quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Heloisa


A igreja estava cheia. Eu estava ao lado de Heloisa. Não a via desde que se casara. As igrejas são frequentadas por mulheres feias, mas aquela era uma missa especial, havia uma porção de mulheres bonitas e elegantes. Heloisa era a mais bonita de todas.
A missa estava terminando.
Senhor Jesus Cristo, disse o padre, dissestes aos vossos apóstolos, eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz, não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima a vossa Igreja. Dai-lhe segundo o vosso desejo a paz e a unidade. Vós que sois Deus com o Pai e o Espírito Santo.
Todos disseram amém, inclusive Heloisa. Eu, como não conhecia o ritual, fiquei calado.
A paz do Senhor esteja sempre convosco, disse o padre.
Todos os presentes: O amor de Cristo nos uniu.
Padre: Meus irmãos, saudai-vos uns aos outros em Cristo.
Estendi a mão para Heloisa. Ela segurou a minha mão e beijou-me no rosto.
Eis o Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo, disse o padre.
Todos os presentes (menos eu, outra vez): Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo.
Os crentes se postaram em fila para a comunhão.
Você não vai comungar?, perguntei para Heloisa.
Só comunga quem não tem pecado.
Mas é tão fácil não ter pecado. Basta confessar e rezar um padre-nosso que a pessoa é logo perdoada, eu disse.
Mas eu mesma é que tenho de me perdoar por umas coisas que fiz, disse Heloisa. Ela falou olhando nos meus olhos.
Como não sabia o que dizer, perguntei se as pessoas realmente não podiam tocar a hóstia com os dentes.
Isso era antigamente, ela respondeu.
Notei que os mais velhos mantinham a boca num esgar de quem prende a hóstia com a língua no céu da boca. Tive a impressão de que os jovens mastigavam-na.
Você quer uma carona?, perguntei para Heloisa, na saída.
Ela aceitou.
Vamos a algum lugar, ela disse, não quero ir para a minha casa.
Levei-a ao meu apartamento.
Gostei daquele beijo que você me deu na igreja, eu disse.
Ela beijou-me na boca. Este é melhor?
Fomos para o meu quarto. Quando acabamos de foder ela disse, essa não é uma das coisas de que eu tenho de me perdoar, viu?
Heloisa aninhou-se nos meus braços, a cabeça no meu ombro, uma perna sobre o meu púbis. Levantou o rosto e olhou para mim. O carinho no seu olhar me comoveu.
Heloisa dormiu. Resolvi deixá-la dormir uma meia hora. Fiquei olhando para o teto pensando, o que Heloisa teria feito que só poderia ser perdoado por ela mesma?
Jéssica
Raimundo me chamou de corno, foi por isso que eu esperei a saída do turno dele, tarde da noite, e acabei com o cachorro. Duas facadas. Raimundo sabia que não se pode chamar o outro de corno, alguém sempre morre quando isso acontece. E o sujeito pode ser corno ou não, isso não interessa, você não pode chamar de corno nem mesmo um camarada solteiro, ainda mais casado como eu.
Mas eu não sou corno, confio cegamente na Jéssica, ela casou virgem comigo, é uma mulher decente, religiosa, vai à igreja todos os domingos e comunga. Conheci Jéssica logo que cheguei aqui na cidade grande. Um conterrâneo meu, que tem um amigo metido na política, me arranjou esse lugar de estivador no cais do porto e eu me casei com ela. Ganho o suficiente para dar a Jéssica o conforto que ela merece.
Jéssica tem a mania de achar que é feia, ela não é bonita, mas também não é feia e tem o corpo muito bonito, mas a preocupação dela é com o rosto, e assim eu economizei um dinheiro para ela ir ao médico ver o que ele podia fazer. O médico era um camarada decente, disse que não podia fazer muita coisa, que ela ia gastar dinheiro à toa.
Jéssica voltou para casa muito deprimida e se achando ainda mais feia. Vou confessar, ela é feia sim, o queixo é grande demais, a testa muito estreita, ela é feia de frente e de lado. Mas o corpo é muito bonito, não existe no mundo mulher com o corpo mais bonito do que o dela.
Um dia víamos televisão e uma vizinha chamada Florinda estava com a gente, quando o locutor disse que um médico tinha sido proibido de fazer transplantes faciais de doadores mortos. Depois esse doutor apareceu no mesmo programa e disse que aquela proibição era errada, era contra o progresso da medicina, que ele havia feito dois transplantes com grande sucesso. Mostrou a foto de duas mulheres, antes e depois dos transplantes. Uma coisa impressionante.
Isso, perguntou Florinda, é uma coisa assim como alguém doar o fígado? E se o rosto doado for feio?
Mais feio do que o meu não existe, respondeu Jéssica.
Mas você acha, disse Florinda, que a família vai deixar a filha, mulher, ou lá o que for, ser enterrada toda desfigurada? Porque a pessoa que doar o rosto vai ficar com cara de fantasma de filme de terror.
Eu disse que as mulheres que morriam eram velhas com uma cara deplorável, e que era preciso uma bonitona morrer jovem, assassinada, atropelada, ou então num suicídio. Mas aí quem tinha muito dinheiro é que ia comprar o rosto dela.
E você não ia ter dinheiro para comprar, não é, Severino? Você é um fodido.
Não gostei de Jéssica ter falado assim, principalmente na frente da Florinda, mas não quis brigar, essa história da feiura da Jéssica a deixava transtornada. Eu apenas disse, trabalho, ganho dinheiro, falta alguma coisa aqui em casa?
Falta uma porção de coisas, ela disse.
O quê, por exemplo?
Ah, não vou falar.
Fala, eu disse.
Não falo, disse Jéssica. Pelo menos deixa eu ver a minha novela em paz.
Jéssica passa o dia vendo televisão ou então falando no telefone. Colocou uma extensão no quarto, na mesinha de cabeceira dela, para poder falar mais. Eu odeio telefone. Raramente telefono, se precisar telefonar para a farmácia, quem telefona é Jéssica. Ela diz, você tem medo de telefone, ele não morde não. Esqueci de dizer que ela vive indo ao salão de beleza, mas não gasta nada, diz que a dona é amiga dela. Eu não me incomodo, é mais uma distração para ela.
Eu trabalho das seis da manhã até as sete da noite no cais do porto. Sou pontual, nunca falto ao trabalho e dou duro, pois sou muito forte. Mas naquela segunda-feira eu me senti mal, uma tonteira tão forte que o meu chefe mandou chamar o médico, que me examinou e disse para eu ir para casa.
Quando cheguei em casa vi que tinha esquecido de comprar o remédio que o médico receitara. Àquela hora Jéssica estava no salão de beleza, eu ia ter que telefonar pedindo para a farmácia entregar o remédio.
Quando tirei o telefone do gancho ouvi uma voz masculina.
Casou com ele cabaço?
Claro, respondeu uma voz feminina que reconheci como a de Jéssica. Se eu não fosse cabaço ele me matava na noite de núpcias. Mas fazia outras brincadeiras com os namorados que tive...
Dava o cuzinho, não é?, disse o homem, você adora dar o cuzinho...
Mas não para o Severino, ele acha errado, ele só faz papai e mamãe. Mas você vai mesmo me dar o dinheiro para fazer o transplante?
Já disse que vou, Jéssica, mas é muito dinheiro, espera mais um pouco, disse o homem.
E enquanto espero fico dando o cuzinho para você, não é?
Você gosta, Jéssica, você gosta... Como é que você está vestida?
Estou com aquela calcinha de renda preta que você ama, e sem sutiã. Meus peitos estão durinhos.
Eu ouvia, mas aquilo tudo não podia estar acontecendo, era um pesadelo, eu ia acordar a qualquer momento, Jéssica não estava no quarto falando no telefone aquelas coisas, a tonteira que me atacara lá no cais do porto devia ter piorado.
Entrei no quarto e Jéssica estava deitada falando no telefone, de calcinha de renda preta, os peitos nus. Quando me viu, falou calmamente, eu te ligo mais tarde, Florinda. E desligou o telefone logo em seguida. O que houve, chegando em casa a essa hora?, perguntou.
Agarrei Jéssica pelos cabelos e comecei a esmurrar o rosto dela. Quebrei primeiro o seu nariz, depois o maxilar, depois a boca, fazendo os dentes saltarem para fora, em seguida quebrei os ossos que ficam debaixo dos olhos, e arrebentei os ossos das orelhas.
Ela ficou estirada na cama, o rosto parecendo um bolo de massa de tomate. Minhas mãos doíam e sangravam, acho que quebrei alguns dedos.
Agora você vai precisar de um transplante de rosto, sua puta, mas eu sou um pé-rapado e não vou poder pagar.
Ela não me ouviu nem me via, pois não podia abrir os olhos empapuçados de sangue e carne moída.
Minha tonteira tinha passado. Eu não precisava mais do remédio nem de ligar para a farmácia.
Coloquei minhas coisas numa maleta e fui para a rodoviária. Fiquei umas duas horas esperando o ônibus que me levaria de volta para a minha terra. Ninguém deve sair da sua terra.
Vinte e quatro horas de estrada. Quando começou a viagem, baixei o encosto do banco e dormi.

Rubem Fonseca, em Ela e Outras Mulheres

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