quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Ensaio da Paixão | V

 


A eminência parda

No começo da tarde o sol finalmente atravessou as grades da única janela e projetou-se no quarto: uma faixa que crescia quadrada no rosto de Cisco. Como sempre, ele acordou aflito, o rosto suado. Levantou-se de um pulo, e, também como sempre, a tontura o obrigou a sentar-se. Pensava em voz alta:
A bebida e o cigarro estão acabando comigo.
Passou a mão no rosto, lembrando-se da Paixão que se aproximava, o que o deixava tenso, mas feliz. Ele era talvez a única pessoa realmente indispensável do grupo, além de Isaías; talvez — e ele sentia a agulhada da culpa — talvez nem Isaías seja mais indispensável. Ano após ano, Cisco foi se transformando no factótum da Paixão, o coordenador, o quebra-galho, o juiz de paz, em princípio mais por incompetência alheia do que por liderança própria, mas o que era apenas um desejo de participar ativamente (e, quem sabe, o terror de voltar à vida na cidade) foi se transformando — quem mais mereceria, além dele? — numa ambição vaga, às vezes uma leve safadeza, essa ânsia de se tornar verdadeiramente grande e importante na ilha; em alguns sonhos apavorantes, via-se passando por cima de Isaías, literalmente pisando-lhe o pescoço com uma indiferença atroz, o que provocava esse difícil, incômodo, desconjuntado sentimento de culpa sempre que abria os olhos de manhã. Em passos lentos, foi até a janelinha e, feito prisioneiro, agarrou as grades com as mãos, olhando para fora, o paredão de mato da montanha adiante.
Já é tarde.
Entrou no banheiro anexo que ele mesmo ergueu pedra a pedra, e deu uma mijada prolongada. Depois, pegou de baixo da cama suas luvas de boxe, tamanho profissional. Enquanto vestia as luvas, tentava planejar o dia, já cortado pela metade — preciso acordar mais cedo. Dias e dias sem fazer nada, como se continuasse preso no mesmo apartamento de cinco anos atrás. Repetiu, como uma reza:
Preciso me casar, e urgente.
Tentava puxar o barbante da luva direita com os dentes, o mesmo esforço inútil e irritante de todas as manhãs. Deu uns pulinhos, simulando luta no apertado ringue do quarto. Desfechou no ar alguns golpes rápidos e violentos, por baixo, por cima, respirando fundo, a catarreira se atropelando na garganta, suor correndo da testa, cabelos nos olhos. Foi à janela e cuspiu para fora um jato reto e violento — uma técnica que desenvolvia com eficiência e algum prazer, como quem purifica não a garganta, mas a alma — e voltou aos golpes. Sentindo-se já aquecido, avançou em direção do grande adversário: as paredes de pedra. Respirou fundo, colocou-se em guarda a meio metro das pedras e desfechou afinal uma saraivada de golpes, que do choque nos punhos percorriam o corpo inteiro até o alto da cabeça. Braços doendo, cambaleou até a cama, arrancou as luvas e ficou largado alguns minutos, bufando. Um bom começo.
Respiração voltando ao normal, a mão ainda um pouco trêmula tateou uma chave debaixo do travesseiro, com que abriu um pequeno cofre de madeira, onde ele escondia um estoque de centenas de cigarros de todas as marcas, filados ao longo do ano de quem quer que fumasse perto dele. Pegou um ao acaso, fechou o cofre, escondeu a chave e, cigarro aceso, deu uma tragada embrutecedora e anestésica. Quando já sentia o gosto nauseante do filtro, apagou-o num cinzeiro abarrotado — preciso limpar isso aqui — e abriu o cadeado da porta, arrepiando-se com a aragem fresca do início de tarde. De calção, sem camisa, olhou as próprias pernas — tortas, ossudas, sobre dois pés imensos e chatos. Preferiu vestir as calças de brim, sem lavar há tempos — preciso me casar — e calçou as velhas sandálias de borracha. Mais tarde tomaria um banho na represa, naquelas águas geladas, para lavar a ressaca e romper a inércia do dia.
Trancou a porta da cela com corrente e cadeado, como sempre, e escondeu a chave num vão de pedra. Contornando a casa, entrou no corredor que dava ao pátio central. Pela fresta da primeira porta, viu Aninha estendida sob o lençol, belos cabelos negros e lisos soltos no travesseiro, os seios à mostra, entre luz e sombra: uma lâmina de sol cortava-a ao meio — e Cisco sentiu uma emoção vaga por vê-la assim, uma emoção que ele tentou engolir rapidamente. Sair daqui, e já — mas ficou. Aninha moveu-se, revelando agora um trecho de perna. Não, não: essa mulher não me serve. Para vencer um impulso de desejo, pensou em acordá-la aos gritos, batendo palmas, como sempre fazia no amanhecer dos ensaios, o grande momento de Cisco: Vamos lá, uma hora da tarde! Levanta que logo tem ensaio! Chega de festa! — mas avançou silencioso e sentou-se na beira da cama. Desenhava com os olhos o rosto de Aninha, os cabelos, os seios que subiam e desciam na respiração suave. Ela mexeu-se, lenta, resmungou baixíssimo, por fim abriu os olhos inchados:
Cisco!? — e, rápida, escondeu os seios no lençol. — Que susto você me deu!
Provavelmente passou a noite puxando fumo. Com Rômulo, talvez? Sozinha? Não, é inútil — ela não me serve.
Estava te admirando, mocinha. Você sabe que sempre tive uma paixão secreta por você. Mas você não se importa comigo.
Ela riu.
Mentiroso! Então me dá um beijo de bom dia!
Ele avançou para beijá-la a boca, ela desviou suave a cabeça para sentir os lábios no rosto. Cisco disfarçou o mal-estar de quem pisa em falso:
Você me maltrata demais. Meu coração não aguenta.
Um longo bocejo, braços se abrindo:
Tive um sonho muito ruim, Cisco. Sonhei que meus pais me perseguiam com uma metralhadora, no meio do mato. Eu tentava fugir e não conseguia sair do lugar. E eu estava nua. Tinha um monte de gente me espiando detrás das árvores. Daí começou a chover... Não me lembro mais, uma sensação horrível... O que você acha?
Não acho nada. Uma mulher muito complicada. De complicado, chega eu. Não serve. Disfarçou o desinteresse:
Mocinha, quando você tiver um sonho ruim desses, dá uma corrida até o meu quarto — e ele ria, que ela entendesse a brincadeira —, bate três vezes na minha porta e dorme comigo. — Como um profeta da Paixão, altissonante: — Eu te protegerei!
Ela se escondia no lençol:
Não tem graça, Cisco. Eu sei o que você quer.
O teu amor, ora!
Amor assim não é amor! Você é muito materialista. — Pensou em Miro, que chegaria breve, uma boa lembrança. — Cisco, você só pensa nisso, o tempo todo? Não pode ser apenas meu amigo?
A conversa enveredava pelos caminhos da seriedade. Cisco protegeu-se:
Nunca! Mulher a gente come.
A mão direita de Aninha desfechou tapas erráticos nele, enquanto a esquerda protegia os seios com o lençol:
Como você pode ser tão estúpido, tão idiota?! Seu sujo, cara de pau, machista, some daqui!
Ele se defendia falsamente da aparente falsa agressão (mas os socos de brincadeira cada vez mais fortes). Contrito:
Você não entende nada de amor, Aninha. Depois tem esses sonhos ruins. Azar o seu.
Ela balançava a cabeça: como podia existir um sujeito tão contraditório como ele?
Apesar de tudo, gosto de você, Cisco. Não adianta se fingir de mau. Você não é quem pensa ser. Você é muito querido, sabia?
Isso você diz pra todo mundo.
É que todo mundo aqui é querido. Essa ilha é minha salvação.
Ele apalpou o braço, a careta no rosto:
O teu soco doeu, Aninha.
Tadinho do Cisco... Vamos fazer as pazes. Venha, me abrace, me dê bom dia!
E ele sentiu no peito os peitos de Aninha, o corpo miúdo, no rosto a face macia. Ela tem perfume. Fechou os olhos.
Você é uma ninfa…
O que é mesmo uma ninfa?
Ninfa? — O desejo, era só o desejo bruto que sentia: Preciso de uma mulher, preciso me casar; mais que isso: preciso desesperadamente trepar... — Ninfa eram deusas da Antiguidade, novinhas, tesudinhas, fofinhas, que viviam no mundo da lua.
Ela achou graça. Afastou-se dele, fitando-o como quem investiga:
Que bonito. Você fala bonito mesmo dizendo besteira. Você bota sexo em tudo, mas tem o dom da palavra, Cisco.
Voltar à realidade: ele mordeu o lábio. Qualquer envolvimento com Aninha redundaria em fracasso e num inaceitável ego ferido. Já tinha representado o seu papel de sempre; agora era preciso manter distância. Levantou-se sério, outra voz, solenizando a mentira:
Negócio seguinte, Aninha: já é tarde, todo mundo já saiu da cama e já almoçou.
[…]

Cristovão Tezza, em Ensaio da Paixão

Nenhum comentário:

Postar um comentário