terça-feira, 24 de setembro de 2024

Grande sertão: veredas


Vindo logo depois de Corpo de baile, completou a impressão avassaladora de poderosa originalidade e grandeza isolada do autor, confirmando-lhe a posição excepcional dentro da ficção brasileira e mesmo universal. A leitura destas maciças páginas sem índice nem capítulos, nem sequer espaços claros entre os blocos compactos de preto no branco, exige esforço não pequeno, mas “raras vezes um esforço de leitura terá melhor compensação” (Oscar Lopes). Sai-se do livro com a impressão de se ter participado não só da vida aventurosa do herói, mas também da alegria criadora do autor.
Era preciso advertir o leitor para que não se deixasse vencer pelas dificuldades iniciais da abordagem. Ressaltam as da linguagem, condensada, elíptica, tipicamente regional e profundamente pessoal, frequentemente enigmática; é substancialmente a de Corpo de baile, só que desta vez concorre também para construir a personalidade de um único herói, contador de sua própria história, e assim torna-se fator primordial da composição.
Vários exegetas repararam nessa predominância da linguagem que transcende a importância instrumental para virar matéria-prima. “Ele redimiu o estilo do romance, e conseguiu com que a sua prosa não fosse apenas o gaguejar de uma narração: mas ela própria realidade, ela própria autenticidade, ela própria uma parte fundamental e inseparável da realidade romanesca”, afirmou a esse respeito o crítico Adolfo Casais Monteiro. Outros comentaristas chegaram a conclusão idêntica. “Nunca entre nós… ofereceu uma obra tamanha virtuosidade e um tão fértil terreno linguístico – uma tão completa e minuciosa exploração do discurso em todas as suas múltiplas facetas. Por isso – e embora o Sr. Guimarães Rosa não se afaste um só momento do sertão – a sua realidade pode dizer-se que é a linguagem”, afirma Olívia Krähenbühl. E nove anos depois de Grande sertão: veredas, numa das poucas entrevistas extensas que concedeu a um jornalista, Rosa afirmou ao alemão Günter W. Lorenz: “Só se pode renovar o mundo renovando a língua”.
Mas também o processo narrativo, sinuosíssimo em vez de linear, requer um período de adaptação. O narrador parece experimentar vários rumos, marcar passo, voltar ao ponto inicial, partir de novo por outro atalho. “Temos uma narrativa em vaivém, em ziguezague”, nota José Carlos Garbuglio, “que se estabelece pelo fluxo incontrolável da memória onde um fato aciona a alavanca de outro que aflora por uma ordem de importância interior”. Para outro intérprete da obra “o seu fim está no começo e o começo no fim e ambos poderiam ser encontrados em qualquer parte do livro” (Milton Vargas). De repente, após uma travessia do rio São Francisco, o autor nos faz desembocar numa estrada real, de horizonte dilatado, por onde a história se desenrola ampla, épica, irresistível, levando de roldão qualquer estranheza ou resistência.
Daí em diante, os mistérios do princípio elucidam-se progressivamente, as digressões revelam-se começos de rotas convergentes, episódios que pareciam deslocados se reatam ao tronco da narração, alusões obscuras ganham caráter de antecipação e presságio. Descobrir tais entrelaçamentos é um dos altos prazeres da leitura.
O romance é, à primeira vista, a história da luta sangrenta entre dois bandos de jagunços no Sul de Minas. “Porém, não se trata de livro nem realista nem pitoresco, embora pitoresco e realismo nele se encontrem a cada passo; mas de um livro carregado de valores simbólicos, onde os dados da realidade física e social constituem ponto de partida”, escreve com acerto Antonio Candido. O mesmo autor chama a atenção para o fato de os jagunços do livro não serem meros salteadores, mas revestirem as feições de paladinos medievais.
A significação do título se aclara sucessivamente por diversos trechos do romance, onde encontramos o narrador empenhado em definir o termo “grande sertão” que, além de conteúdo geográfico bem nítido, para ele tem ainda outros conteúdos vagos e amplos. Essas definições vão do estritamente mesológico ao simbólico: nelas a narrativa sai mais de uma vez do tom reprodutivo, e o narrador cede a palavra ao romancista. Para quem nele nasceu e viveu e com ele se identificou, o “sertão” acaba sendo toda a confusa e tumultuosa massa do mundo sensível, caos ilimitado de que só uma parte ínfima nos é dado conhecer, precisamente a que se avista ao longo das “veredas”, tênues canais de penetração e comunicação. Assim o sinal – : – entre os dois elementos do título teria valor adversativo, estabelecendo a oposição entre a imensa realidade inabrangível e suas mínimas parcelas acessíveis, ou, noutras palavras, entre o intuível e o conhecível; e também, segundo me confirmou certa vez o próprio autor, entre o inconsciente e o consciente.
A forma do romance – uma única narrativa, do fim ao começo, feita pelo fazendeiro Riobaldo, ex-jagunço, a um forasteiro – não é casual, mas está organicamente ligada ao próprio assunto. Uma história dessas só pode ser contada pelo protagonista e em primeira pessoa. A indecisão do começo, em que lembranças fragmentadas se sucedem ao sabor das associações, corresponde à hesitação do narrador, que só depõe as reservas depois de ver fixo o interesse do ouvinte, o qual não somente desiste da intenção de prosseguir viagem no mesmo dia, mas anota a relação em sua caderneta.
Contudo, o ouvinte permanece invisível do princípio ao fim, e sua presença se percebe apenas pelas apóstrofes do narrador. Esse recurso fértil confere à narração estilo oral e dramaticidade direta, e permite a Riobaldo esmiuçar com toda meticulosidade suas lembranças mais secretas. O ensaísta Dante Moreira Leite, que interpreta o monólogo de Riobaldo como sessão psicanalítica, afirma que “o romance somente adquire sentido diante do interlocutor”.
Espantado com a própria comunicabilidade, Riobaldo tenta justificá-la muitas vezes, e essas tentativas constituem outro leitmotiv, tão importante como as definições de “sertão”. Segundo ele mesmo afirma, narra a vida para no fim consultar o interlocutor: “Quero armar o ponto num fato, para depois lhe pedir um conselho”. Esse conselho, porém, não chega a ser pedido. Riobaldo pretende também relatar o passado para que o forasteiro explique: “Conto ao senhor é o que eu sei e que o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba”. Mas não se dá oportunidade ao forasteiro para tal explicação e, aliás, Riobaldo sabe que “a vida não é entendível”. Afinal de contas, faz a confissão para si mesmo, querendo “decifrar as coisas que são importantes” e preservá-las do esquecimento. “Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, é quase igual a perder dinheiro”. Mas a vontade de lembrar, em Riobaldo, é mais que simples saudade de velho. Desejando reconstituir o seu passado, ele está movido pelo anelo confuso de reafirmar a unidade do seu eu, de sentir que efetivamente desempenhou algum papel ativo nas vicissitudes da própria existência.
Sim, porque precisamente no tocante a isso é que é atormentado por contínuas dúvidas. No cerne mesmo de sua vida há um segredo a que faz alusões incessantes, mas que não se atreve a enfrentar de vez, e do qual se acerca a meias palavras, criando no espírito do ouvinte uma expectativa ansiosa. Suas contínuas indagações sobre a existência do Diabo, a natureza e o poder dele, preparam-nos para algum mistério espantoso. Quando afinal vem a revelação, embora pressentida, não deixa de transtorná-lo, a ele e a nós. Tornam-se então compreensíveis todas as especulações metafísicas do ex-jagunço, à primeira vista descabidas: se na solidão de sua velhice ele refez todas as suposições dos teólogos, todas as teorias da demonologia – chegando a intuir no conceito do diabo a mera concretização de um aspecto da alma humana – foi por tratar de assunto seu familiar, intimamente pessoal. O mito atávico do pacto com o demônio é revivido nele sob forma convincente, como experiência possível dentro da nossa realidade.
Corolário do pacto são os acontecimentos inesperados e favoráveis que lhe corroboram a validade no espírito de Riobaldo. Chega a sentir-se onipotente, dono do universo, e então entra a vacilar, a dar passos em falso, a não saber o que fazer e a sentir uma terrível insatisfação. O poder chega num momento em que de nada serve: quando desaparecem os obstáculos à sua inconfessável paixão por seu companheiro Diadorim – moça disfarçada em homem mas cuja verdadeira identidade só lhe é revelada depois que ela morre – desaparece também o objetivo dessa paixão.
Em redor de um mito universal, Guimarães Rosa conseguiu edificar obra de valor também universal com elementos locais. O seu Riobaldo, ente inculto, mas dotado de imaginação e poesia, ao passar revista aos acontecimentos de sua vida acidentada, enfrenta seguidamente todas as contingências do ser – o amor, a alegria, a ambição, a insatisfação, a solidão, a dor, o medo, a morte – e relata-as com a surpresa, a reação fresca de quem as experimentasse pela primeira vez no mundo, reinventando as explicações dos filósofos numa formulação pitoresca e ingênua. Como Miguilim, Lélio ou o velho Camilo, em Corpo de baile, o jagunço Riobaldo também é trabalhado por inquietações que o fazem sentir a vida diversamente (“Um sentir é do sentente, mas outro é do sentidor”), e, em sua linguagem pitoresca de semianalfabeto, descerrar abismos de psicologia e metafísica.
Mas todas as audácias da construção, toda a riqueza do conteúdo filosófico, seriam apenas jogos de inteligência se o sertão de Guimarães Rosa não fosse também, além de símbolo, realidade viva e concreta, com seus bichos, plantas, gentes e superstições admiravelmente descritos; se a narração de Riobaldo não fosse, além de uma teia engenhosamente urdida, um tecido de casos, encontros, acontecimentos e cenas de insuspeita autenticidade porque vistos de seu ângulo de jagunço; e se a intervenção do sobrenatural não fosse tramada com arte das mais sutis, de modo que nunca entra em choque com o realismo psicológico. A existência do Diabo ou a crença na existência dele (“Não é, mas finge de ser”) são explanações igualmente válidas para o destino de Riobaldo.

Paulo Rónai, em Rosa & Rónai: O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador

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