A
eminência parda
No
começo da tarde o sol finalmente atravessou as grades da única
janela e projetou-se no quarto: uma faixa que crescia quadrada no
rosto de Cisco. Como sempre, ele acordou aflito, o rosto suado.
Levantou-se de um pulo, e, também como sempre, a tontura o obrigou a
sentar-se. Pensava em voz alta:
— A
bebida e o cigarro estão acabando comigo.
Passou
a mão no rosto, lembrando-se da Paixão que se aproximava, o que o
deixava tenso, mas feliz. Ele era talvez a única pessoa realmente
indispensável do grupo, além de Isaías; talvez — e ele sentia a
agulhada da culpa — talvez nem Isaías seja mais indispensável.
Ano após ano, Cisco foi se transformando no factótum da Paixão, o
coordenador, o quebra-galho, o juiz de paz, em princípio mais por
incompetência alheia do que por liderança própria, mas o que era
apenas um desejo de participar ativamente (e, quem sabe, o terror de
voltar à vida na cidade) foi se transformando — quem mais
mereceria, além dele? — numa ambição vaga, às vezes uma leve
safadeza, essa ânsia de se tornar verdadeiramente grande e
importante na ilha; em alguns sonhos apavorantes, via-se passando por
cima de Isaías, literalmente pisando-lhe o pescoço com uma
indiferença atroz, o que provocava esse difícil, incômodo,
desconjuntado sentimento de culpa sempre que abria os olhos de manhã.
Em passos lentos, foi até a janelinha e, feito prisioneiro, agarrou
as grades com as mãos, olhando para fora, o paredão de mato da
montanha adiante.
— Já
é tarde.
Entrou
no banheiro anexo que ele mesmo ergueu pedra a pedra, e deu uma
mijada prolongada. Depois, pegou de baixo da cama suas luvas de boxe,
tamanho profissional. Enquanto vestia as luvas, tentava planejar o
dia, já cortado pela metade — preciso acordar mais cedo.
Dias e dias sem fazer nada, como se continuasse preso no mesmo
apartamento de cinco anos atrás. Repetiu, como uma reza:
— Preciso
me casar, e urgente.
Tentava
puxar o barbante da luva direita com os dentes, o mesmo esforço
inútil e irritante de todas as manhãs. Deu uns pulinhos, simulando
luta no apertado ringue do quarto. Desfechou no ar alguns golpes
rápidos e violentos, por baixo, por cima, respirando fundo, a
catarreira se atropelando na garganta, suor correndo da testa,
cabelos nos olhos. Foi à janela e cuspiu para fora um jato reto e
violento — uma técnica que desenvolvia com eficiência e algum
prazer, como quem purifica não a garganta, mas a alma — e voltou
aos golpes. Sentindo-se já aquecido, avançou em direção do grande
adversário: as paredes de pedra. Respirou fundo, colocou-se em
guarda a meio metro das pedras e desfechou afinal uma saraivada de
golpes, que do choque nos punhos percorriam o corpo inteiro até o
alto da cabeça. Braços doendo, cambaleou até a cama, arrancou as
luvas e ficou largado alguns minutos, bufando. Um bom começo.
Respiração
voltando ao normal, a mão ainda um pouco trêmula tateou uma chave
debaixo do travesseiro, com que abriu um pequeno cofre de madeira,
onde ele escondia um estoque de centenas de cigarros de todas as
marcas, filados ao longo do ano de quem quer que fumasse perto dele.
Pegou um ao acaso, fechou o cofre, escondeu a chave e, cigarro aceso,
deu uma tragada embrutecedora e anestésica. Quando já sentia o
gosto nauseante do filtro, apagou-o num cinzeiro abarrotado —
preciso limpar isso aqui — e abriu o cadeado da porta,
arrepiando-se com a aragem fresca do início de tarde. De calção,
sem camisa, olhou as próprias pernas — tortas, ossudas, sobre dois
pés imensos e chatos. Preferiu vestir as calças de brim, sem lavar
há tempos — preciso me casar — e calçou as velhas
sandálias de borracha. Mais tarde tomaria um banho na represa,
naquelas águas geladas, para lavar a ressaca e romper a inércia do
dia.
Trancou
a porta da cela com corrente e cadeado, como sempre, e escondeu a
chave num vão de pedra. Contornando a casa, entrou no corredor que
dava ao pátio central. Pela fresta da primeira porta, viu Aninha
estendida sob o lençol, belos cabelos negros e lisos soltos no
travesseiro, os seios à mostra, entre luz e sombra: uma lâmina de
sol cortava-a ao meio — e Cisco sentiu uma emoção vaga por vê-la
assim, uma emoção que ele tentou engolir rapidamente. Sair
daqui, e já — mas ficou. Aninha moveu-se, revelando agora um
trecho de perna. Não, não: essa mulher não me serve. Para
vencer um impulso de desejo, pensou em acordá-la aos gritos, batendo
palmas, como sempre fazia no amanhecer dos ensaios, o grande momento
de Cisco: Vamos lá, uma hora da tarde! Levanta que logo tem
ensaio! Chega de festa! — mas avançou silencioso e sentou-se
na beira da cama. Desenhava com os olhos o rosto de Aninha, os
cabelos, os seios que subiam e desciam na respiração suave. Ela
mexeu-se, lenta, resmungou baixíssimo, por fim abriu os olhos
inchados:
— Cisco!?
— e, rápida, escondeu os seios no lençol. — Que susto você me
deu!
Provavelmente
passou a noite puxando fumo. Com Rômulo, talvez? Sozinha? Não, é
inútil — ela não me serve.
— Estava
te admirando, mocinha. Você sabe que sempre tive uma paixão secreta
por você. Mas você não se importa comigo.
Ela
riu.
— Mentiroso!
Então me dá um beijo de bom dia!
Ele
avançou para beijá-la a boca, ela desviou suave a cabeça para
sentir os lábios no rosto. Cisco disfarçou o mal-estar de quem pisa
em falso:
— Você
me maltrata demais. Meu coração não aguenta.
Um
longo bocejo, braços se abrindo:
— Tive
um sonho muito ruim, Cisco. Sonhei que meus pais me perseguiam com
uma metralhadora, no meio do mato. Eu tentava fugir e não conseguia
sair do lugar. E eu estava nua. Tinha um monte de gente me espiando
detrás das árvores. Daí começou a chover... Não me lembro mais,
uma sensação horrível... O que você acha?
Não
acho nada. Uma mulher muito complicada. De complicado, chega eu. Não
serve. Disfarçou o desinteresse:
— Mocinha,
quando você tiver um sonho ruim desses, dá uma corrida até o meu
quarto — e ele ria, que ela entendesse a brincadeira —, bate três
vezes na minha porta e dorme comigo. — Como um profeta da Paixão,
altissonante: — Eu te protegerei!
Ela
se escondia no lençol:
— Não
tem graça, Cisco. Eu sei o que você quer.
— O
teu amor, ora!
— Amor
assim não é amor! Você é muito materialista. — Pensou em Miro,
que chegaria breve, uma boa lembrança. — Cisco, você só pensa
nisso, o tempo todo? Não pode ser apenas meu amigo?
A
conversa enveredava pelos caminhos da seriedade. Cisco protegeu-se:
— Nunca!
Mulher a gente come.
A
mão direita de Aninha desfechou tapas erráticos nele, enquanto a
esquerda protegia os seios com o lençol:
— Como
você pode ser tão estúpido, tão idiota?! Seu sujo, cara de pau,
machista, some daqui!
Ele
se defendia falsamente da aparente falsa agressão (mas os socos de
brincadeira cada vez mais fortes). Contrito:
— Você
não entende nada de amor, Aninha. Depois tem esses sonhos ruins.
Azar o seu.
Ela
balançava a cabeça: como podia existir um sujeito tão
contraditório como ele?
— Apesar
de tudo, gosto de você, Cisco. Não adianta se fingir de mau. Você
não é quem pensa ser. Você é muito querido, sabia?
— Isso
você diz pra todo mundo.
— É
que todo mundo aqui é querido. Essa ilha é minha salvação.
Ele
apalpou o braço, a careta no rosto:
— O
teu soco doeu, Aninha.
— Tadinho
do Cisco... Vamos fazer as pazes. Venha, me abrace, me dê bom dia!
E
ele sentiu no peito os peitos de Aninha, o corpo miúdo, no rosto a
face macia. Ela tem perfume. Fechou os olhos.
— Você
é uma ninfa…
— O
que é mesmo uma ninfa?
— Ninfa?
— O desejo, era só o desejo bruto que sentia: Preciso de uma
mulher, preciso me casar; mais que isso: preciso desesperadamente
trepar... — Ninfa eram deusas da Antiguidade, novinhas,
tesudinhas, fofinhas, que viviam no mundo da lua.
Ela
achou graça. Afastou-se dele, fitando-o como quem investiga:
— Que
bonito. Você fala bonito mesmo dizendo besteira. Você bota sexo em
tudo, mas tem o dom da palavra, Cisco.
Voltar
à realidade: ele mordeu o lábio. Qualquer envolvimento com Aninha
redundaria em fracasso e num inaceitável ego ferido. Já tinha
representado o seu papel de sempre; agora era preciso manter
distância. Levantou-se sério, outra voz, solenizando a mentira:
— Negócio
seguinte, Aninha: já é tarde, todo mundo já saiu da cama e já
almoçou.
[…]
Cristovão Tezza, em Ensaio da Paixão
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