quarta-feira, 25 de setembro de 2024

O regresso do mestre

Desde seus primeiros anos, Migyur — este era o seu nome — havia sentido que não estava onde tinha que estar. Sentia-se forasteiro em sua família, forasteiro em seu povoado. Ao sonhar, via paisagens que não pertenciam a Ngari: solidões de areia, tendas circulares de feltro, um mosteiro na montanha; e na vigília, estas mesmas imagens cobriam ou empanavam a realidade.
Aos dezenove anos fugiu, ávido de encontrar a realidade que correspondia a essas formas. Foi vagabundo, esmoler, trabalhador e as vezes ladrão. Hoje chegou a esta pousada perto da fronteira.
Viu a casa, a cansada caravana mongol, os camelos no pátio.
Atravessou o portão e se encontrou diante do velho monge que comandava a caravana. Reconheceram-se, então: o jovem vagabundo viu-se a si mesmo como um lama ancião, e viu o monge como este era há muitos anos, quando fora seu discípulo; e o monge reconheceu no rapaz o seu velho mestre, já desaparecido. Lembraram a peregrinação que haviam feito aos santuários do Tibete e o regresso ao mosteiro da montanha. Falaram evocaram o passado e se interrompiam para intercalar detalhes precisos.
O propósito da viagem dos mongóis era buscar um novo chefe para o seu convento. Fazia vinte anos que havia morrido o antigo, e eles em vão esperavam sua reencarnação. Hoje o tinham encontrado.
Ao amanhecer a caravana empreendeu sua lenta viagem de volta. Migyur regressava às solidões de areia, às tendas circulares de feltro e ao mosteiro de sua encarnação anterior.

Alexandra David-Neel, Mystiques el Magiciens du Tibet, em Livro de Sonhos, de Jorge Luis Borges

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