Toda
simplificação incorre em um paradoxo, porque, depois de
simplificada, a coisa ainda precisa ser explicada. Cria-se um círculo
vicioso da simplificação que precisa de outra simplificação. É a
Pedra filosofal do Simples.
No
contexto de uma epocalidade marcada pela massificação do
conhecimento, a linguagem tende a se reduzir a um puro instrumento
por meio do qual se entra em contato com o mundo. Eis o problema
fundamental. Partindo-se do pressuposto de que a linguagem é puro
instrumento, cria-se o ideal de torná-la menos complicada e o mais
simplificada possível, daí porque simples reduções, abreviações
e quejandos não são inocentes. Da abreviação da linguagem, o que
sobra é algo sintético. Algo sempre diferente. E algo certamente
menor.
Há
mais de dez anos a Coluna Senso Incomum está no ar no site Consultor
Jurídico. Nesse decênio fui criando conceitos e neologismos para
melhor conseguir comunicar o que estou pensando.
Por
vezes se diz “não tenho palavras para dizer o que sinto”. Pois é
verdade. A palavra é condição de possibilidade para dizer as
coisas do mundo. Desde a aurora da civilização essa questão se
põe. No primeiro grande livro de filosofia da linguagem, o Crátilo,
Platão, pela boca de Sócrates, faz um capítulo cujo fantasma nos
persegue até hoje: “Da Justeza dos Nomes”. Por que as coisas e
os humanos têm nomes?
A
literatura captou bem essa fenomenologia. Já a Bíblia o faz em
João, 1, 1: “no princípio era o verbo”. Graciliano Ramos, em
Vidas Secas, bem mostra isso – embora essa passagem do livro
não cause um bom espanto nos leitores (basta ver no Google: ninguém
deu bola para essa parte tão importante de Vidas Secas): “A
opinião dos meninos assemelhava-se à dela. Agora olhavam as lojas,
as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam pasmados. Tinham
percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir
uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as
surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas
juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apresentou-a
timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O
menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as
moças bem-vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido
feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito, soprou-a
no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O
menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as
preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras
das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada.
Como podiam os homens? Era impossível, ninguém conservaria tão
grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam
distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os
indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe,
eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não
desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem.
guardar tantas palavras? Baleia cochilava, de quando em quando
balançava a cabeça e franzia o focinho. A cidade se enchera de
suores que a desconcertavam”.
Mais
tarde, Gabriel García Márquez, em Cem Anos de Solidão,
também retorna ao mito bíblico do logos: “naquela pequena
Macondo, as coisas ainda eram tão recentes que, para dirigirmo-nos a
elas, ainda precisávamos apontar com o dedo. Porque elas ainda não
tinham nome”.
Como
nomeamos? Temos as palavras? Por vezes temos de construir novas e até
mesmo criar conceitos para que as coisas melhor lhes caibam.
Veja-se:
a linguagem surge na medida em que faz falta. A angústia é um
fenômeno moderno, por exemplo. Mas tinha-se angústia mesmo não se
sabendo que se tinha. A partir de Kierkegaard, considerado o primeiro
filósofo de cunho mais existencial, e depois com Sartre e Heidegger,
é que a temática da angústia teve o lugar central. Freud entendeu
bem isso e buscou explicar o papel da angústia, como também
articulou outro tema fundamental em seus escritos: o inconsciente.
Dessa fenomenologia, angústia e inconsciente tornaram-se temas
importantes não porque inexistiam, mas porque não se sabia que
existiam. A linguagem desvelou esses fenômenos, mas não os criou.
Por
isso, o presente dicionário. Com uma centena de verbetes. Para que
eu não precise dizer “estou sem as palavras para dizer isto ou
aquilo...”.
Por
fim, a máxima heideggeriana de que o texto só é no seu contexto
não pode ser ignorada. O que apresento neste pequeno livro não é
uma glosa totalizante de qualquer conceito. Ativismo judicial e
judicialização da política, por exemplo, são fenômenos inseridos
dentro de uma prática, e quaisquer dos conceitos a seguir
apresentados devem ser vistos como um ponto de partida que alcança
sentido quando compreendidos dentro de um contexto maior. Seja a
partir da leitura de outros textos ou da lida com a facticidade, a
compreensão só se torna um fenômeno possível a partir dessa fusão
de horizontes.
Lenio Streck, em Dicionário Senso Incomum – mapeando as perplexidades do Direito
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