terça-feira, 24 de setembro de 2024

Introdução: como damos nomes às coisas

Toda simplificação incorre em um paradoxo, porque, depois de simplificada, a coisa ainda precisa ser explicada. Cria-se um círculo vicioso da simplificação que precisa de outra simplificação. É a Pedra filosofal do Simples.
No contexto de uma epocalidade marcada pela massificação do conhecimento, a linguagem tende a se reduzir a um puro instrumento por meio do qual se entra em contato com o mundo. Eis o problema fundamental. Partindo-se do pressuposto de que a linguagem é puro instrumento, cria-se o ideal de torná-la menos complicada e o mais simplificada possível, daí porque simples reduções, abreviações e quejandos não são inocentes. Da abreviação da linguagem, o que sobra é algo sintético. Algo sempre diferente. E algo certamente menor.
Há mais de dez anos a Coluna Senso Incomum está no ar no site Consultor Jurídico. Nesse decênio fui criando conceitos e neologismos para melhor conseguir comunicar o que estou pensando.
Por vezes se diz “não tenho palavras para dizer o que sinto”. Pois é verdade. A palavra é condição de possibilidade para dizer as coisas do mundo. Desde a aurora da civilização essa questão se põe. No primeiro grande livro de filosofia da linguagem, o Crátilo, Platão, pela boca de Sócrates, faz um capítulo cujo fantasma nos persegue até hoje: “Da Justeza dos Nomes”. Por que as coisas e os humanos têm nomes?
A literatura captou bem essa fenomenologia. Já a Bíblia o faz em João, 1, 1: “no princípio era o verbo”. Graciliano Ramos, em Vidas Secas, bem mostra isso – embora essa passagem do livro não cause um bom espanto nos leitores (basta ver no Google: ninguém deu bola para essa parte tão importante de Vidas Secas): “A opinião dos meninos assemelhava-se à dela. Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apresentou-a timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças bem-vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada. Como podiam os homens? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem. guardar tantas palavras? Baleia cochilava, de quando em quando balançava a cabeça e franzia o focinho. A cidade se enchera de suores que a desconcertavam”.
Mais tarde, Gabriel García Márquez, em Cem Anos de Solidão, também retorna ao mito bíblico do logos: “naquela pequena Macondo, as coisas ainda eram tão recentes que, para dirigirmo-nos a elas, ainda precisávamos apontar com o dedo. Porque elas ainda não tinham nome”.
Como nomeamos? Temos as palavras? Por vezes temos de construir novas e até mesmo criar conceitos para que as coisas melhor lhes caibam.
Veja-se: a linguagem surge na medida em que faz falta. A angústia é um fenômeno moderno, por exemplo. Mas tinha-se angústia mesmo não se sabendo que se tinha. A partir de Kierkegaard, considerado o primeiro filósofo de cunho mais existencial, e depois com Sartre e Heidegger, é que a temática da angústia teve o lugar central. Freud entendeu bem isso e buscou explicar o papel da angústia, como também articulou outro tema fundamental em seus escritos: o inconsciente. Dessa fenomenologia, angústia e inconsciente tornaram-se temas importantes não porque inexistiam, mas porque não se sabia que existiam. A linguagem desvelou esses fenômenos, mas não os criou.
Por isso, o presente dicionário. Com uma centena de verbetes. Para que eu não precise dizer “estou sem as palavras para dizer isto ou aquilo...”.
Por fim, a máxima heideggeriana de que o texto só é no seu contexto não pode ser ignorada. O que apresento neste pequeno livro não é uma glosa totalizante de qualquer conceito. Ativismo judicial e judicialização da política, por exemplo, são fenômenos inseridos dentro de uma prática, e quaisquer dos conceitos a seguir apresentados devem ser vistos como um ponto de partida que alcança sentido quando compreendidos dentro de um contexto maior. Seja a partir da leitura de outros textos ou da lida com a facticidade, a compreensão só se torna um fenômeno possível a partir dessa fusão de horizontes.

Lenio Streck, em Dicionário Senso Incomum – mapeando as perplexidades do Direito

Nenhum comentário:

Postar um comentário