trabalho sério que pus no papel ao longo de todos aqueles anos.
Entretanto, durante esse período sempre estive envolvido, de certo modo, em atividades literárias. Em primeiro lugar, havia as incumbências que eu produzia com rapidez e facilidade, sem muito prazer. Afora o trabalho escolar, escrevi vers d’occasion, poemas semicômicos que eu compunha com uma velocidade que hoje me parece espantosa — aos catorze, escrevi uma peça toda rimada, à maneira de Aristófanes, em cerca de uma semana —, e ajudei a editar revistas escolares, impressas e manuscritas. Essas revistas eram a coisa mais ridícula que se pode imaginar, e tive muito menos problemas com elas do que tenho hoje com o jornalismo mais pretensioso. Mas, paralelamente a tudo isso, por quinze anos ou mais fiz um tipo de exercício literário diferente: era a composição de uma “história” contínua sobre mim mesmo, uma espécie de diário que só existia na minha cabeça. Acredito que seja um hábito comum em crianças e adolescentes. Quando pequeno, eu costumava imaginar que era, digamos, Robin Hood, e me concebia como o herói de aventuras emocionantes, mas em pouco tempo minha “história” abandonou seu narcisismo primário e se tornou cada vez mais uma simples descrição do que eu fazia e das coisas que via. Durante minutos, às vezes, me passava pela cabeça este tipo de coisa: “Ele abriu a porta com ímpeto e entrou na sala. Um feixe amarelo de luz solar, infiltrando-se pelas cortinas de musselina, incidia obliquamente sobre a mesa, onde uma caixa de fósforos, semi-aberta, estava ao lado do tinteiro. Com a mão direita no bolso, ele foi até a janela. Lá embaixo, na rua, um gato malhado perseguia uma folha seca”, e assim por diante. Esse hábito continuou até mais ou menos os vinte e cinco anos, durante toda a minha fase não literária. Embora tivesse de procurar, e de fato procurava, as palavras certas, parecia que me empenhava nesse esforço descritivo quase a contragosto, obedecendo a uma espécie de compulsão que vinha de fora. Suponho que a “história” tenha refletido os estilos dos vários escritores que admirei em diferentes épocas, mas, tanto quanto me lembro, tinha sempre a mesma qualidade descritiva meticulosa.
Por volta dos dezesseis anos, de repente descobri o prazer das meras palavras, quer dizer, dos sons e associações de palavras. Os versos de Paraíso perdido [Livro ii, vs. 1021-2], de John Milton,

Ele então com dificuldade e dura labuta
Prosseguiu: com dificuldade e labuta ele,

que hoje não me parecem tão maravilhosos, deram-me um calafrio na espinha; e a grafia hee em vez de he era um prazer a mais. Quanto à necessidade de descrever coisas, eu já sabia tudo a respeito. Está claro, portanto, o tipo de livro que eu queria escrever, até onde se pode dizer que eu queria escrever livros naquela época. Queria escrever romances naturalistas imensos com finais infelizes, cheios de descrições detalhadas e de símiles impressionantes, e também cheios de passagens floreadas em que as palavras fossem usadas em parte por causa do som. De fato, o primeiro romance que concluí, Burmese days [Dias birmaneses], escrito aos trinta anos, mas planejado muito antes, é bem esse tipo de livro.
Forneço todos esses antecedentes porque acho que não se pode avaliar o que move um escritor sem uma noção de seu desenvolvimento inicial. O assunto será determinado pela época em que ele vive — isso é verdade ao menos em épocas tumultuosas e revolucionárias como a nossa —, mas antes de começar a escrever ele já terá adquirido uma atitude emocional da qual jamais se livrará de todo. A tarefa é, sem dúvida, disciplinar o temperamento e evitar ficar empacado em alguma etapa imatura ou em algum estado de ânimo perverso: mas, se se livrar completamente das influências iniciais, terá aniquilado o impulso para escrever. Pondo de lado a necessidade da subsistência, creio que há quatro grandes motivos para escrever, ao menos para escrever prosa. Eles existem em diferentes graus em cada escritor, e num dado escritor as proporções variarão de quando em quando, conforme a atmosfera em que ele vive. São eles:
1. Puro egoísmo. O desejo de ser engenhoso, de ser comentado, de ser lembrado após a morte, de se desforrar de adultos que o desdenharam na infância e por aí afora. É uma falsidade fazer de conta que este não é um motivo, e um motivo forte. Escritores compartilham esta característica com cientistas, artistas, políticos, advogados, soldados, homens de negócios bem-sucedidos — em suma, toda a camada superior da humanidade. A grande massa de seres humanos não tem um egoísmo agudo. Mais ou menos depois dos trinta, abandonam a ambição individual — em muitos casos, de fato, quase abandonam inteiramente a noção de serem indivíduos — e vivem sobretudo para os outros, ou simplesmente se deixam sufocar pelo trabalho enfadonho. Mas também existe a minoria de pessoas talentosas e obstinadas decididas a viver a vida até o fim, e os escritores pertencem a essa classe. Devo dizer que escritores sérios são, de modo geral, mais vaidosos e egocêntricos do que jornalistas, embora menos interessados em dinheiro.
2. Entusiasmo estético. A percepção da beleza no mundo externo ou, de outro lado, nas palavras e em seu arranjo correto. Prazer no impacto de um som sobre outro, na firmeza de uma boa prosa ou no ritmo de uma boa história. O desejo de compartilhar uma experiência é valioso e não se deve deixar escapar. O motivo estético é muito débil numa porção de escritores, mas mesmo um panfleteiro ou um escritor de livros didáticos terá palavras e frases prediletas que lhe agradam por razões não utilitárias; ou terá preferências por tipografia, largura de margens e assim por diante. Acima do nível de um guia ferroviário, nenhum livro está inteiramente isento de considerações estéticas.
3. Impulso histórico. O desejo de ver as coisas como elas são, de encontrar fatos verídicos e guardá-los para o uso da posteridade.
4. Propósito político — a palavra “político” entendida aqui em seu sentido mais amplo. O desejo de lançar o mundo em determinada direção, de mudar as idéias das pessoas sobre o tipo de sociedade que deveriam se esforçar para alcançar. Também neste caso ninguém está verdadeiramente isento de tendências políticas. A opinião de que arte não deveria ter a ver com política é em si mesma uma atitude política.
Pode-se perceber como esses diferentes impulsos são antagônicos e variam de pessoa para pessoa, de época para época. Por natureza — considerando “natureza” o estado a que se chega quando se fica adulto —, sou uma pessoa para quem os três primeiros têm mais importância do que o quarto. Numa época de paz, poderia ter escrito livros floreados ou meramente descritivos e ficado quase alheio a minhas lealdades políticas. De qualquer forma, fui forçado a me tornar uma espécie de panfleteiro. Primeiro, passei cinco anos numa profissão inadequada (na Polícia Imperial Indiana, na Birmânia), depois agüentei a pobreza e a sensação de fracasso. Isso aumentou minha aversão natural à autoridade e me fez ficar pela primeira vez totalmente consciente da existência das classes trabalhadoras, e o trabalho na Birmânia me dera um entendimento da natureza do imperialismo: mas essas experiências não bastaram para me dar uma orientação política precisa. Depois veio Hitler, a Guerra Civil Espanhola etc. Ao fim de 1935, ainda não tinha conseguido chegar a uma decisão firme. Lembro-me de um poemeto que escrevi nessa ocasião, expressando meu dilema:

Feliz pároco eu teria sido
Duzentos anos atrás,
Para pregar a condenação eterna
E observar a nogueira crescer,
Mas nascido, ai!, em tempos ruins,
Perdi aquele paraíso aprazível,
Pois a penugem cresceu no lábio superior
E clérigos são todos bem escanhoados.
E mais tarde os tempos foram bons,
Éramos fáceis de agradar,
Embalávamos os problemas no sono
No aconchego das árvores.
Todos ignorantes, ousamos possuir
As alegrias que agora simulamos;
O tentilhão esverdeado no ramo da macieira
Podia fazer estremecer meus inimigos.
Mas ventres de moças e damascos,
Baratas num regato à sombra,
Cavalos, patos em voo no amanhecer,
Tudo isso é sonho.
É proibido voltar a sonhar;
Mutilamos nossas alegrias ou as ocultamos;
Cavalos são feitos de aço-cromo
E homenzinhos gordos os cavalgarão.
Sou o verme que nunca mudou,
O eunuco sem harém;
Entre o padre e o comissário,
Caminho como Eugene Aram;
E o comissário lê minha sorte
Enquanto o rádio toca música,
Mas o padre prometeu um Austin Seven,
Pois Duggie sempre paga.
Sonhei que habitava salões de mármore
E ao acordar vi que era verdade;
Não nasci para uma época como esta;
Era Smith? Era Jones? Era você?

A Guerra Civil Espanhola e outros acontecimentos em 1936-7 pesaram na balança, e a partir de então eu soube me situar. Cada linha de trabalho sério que escrevi desde 1936 foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrata, da forma que eu o entendo. Parece-me absurdo, num período como o nosso, pensar que se pode evitar escrever sobre esses assuntos. Todo mundo escreve sobre eles de uma forma ou de outra. É apenas uma questão de que lado tomar e de que abordagem adotar. Quanto mais ciente se está de uma tendência política, mais oportunidade se tem de atuar politicamente, sem sacrificar a estética e a integridade intelectual.
O que mais desejei fazer nos últimos dez anos foi transformar escrita política em arte. Meu ponto de partida é sempre um sentimento de proselitismo, uma sensação de injustiça. Quando sento para escrever um livro, não digo a mim mesmo: “Vou produzir uma obra de arte”. Escrevo porque existe uma mentira que pretendo expor, um fato para o qual pretendo chamar a atenção, e minha preocupação inicial é atingir um público. Mas não conseguiria escrever um livro, nem um longo artigo para uma revista, se não fosse também uma experiência estética. Quem se dispuser a examinar meu trabalho perceberá que, mesmo quando é uma clara propaganda, contém muito do que um político de tempo integral consideraria irrelevante. Não sou capaz de abandonar por completo a visão de mundo que adquiri na infância, nem quero. Enquanto viver e estiver com saúde, continuarei a ter um forte apego ao estilo da prosa, a amar a superfície da Terra, a sentir prazer com objetos sólidos e fragmentos de informações inúteis. De nada adianta tentar reprimir esse meu lado. O trabalho é conciliar os gostos e os desgostos arraigados com as atividades essencialmente públicas, não individuais, que esta época impõe a todos nós.
Não é fácil. Suscita problemas de construção e de linguagem e, de uma nova maneira, o problema da veracidade. Darei apenas um exemplo do tipo mais grosseiro de dificuldade que surge. Meu livro sobre a Guerra Civil Espanhola, Homage to Catalonia [Homenagem à Catalunha], é, claro, abertamente político, mas a maior parte dele foi escrita com algum distanciamento e preocupação com a forma. Empenhei-me muito em contar toda a verdade sem violar meus instintos literários. Mas entre outras coisas o livro contém um longo capítulo, repleto de citações de jornais e coisas do gênero, que defende trotskistas acusados de tramar com Franco. Sem dúvida um capítulo assim, que após um ou dois anos perderia o interesse para qualquer leitor comum, deve arruinar o livro. Um crítico que respeito me passou um sermão sobre isso. “Por que incluiu todo esse material?”, perguntou. “Transformou em jornalismo o que poderia ter sido um bom livro.” O que ele disse era verdade, mas eu não poderia ter feito de outra maneira. Ocorreu que eu sabia o que poucas pessoas na Inglaterra tiveram a oportunidade de saber: que homens inocentes estavam sendo falsamente acusados. Se não estivesse revoltado com isso, jamais teria escrito o livro.
De um modo ou de outro, esse problema reaparece. O problema da linguagem é mais sutil, e sua discussão seria mais demorada. Direi apenas que nos últimos anos procurei escrever de forma menos pitoresca e com mais exatidão. De qualquer maneira, creio que na hora em que aperfeiçoamos um estilo de escrita sempre o superamos. A revolução dos bichos foi o primeiro livro em que tentei, com plena consciência do que fazia, amalgamar os propósitos político e artístico. Faz sete anos que não escrevo um romance, mas espero escrever outro muito em breve. Será fatalmente um fracasso, todo livro é um fracasso, porém tenho uma clara noção do tipo de livro que pretendo escrever.
Reexaminando as duas últimas páginas, mais ou menos, noto que fiz parecer que meus motivos para escrever estiveram todos voltados à causa pública. Não quero que seja essa a impressão definitiva. Todos os escritores são vaidosos, egocêntricos e ociosos, e bem no fundo de seus motivos jaz um mistério. Escrever um livro é uma luta horrível e exaustiva, como um prolongado ataque de uma enfermidade dolorosa. Ninguém jamais se incumbiria de tal coisa se não fosse impelido por um demônio ao qual não se pode resistir nem entender. Porque todo mundo sabe que esse demônio é simplesmente o mesmo instinto que faz um bebê chamar a atenção aos berros. E no entanto também é verdadeiro que é impossível escrever algo legível sem lutar constantemente para apagar a própria personalidade. A boa prosa é como uma vidraça. Não sei dizer com certeza qual de meus motivos é o mais forte, mas sei qual deles merece ser seguido. E, ao reexaminar minha obra, percebo que foi sempre onde me faltou um propósito político que escrevi livros sem vida e fui induzido a escrever passagens floreadas, frases sem significado, adjetivos decorativos e, em geral, falsidades.
Gangrel, 1946.

George Orwell, em Dentro da baleia e outros ensaios

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