Eu
só gostava de mulher bonita, de cara e de corpo. Podia ser
ignorante, uma idiota, mas sendo bonita eu gostava dela.
Minha
namorada, Ingrid, era assim, linda, burrinha, magrinha, pesava
quarenta e cinco quilos, perfeita como uma dessas estatuetas que
rodopiam em cima da caixinha de música. Eu a levantava, segurando-a
pela bunda, ela cruzava as pernas em torno da minha cintura, me
abraçava como uma sanguessuga, eu enfiava o pau nela e fodíamos.
Sempre começávamos assim a fazer amor.
Esqueci
de dizer que sou muito católico. Fui ao confessionário e disse para
o padre, seu padre, eu só gosto de mulher bonita, isso é pecado?
Ele
ficou calado, pensei até que tinha saído da guarita, eu não
conseguia ver do outro lado, onde ele estava, a grade que nos
separava não permitia, mas sempre achei que ele podia me ver e assim
eu fazia uma cara contrita de pecador arrependido.
Depois
de algum tempo comecei a ficar nervoso e perguntei, seu padre, o
senhor está aí?
Estou,
ele respondeu. Não reconheci a voz, devia ser um padre novo, eu me
confessava todo mês e conhecia a voz dos vários padres que me
atendiam e sempre me mandavam rezar alguns pais-nossos e ave-marias
antes de me dispensar.
É
pecado só gostar de mulher bonita?, repeti.
O
padre continuou algum tempo calado, depois disse, meu filho, pecado é
uma transgressão de lei ou preceito religioso, não existe
mandamento que fale sobre isso...
Seu
padre, eu disse, o senhor me desculpe, mas eu li em Tomás de Aquino
que os pecados capitais são vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria,
gula e acídia — ah!, acídia, quando li essa palavra, seu padre,
tive que ir ver no dicionário para descobrir que era preguiça.
Eu
ri dizendo essa última frase, mas do outro lado não tive resposta.
Perturbado com o silêncio do padre esqueci o assunto ligado a Tomás
de Aquino. Ficamos os dois calados, parecia coisa de maluco.
Quebrei
o silêncio. Seu padre, o fato de eu só gostar de mulher bonita não
é uma clave indicando luxúria?
Talvez,
disse o padre — e creio ter ouvido um leve suspiro vindo do outro
lado.
Insisti:
um pensador ateu cujo nome esqueci disse que foi o medo cristão da
carne que fez da luxúria um pecado mortal.
Mais
silêncio do outro lado do confessionário.
Só
gosto de mulher bonita por quê? Eu mesmo respondi: para foder. A
minha namorada é para mim apenas corpo, língua e orifícios, isso
tem que ser pecado.
Meu
filho, disse o padre, modere a sua linguagem, estamos na casa de
Deus.
Desculpe,
eu disse.
O
padre ficou mais algum tempo em silêncio e disse, meu filho, para
obter o perdão e se purificar dos seus pecados você deve rezar o
terço completo. Agora pode ir embora.
Fui
para casa, fiz o sinal da cruz e rezei o credo. Depois um pai-
-nosso, três ave-marias, uma glória-ao-pai, sendo que após cada
reza eu recitava a oração pedida pela Virgem Maria em Fátima: Ó
meu Jesus, perdoai-nos os nossos pecados, livrai-nos do fogo do
Inferno, levai as almas todas para o Céu e socorrei principalmente
as que mais precisarem da Tua misericórdia. Finalmente, rezei mais
dois pais-nossos e encerrei com uma salve-rainha. Tudo isso em voz
alta. Quando acabei, achei que estava perdoado e fui me deitar.
Não
consegui dormir. Eu não estava perdoado. Sabia que apenas seria
perdoado quando namorasse uma mulher feia. Mas, ao contrário do que
pensa a maioria das pessoas, arranjar uma mulher feia é mais difícil
do que conseguir uma bonita. Certas feias sublimaram o desejo e se
emparedaram defensivamente em variadas obsessões; outras o excluíram
do campo da consciência. Todas se defendem com explicações que
acreditam coerentes para o comportamento adotado, sem perceber o
verdadeiro motivo: elas são feias e nenhum homem quer saber delas.
As
mulheres feias vão a que lugares? À igreja, é claro. Esse era o
lugar certo para encontrar uma penitente feia que quisesse se
entregar ao pecado da luxúria. Ou que já o tivesse cometido. Eu
ainda tinha de imaginar em que dia e horário as mulheres feias
preferiam rezar. Resolvi escolher o domingo. E testar todas as missas
desse dia.
A
igreja que escolhi celebrava a primeira missa às seis da manhã.
Estudei todas as mulheres daquele horário e não encontrei uma
sequer que servisse aos meus propósitos. Eram todas feias, e também
velhas. Namorar uma mulher feia e velha era penitência que nem
durante o tempo da Inquisição seria imposta ao pior dos pecadores.
Minha
frustração ia aumentando, missa após missa. Até que na missa do
meio-dia encontrei uma mulher que talvez servisse. Ela devia ter uns
trinta anos, gordinha, sem pescoço, inteiramente assimétrica.
Aproximei-me dela em frente à pia de água benta. Enquanto me benzia
eu lhe disse, é a primeira vez que venho à missa das doze horas,
sempre frequento a das seis da manhã.
A
essa hora estou dormindo, ela respondeu, a coisa que eu mais gosto no
mundo é de dormir.
Ah!,
suspirei, quem me dera ser assim, eu durmo tão mal.
Deve
ser algum peso na consciência, ela disse com um sorriso.
Os
dentes dela eram escuros, devia fumar muito. Fomos andando pela rua.
Posso acender um cigarro?, ela perguntou. Claro, respondi, eu fumei
muito durante certo tempo, mas parei depois que li artigos e
estatísticas médicas que mostravam que o cigarro era um veneno.
Como
todo ex-fumante ou ex-viciado em qualquer coisa, não deixo passar a
oportunidade de falar mal do meu antigo vício.
Eu
sei, ela disse, mas se deixar de fumar eu vou engordar horrivelmente.
Quando
ela disse isso eu tive certeza de ter encontrado a mulher que
procurava. Ela possuía pelo menos um certo grau de vaidade, e isso,
tendo em vista as circunstâncias, fazia dela a mulher ideal. Além
de ser um pecado, a vaidade é, de todos os riscos, aquele que torna
a mulher mais vulnerável. Ela pode resistir à gula, deixando de
comer batata frita, à avareza, pagando mais à empregada favelada, à
inveja, reconhecendo ter sido um sucesso a operação plástica da
amiga, à preguiça, comprando um despertador barulhento para acordar
mais cedo, à luxúria, fugindo para a igreja, mas à vaidade ninguém
resiste. E a vaidade leva a todos os outros pecados. E o primeiro
deles é exatamente a luxúria.
O
nome dela era Joana. Fui com ela até a porta da sua casa, distante
uns quinze minutos da igreja. Não convido o senhor para entrar e
tomar um cafezinho porque houve um problema com o meu fogão, e como
hoje é domingo não consigo ninguém para consertá-lo.
Fogão,
eu disse, consigo consertar qualquer fogão, quer que conserte o seu?
Ah,
seria ótimo, respondeu ela.
O
fogão tinha quatro bocas e um forno. Para falar a verdade eu não
sei coisa alguma sobre fogão. Fiquei em frente ao fogão apertando
botões e torcendo coisas, aproximando meu nariz das bocas de gás.
Depois de algum tempo, eu disse que para consertar o fogão precisava
de uma peça, um calibrador. Era uma palavra boa, calibrador,
multiusável como esses detergentes que anunciam na televisão.
Então
não vai ter cafezinho, ela disse.
Estava
nervosa, com aquele homem dentro de casa, sem saber ao certo como ele
se comportaria e como ela mesma se comportaria numa emergência. Eu
sabia que o meu trabalho inicial era conseguir a confiança dela.
Fiz
a minha primeira comunhão com sete anos, e você?
Eu
fiz com oito, ela respondeu, não quer se sentar?
Sentei-me
na poltrona e ela no sofá.
Então
contei que minha mãe havia comprado um terninho branco para mim, no
braço havia uma fita, branca e dourada. Foi uma experiência
inesquecível, receber Jesus Cristo sacramentado, eu disse, meus pais
sabiam que a primeira comunhão devia ser recebida quando se começa
a ter uso da razão, mas eu, apesar de ter apenas sete anos, era um
menino muito sensato, e sou até hoje, responsável, confiável.
Eu
nem me lembro bem da minha primeira comunhão, ela disse, acho que
fiz com uma porção de outras meninas do colégio.
Olhei
para o relógio, levantei-me da poltrona. Tenho um compromisso daqui
a uma hora, desculpe não ter consertado o seu fogão.
Não
se preocupe. Domingo você vai à missa a que horas?
A
mesma de hoje, respondi.
Então
a gente se encontra lá, está bem?
Claro,
respondi.
Despedi-me
formalmente, nada de beijinhos no rosto, não obstante ela tenha
aproximado o rosto para receber aqueles ósculos rotineiros.
No
domingo seguinte nos encontramos novamente. Joana estava toda
enfeitada, para me impressionar. Atavios funcionam com mulheres
bonitas, as feias ficam ainda mais feias quando se adornam.
Convidei-a
para almoçar. Ela comeu uma salada de alface e tomate, apenas. Tenho
que perder umas gordurinhas. Que bom, estava se preparando para mim.
Perguntou se eu tinha algum compromisso, uma namorada, casado ela
sabia que eu não era, pois não via aliança no meu dedo. Eu disse
que não tinha ninguém, que aquela era a primeira vez que eu ia a um
restaurante com uma mulher. E com homem?, ela perguntou, com um certo
pânico na voz, uma inesperada suspeita sobre as minhas inclinações
sexuais devia ter crepitado na sua cabeça. Para dissipar essa dúvida
respondi, com ninguém, tive há tempos uma namorada, mas ela gostava
de cozinhar para mim e comíamos na casa dela ou na minha. E ela
cozinhava bem? Muito bem, respondi. Eu também sei cozinhar, disse
Joana, um dia vou fazer uma comidinha para você.
Isso
demorou mais quinze dias, ou seja, mais duas missas, depois das quais
eu sempre a acompanhava até sua casa.
Joana
estava emagrecendo, o que a tornava ainda mais assimétrica, as
partes do seu corpo, tórax, pescoço, braços, pernas, abdome
ficaram ainda mais desproporcionais. Um dia sonhei com Joana e ela
era uma espécie de grilo ou gafanhoto, um desses insetos que se
mexem de maneira desarticulada.
O
jantar que Joana fez para mim estava muito saboroso. Ela praticamente
nada comeu, mas tomou bastante vinho, bebemos duas garrafas de tinto
português Periquita, ela, a maior parte.
Depois
fomos para a sala, onde nos sentamos, eu na poltrona, ela no sofá.
Joana acendeu um cigarro. Subitamente levantou-se e disse, me abraça.
Dei
um abraço longo e apertado nela. Depois ela voltou para o sofá e
eu, para a poltrona. Fiquei olhando para o rosto dela, os lábios com
uma leve camada de batom, pensando se conseguiria comer ela. Talvez
broxasse, coisa que nunca aconteceu comigo nem com nenhum homem da
minha família. Quando chegasse a hora eu ia dizer a ela que era
muito tímido e tinha que apagar completamente a luz do quarto.
Jantei
na casa dela mais umas quatro vezes. Na última aconteceu. Ela, mais
embriagada e pintada do que nunca, disse que queria ser minha, me
pegou pela mão e levou-me para o quarto.
Tem
que ser no escuro total, eu disse, sou muito tímido.
Tiramos
a roupa no escuro e nos deitamos na cama. Pensei na Ingrid, nas
coisas que fazíamos na cama e o meu pau ficou duro. Quando isso
aconteceu, nem pensei em camisinha, tinha que aproveitar enquanto
dispunha do instrumento em condições e enfiei o pau nela.
Estava
escuro, mas mesmo assim fechei os olhos, pois Joana ficou gemendo e
me beijando na boca e fiquei com medo de os meus olhos se habituarem
com o escuro e eu ver a cara dela.
Depois
de algum tempo não precisei mais pensar na Ingrid. A boceta de Joana
era apertada e sugante, quente, úmida.
Prolonguei
o mais que pude o prazer daquela penetração. Ela gozou com um ardor
tão incandescente e deu um grito tão agudo que eu perdi o controle
e gozei também. Confesso que foi uma das melhores trepadas da minha
vida.
Você
me salvou, eu disse, não sou mais um pecador.
Joana
não respondeu. Acendi a luz para lhe agradecer aquela bênção. Ao
meu lado Joana, pálida, imóvel, não respirava nem se mexia. Estava
morta.
Beijei
carinhosamente o seu rosto, afinal bonito e feliz. Eu estava salvo,
dera felicidade e beleza eterna para uma boa mulher.
Rubem Fonseca, em Ela e Outras Mulheres
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