A
igreja estava cheia. Eu estava ao lado de Heloisa. Não a via desde
que se casara. As igrejas são frequentadas por mulheres feias, mas
aquela era uma missa especial, havia uma porção de mulheres bonitas
e elegantes. Heloisa era a mais bonita de todas.
A
missa estava terminando.
Senhor
Jesus Cristo, disse o padre, dissestes aos vossos apóstolos, eu vos
deixo a paz, eu vos dou a minha paz, não olheis os nossos pecados,
mas a fé que anima a vossa Igreja. Dai-lhe segundo o vosso desejo a
paz e a unidade. Vós que sois Deus com o Pai e o Espírito Santo.
Todos
disseram amém, inclusive Heloisa. Eu, como não conhecia o ritual,
fiquei calado.
A
paz do Senhor esteja sempre convosco, disse o padre.
Todos
os presentes: O amor de Cristo nos uniu.
Padre:
Meus irmãos, saudai-vos uns aos outros em Cristo.
Estendi
a mão para Heloisa. Ela segurou a minha mão e beijou-me no rosto.
Eis
o Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo, disse o padre.
Todos
os presentes (menos eu, outra vez): Senhor, eu não sou digno de que
entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo.
Os
crentes se postaram em fila para a comunhão.
Você
não vai comungar?, perguntei para Heloisa.
Só
comunga quem não tem pecado.
Mas
é tão fácil não ter pecado. Basta confessar e rezar um
padre-nosso que a pessoa é logo perdoada, eu disse.
Mas
eu mesma é que tenho de me perdoar por umas coisas que fiz, disse
Heloisa. Ela falou olhando nos meus olhos.
Como
não sabia o que dizer, perguntei se as pessoas realmente não podiam
tocar a hóstia com os dentes.
Isso
era antigamente, ela respondeu.
Notei
que os mais velhos mantinham a boca num esgar de quem prende a hóstia
com a língua no céu da boca. Tive a impressão de que os jovens
mastigavam-na.
Você
quer uma carona?, perguntei para Heloisa, na saída.
Ela
aceitou.
Vamos
a algum lugar, ela disse, não quero ir para a minha casa.
Levei-a
ao meu apartamento.
Gostei
daquele beijo que você me deu na igreja, eu disse.
Ela
beijou-me na boca. Este é melhor?
Fomos
para o meu quarto. Quando acabamos de foder ela disse, essa não é
uma das coisas de que eu tenho de me perdoar, viu?
Heloisa
aninhou-se nos meus braços, a cabeça no meu ombro, uma perna sobre
o meu púbis. Levantou o rosto e olhou para mim. O carinho no seu
olhar me comoveu.
Heloisa
dormiu. Resolvi deixá-la dormir uma meia hora. Fiquei olhando para o
teto pensando, o que Heloisa teria feito que só poderia ser perdoado
por ela mesma?
Jéssica
Raimundo
me chamou de corno, foi por isso que eu esperei a saída do turno
dele, tarde da noite, e acabei com o cachorro. Duas facadas. Raimundo
sabia que não se pode chamar o outro de corno, alguém sempre morre
quando isso acontece. E o sujeito pode ser corno ou não, isso não
interessa, você não pode chamar de corno nem mesmo um camarada
solteiro, ainda mais casado como eu.
Mas
eu não sou corno, confio cegamente na Jéssica, ela casou virgem
comigo, é uma mulher decente, religiosa, vai à igreja todos os
domingos e comunga. Conheci Jéssica logo que cheguei aqui na cidade
grande. Um conterrâneo meu, que tem um amigo metido na política, me
arranjou esse lugar de estivador no cais do porto e eu me casei com
ela. Ganho o suficiente para dar a Jéssica o conforto que ela
merece.
Jéssica
tem a mania de achar que é feia, ela não é bonita, mas também não
é feia e tem o corpo muito bonito, mas a preocupação dela é com o
rosto, e assim eu economizei um dinheiro para ela ir ao médico ver o
que ele podia fazer. O médico era um camarada decente, disse que não
podia fazer muita coisa, que ela ia gastar dinheiro à toa.
Jéssica
voltou para casa muito deprimida e se achando ainda mais feia. Vou
confessar, ela é feia sim, o queixo é grande demais, a testa muito
estreita, ela é feia de frente e de lado. Mas o corpo é muito
bonito, não existe no mundo mulher com o corpo mais bonito do que o
dela.
Um
dia víamos televisão e uma vizinha chamada Florinda estava com a
gente, quando o locutor disse que um médico tinha sido proibido de
fazer transplantes faciais de doadores mortos. Depois esse doutor
apareceu no mesmo programa e disse que aquela proibição era errada,
era contra o progresso da medicina, que ele havia feito dois
transplantes com grande sucesso. Mostrou a foto de duas mulheres,
antes e depois dos transplantes. Uma coisa impressionante.
Isso,
perguntou Florinda, é uma coisa assim como alguém doar o fígado? E
se o rosto doado for feio?
Mais
feio do que o meu não existe, respondeu Jéssica.
Mas
você acha, disse Florinda, que a família vai deixar a filha,
mulher, ou lá o que for, ser enterrada toda desfigurada? Porque a
pessoa que doar o rosto vai ficar com cara de fantasma de filme de
terror.
Eu
disse que as mulheres que morriam eram velhas com uma cara
deplorável, e que era preciso uma bonitona morrer jovem,
assassinada, atropelada, ou então num suicídio. Mas aí quem tinha
muito dinheiro é que ia comprar o rosto dela.
E
você não ia ter dinheiro para comprar, não é, Severino? Você é
um fodido.
Não
gostei de Jéssica ter falado assim, principalmente na frente da
Florinda, mas não quis brigar, essa história da feiura da Jéssica
a deixava transtornada. Eu apenas disse, trabalho, ganho dinheiro,
falta alguma coisa aqui em casa?
Falta
uma porção de coisas, ela disse.
O
quê, por exemplo?
Ah,
não vou falar.
Fala,
eu disse.
Não
falo, disse Jéssica. Pelo menos deixa eu ver a minha novela em paz.
Jéssica
passa o dia vendo televisão ou então falando no telefone. Colocou
uma extensão no quarto, na mesinha de cabeceira dela, para poder
falar mais. Eu odeio telefone. Raramente telefono, se precisar
telefonar para a farmácia, quem telefona é Jéssica. Ela diz, você
tem medo de telefone, ele não morde não. Esqueci de dizer que ela
vive indo ao salão de beleza, mas não gasta nada, diz que a dona é
amiga dela. Eu não me incomodo, é mais uma distração para ela.
Eu
trabalho das seis da manhã até as sete da noite no cais do porto.
Sou pontual, nunca falto ao trabalho e dou duro, pois sou muito
forte. Mas naquela segunda-feira eu me senti mal, uma tonteira tão
forte que o meu chefe mandou chamar o médico, que me examinou e
disse para eu ir para casa.
Quando
cheguei em casa vi que tinha esquecido de comprar o remédio que o
médico receitara. Àquela hora Jéssica estava no salão de beleza,
eu ia ter que telefonar pedindo para a farmácia entregar o remédio.
Quando
tirei o telefone do gancho ouvi uma voz masculina.
Casou
com ele cabaço?
Claro,
respondeu uma voz feminina que reconheci como a de Jéssica. Se eu
não fosse cabaço ele me matava na noite de núpcias. Mas fazia
outras brincadeiras com os namorados que tive...
Dava
o cuzinho, não é?, disse o homem, você adora dar o cuzinho...
Mas
não para o Severino, ele acha errado, ele só faz papai e mamãe.
Mas você vai mesmo me dar o dinheiro para fazer o transplante?
Já
disse que vou, Jéssica, mas é muito dinheiro, espera mais um pouco,
disse o homem.
E
enquanto espero fico dando o cuzinho para você, não é?
Você
gosta, Jéssica, você gosta... Como é que você está vestida?
Estou
com aquela calcinha de renda preta que você ama, e sem sutiã. Meus
peitos estão durinhos.
Eu
ouvia, mas aquilo tudo não podia estar acontecendo, era um pesadelo,
eu ia acordar a qualquer momento, Jéssica não estava no quarto
falando no telefone aquelas coisas, a tonteira que me atacara lá no
cais do porto devia ter piorado.
Entrei
no quarto e Jéssica estava deitada falando no telefone, de calcinha
de renda preta, os peitos nus. Quando me viu, falou calmamente, eu te
ligo mais tarde, Florinda. E desligou o telefone logo em seguida. O
que houve, chegando em casa a essa hora?, perguntou.
Agarrei
Jéssica pelos cabelos e comecei a esmurrar o rosto dela. Quebrei
primeiro o seu nariz, depois o maxilar, depois a boca, fazendo os
dentes saltarem para fora, em seguida quebrei os ossos que ficam
debaixo dos olhos, e arrebentei os ossos das orelhas.
Ela
ficou estirada na cama, o rosto parecendo um bolo de massa de tomate.
Minhas mãos doíam e sangravam, acho que quebrei alguns dedos.
Agora
você vai precisar de um transplante de rosto, sua puta, mas eu sou
um pé-rapado e não vou poder pagar.
Ela
não me ouviu nem me via, pois não podia abrir os olhos empapuçados
de sangue e carne moída.
Minha
tonteira tinha passado. Eu não precisava mais do remédio nem de
ligar para a farmácia.
Coloquei
minhas coisas numa maleta e fui para a rodoviária. Fiquei umas duas
horas esperando o ônibus que me levaria de volta para a minha terra.
Ninguém deve sair da sua terra.
Vinte
e quatro horas de estrada. Quando começou a viagem, baixei o encosto
do banco e dormi.
Rubem Fonseca, em Ela e Outras Mulheres
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