sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Joana


Eu só gostava de mulher bonita, de cara e de corpo. Podia ser ignorante, uma idiota, mas sendo bonita eu gostava dela.
Minha namorada, Ingrid, era assim, linda, burrinha, magrinha, pesava quarenta e cinco quilos, perfeita como uma dessas estatuetas que rodopiam em cima da caixinha de música. Eu a levantava, segurando-a pela bunda, ela cruzava as pernas em torno da minha cintura, me abraçava como uma sanguessuga, eu enfiava o pau nela e fodíamos. Sempre começávamos assim a fazer amor.
Esqueci de dizer que sou muito católico. Fui ao confessionário e disse para o padre, seu padre, eu só gosto de mulher bonita, isso é pecado?
Ele ficou calado, pensei até que tinha saído da guarita, eu não conseguia ver do outro lado, onde ele estava, a grade que nos separava não permitia, mas sempre achei que ele podia me ver e assim eu fazia uma cara contrita de pecador arrependido.
Depois de algum tempo comecei a ficar nervoso e perguntei, seu padre, o senhor está aí?
Estou, ele respondeu. Não reconheci a voz, devia ser um padre novo, eu me confessava todo mês e conhecia a voz dos vários padres que me atendiam e sempre me mandavam rezar alguns pais-nossos e ave-marias antes de me dispensar.
É pecado só gostar de mulher bonita?, repeti.
O padre continuou algum tempo calado, depois disse, meu filho, pecado é uma transgressão de lei ou preceito religioso, não existe mandamento que fale sobre isso...
Seu padre, eu disse, o senhor me desculpe, mas eu li em Tomás de Aquino que os pecados capitais são vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia — ah!, acídia, quando li essa palavra, seu padre, tive que ir ver no dicionário para descobrir que era preguiça.
Eu ri dizendo essa última frase, mas do outro lado não tive resposta. Perturbado com o silêncio do padre esqueci o assunto ligado a Tomás de Aquino. Ficamos os dois calados, parecia coisa de maluco.
Quebrei o silêncio. Seu padre, o fato de eu só gostar de mulher bonita não é uma clave indicando luxúria?
Talvez, disse o padre — e creio ter ouvido um leve suspiro vindo do outro lado.
Insisti: um pensador ateu cujo nome esqueci disse que foi o medo cristão da carne que fez da luxúria um pecado mortal.
Mais silêncio do outro lado do confessionário.
Só gosto de mulher bonita por quê? Eu mesmo respondi: para foder. A minha namorada é para mim apenas corpo, língua e orifícios, isso tem que ser pecado.
Meu filho, disse o padre, modere a sua linguagem, estamos na casa de Deus.
Desculpe, eu disse.
O padre ficou mais algum tempo em silêncio e disse, meu filho, para obter o perdão e se purificar dos seus pecados você deve rezar o terço completo. Agora pode ir embora.
Fui para casa, fiz o sinal da cruz e rezei o credo. Depois um pai- -nosso, três ave-marias, uma glória-ao-pai, sendo que após cada reza eu recitava a oração pedida pela Virgem Maria em Fátima: Ó meu Jesus, perdoai-nos os nossos pecados, livrai-nos do fogo do Inferno, levai as almas todas para o Céu e socorrei principalmente as que mais precisarem da Tua misericórdia. Finalmente, rezei mais dois pais-nossos e encerrei com uma salve-rainha. Tudo isso em voz alta. Quando acabei, achei que estava perdoado e fui me deitar.
Não consegui dormir. Eu não estava perdoado. Sabia que apenas seria perdoado quando namorasse uma mulher feia. Mas, ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, arranjar uma mulher feia é mais difícil do que conseguir uma bonita. Certas feias sublimaram o desejo e se emparedaram defensivamente em variadas obsessões; outras o excluíram do campo da consciência. Todas se defendem com explicações que acreditam coerentes para o comportamento adotado, sem perceber o verdadeiro motivo: elas são feias e nenhum homem quer saber delas.
As mulheres feias vão a que lugares? À igreja, é claro. Esse era o lugar certo para encontrar uma penitente feia que quisesse se entregar ao pecado da luxúria. Ou que já o tivesse cometido. Eu ainda tinha de imaginar em que dia e horário as mulheres feias preferiam rezar. Resolvi escolher o domingo. E testar todas as missas desse dia.
A igreja que escolhi celebrava a primeira missa às seis da manhã. Estudei todas as mulheres daquele horário e não encontrei uma sequer que servisse aos meus propósitos. Eram todas feias, e também velhas. Namorar uma mulher feia e velha era penitência que nem durante o tempo da Inquisição seria imposta ao pior dos pecadores.
Minha frustração ia aumentando, missa após missa. Até que na missa do meio-dia encontrei uma mulher que talvez servisse. Ela devia ter uns trinta anos, gordinha, sem pescoço, inteiramente assimétrica. Aproximei-me dela em frente à pia de água benta. Enquanto me benzia eu lhe disse, é a primeira vez que venho à missa das doze horas, sempre frequento a das seis da manhã.
A essa hora estou dormindo, ela respondeu, a coisa que eu mais gosto no mundo é de dormir.
Ah!, suspirei, quem me dera ser assim, eu durmo tão mal.
Deve ser algum peso na consciência, ela disse com um sorriso.
Os dentes dela eram escuros, devia fumar muito. Fomos andando pela rua. Posso acender um cigarro?, ela perguntou. Claro, respondi, eu fumei muito durante certo tempo, mas parei depois que li artigos e estatísticas médicas que mostravam que o cigarro era um veneno.
Como todo ex-fumante ou ex-viciado em qualquer coisa, não deixo passar a oportunidade de falar mal do meu antigo vício.
Eu sei, ela disse, mas se deixar de fumar eu vou engordar horrivelmente.
Quando ela disse isso eu tive certeza de ter encontrado a mulher que procurava. Ela possuía pelo menos um certo grau de vaidade, e isso, tendo em vista as circunstâncias, fazia dela a mulher ideal. Além de ser um pecado, a vaidade é, de todos os riscos, aquele que torna a mulher mais vulnerável. Ela pode resistir à gula, deixando de comer batata frita, à avareza, pagando mais à empregada favelada, à inveja, reconhecendo ter sido um sucesso a operação plástica da amiga, à preguiça, comprando um despertador barulhento para acordar mais cedo, à luxúria, fugindo para a igreja, mas à vaidade ninguém resiste. E a vaidade leva a todos os outros pecados. E o primeiro deles é exatamente a luxúria.
O nome dela era Joana. Fui com ela até a porta da sua casa, distante uns quinze minutos da igreja. Não convido o senhor para entrar e tomar um cafezinho porque houve um problema com o meu fogão, e como hoje é domingo não consigo ninguém para consertá-lo.
Fogão, eu disse, consigo consertar qualquer fogão, quer que conserte o seu?
Ah, seria ótimo, respondeu ela.
O fogão tinha quatro bocas e um forno. Para falar a verdade eu não sei coisa alguma sobre fogão. Fiquei em frente ao fogão apertando botões e torcendo coisas, aproximando meu nariz das bocas de gás. Depois de algum tempo, eu disse que para consertar o fogão precisava de uma peça, um calibrador. Era uma palavra boa, calibrador, multiusável como esses detergentes que anunciam na televisão.
Então não vai ter cafezinho, ela disse.
Estava nervosa, com aquele homem dentro de casa, sem saber ao certo como ele se comportaria e como ela mesma se comportaria numa emergência. Eu sabia que o meu trabalho inicial era conseguir a confiança dela.
Fiz a minha primeira comunhão com sete anos, e você?
Eu fiz com oito, ela respondeu, não quer se sentar?
Sentei-me na poltrona e ela no sofá.
Então contei que minha mãe havia comprado um terninho branco para mim, no braço havia uma fita, branca e dourada. Foi uma experiência inesquecível, receber Jesus Cristo sacramentado, eu disse, meus pais sabiam que a primeira comunhão devia ser recebida quando se começa a ter uso da razão, mas eu, apesar de ter apenas sete anos, era um menino muito sensato, e sou até hoje, responsável, confiável.
Eu nem me lembro bem da minha primeira comunhão, ela disse, acho que fiz com uma porção de outras meninas do colégio.
Olhei para o relógio, levantei-me da poltrona. Tenho um compromisso daqui a uma hora, desculpe não ter consertado o seu fogão.
Não se preocupe. Domingo você vai à missa a que horas?
A mesma de hoje, respondi.
Então a gente se encontra lá, está bem?
Claro, respondi.
Despedi-me formalmente, nada de beijinhos no rosto, não obstante ela tenha aproximado o rosto para receber aqueles ósculos rotineiros.
No domingo seguinte nos encontramos novamente. Joana estava toda enfeitada, para me impressionar. Atavios funcionam com mulheres bonitas, as feias ficam ainda mais feias quando se adornam.
Convidei-a para almoçar. Ela comeu uma salada de alface e tomate, apenas. Tenho que perder umas gordurinhas. Que bom, estava se preparando para mim. Perguntou se eu tinha algum compromisso, uma namorada, casado ela sabia que eu não era, pois não via aliança no meu dedo. Eu disse que não tinha ninguém, que aquela era a primeira vez que eu ia a um restaurante com uma mulher. E com homem?, ela perguntou, com um certo pânico na voz, uma inesperada suspeita sobre as minhas inclinações sexuais devia ter crepitado na sua cabeça. Para dissipar essa dúvida respondi, com ninguém, tive há tempos uma namorada, mas ela gostava de cozinhar para mim e comíamos na casa dela ou na minha. E ela cozinhava bem? Muito bem, respondi. Eu também sei cozinhar, disse Joana, um dia vou fazer uma comidinha para você.
Isso demorou mais quinze dias, ou seja, mais duas missas, depois das quais eu sempre a acompanhava até sua casa.
Joana estava emagrecendo, o que a tornava ainda mais assimétrica, as partes do seu corpo, tórax, pescoço, braços, pernas, abdome ficaram ainda mais desproporcionais. Um dia sonhei com Joana e ela era uma espécie de grilo ou gafanhoto, um desses insetos que se mexem de maneira desarticulada.
O jantar que Joana fez para mim estava muito saboroso. Ela praticamente nada comeu, mas tomou bastante vinho, bebemos duas garrafas de tinto português Periquita, ela, a maior parte.
Depois fomos para a sala, onde nos sentamos, eu na poltrona, ela no sofá. Joana acendeu um cigarro. Subitamente levantou-se e disse, me abraça.
Dei um abraço longo e apertado nela. Depois ela voltou para o sofá e eu, para a poltrona. Fiquei olhando para o rosto dela, os lábios com uma leve camada de batom, pensando se conseguiria comer ela. Talvez broxasse, coisa que nunca aconteceu comigo nem com nenhum homem da minha família. Quando chegasse a hora eu ia dizer a ela que era muito tímido e tinha que apagar completamente a luz do quarto.
Jantei na casa dela mais umas quatro vezes. Na última aconteceu. Ela, mais embriagada e pintada do que nunca, disse que queria ser minha, me pegou pela mão e levou-me para o quarto.
Tem que ser no escuro total, eu disse, sou muito tímido.
Tiramos a roupa no escuro e nos deitamos na cama. Pensei na Ingrid, nas coisas que fazíamos na cama e o meu pau ficou duro. Quando isso aconteceu, nem pensei em camisinha, tinha que aproveitar enquanto dispunha do instrumento em condições e enfiei o pau nela.
Estava escuro, mas mesmo assim fechei os olhos, pois Joana ficou gemendo e me beijando na boca e fiquei com medo de os meus olhos se habituarem com o escuro e eu ver a cara dela.
Depois de algum tempo não precisei mais pensar na Ingrid. A boceta de Joana era apertada e sugante, quente, úmida.
Prolonguei o mais que pude o prazer daquela penetração. Ela gozou com um ardor tão incandescente e deu um grito tão agudo que eu perdi o controle e gozei também. Confesso que foi uma das melhores trepadas da minha vida.
Você me salvou, eu disse, não sou mais um pecador.
Joana não respondeu. Acendi a luz para lhe agradecer aquela bênção. Ao meu lado Joana, pálida, imóvel, não respirava nem se mexia. Estava morta.
Beijei carinhosamente o seu rosto, afinal bonito e feliz. Eu estava salvo, dera felicidade e beleza eterna para uma boa mulher.

Rubem Fonseca, em Ela e Outras Mulheres

Nenhum comentário:

Postar um comentário