Eu
não pensava que elas fossem mesmo morrer, mas achava normal que a
minha avó falasse daquele jeito. Só me convenci de que falava a
verdade quando tentei praticar com a Taiwo uma brincadeira que
fazíamos desde muito novas, nem sei quando. Qualquer uma de nós
podia fechar os olhos e pensar um pensamento, qualquer um, e deixá-lo
pela metade para que ele fosse completado pela outra. Ficávamos
horas neste jogo silencioso, como se tivéssemos o poder de entrar no
pensamento da outra e saber para onde ele estava indo. Eu queria
saber o que a Taiwo pensava sobre a vida que levaríamos no
estrangeiro, se seríamos presentes ou carneiros, mas não tive
resposta. Senti que a Taiwo já não estava mais dentro de mim, como
se ela tivesse fechado os olhos naquelas horas em que, olhando por
sobre os ombros da nossa mãe, que dançava, eu conseguia me ver
dentro dos olhos dela. Eu tentava sair de mim e não encontrava mais
para onde ir, tentava encontrar a Taiwo e não conseguia. A Taiwo já
estava fora do meu alcance, estava morrendo.
A
comida começou a apodrecer por todo o chão do navio, porque muitos,
e eu também, já não tínhamos mais apetite, e ao cheiro dela se
juntava o cheiro de xixi, de merda, de sangue, de vômito e de pus.
Acho que todos nós já queríamos morrer no dia em que abriram a
portinhola e mandaram que nos preparássemos para sair. Foi preciso
repetir a ordem novamente, e novamente, porque faltava ânimo,
faltava força e, no fundo, achávamos que íamos todos virar comida
de peixe. Disseram que iam nos levar para tomar banho, beber água e
ficar um pouco ao sol. Foi o sol que me animou a sair, e também fez
com que os nossos olhos ardessem ao deixarmos o porão, a ponto de
não conseguirmos abri-los, andando e caindo uns por cima dos outros.
Tentei me levantar e caí várias vezes antes de conseguir me manter
de pé, não só por causa da fraqueza, mas porque as pernas pareciam
ter se desacostumado do peso do corpo, sempre deitado. Logo atrás de
mim subiram a minha avó e a Tanisha, carregando a Taiwo nos braços.
À medida que saíamos, eles nos mandavam tirar as roupas e jogá-las
a um canto do navio. O vento que soprava era um grande alento, e
quase me engasguei com o ar. Leve, fresco, sabendo a mar, um cheiro
bom. Eu me lembrei do Akin e da Aina, e da primeira vez que eu e a
Taiwo vimos o mar. Não fazia tanto tempo, e nunca poderíamos
imaginar que em breve estaríamos ali, dias e dias no meio do mar,
que parecia ser muito maior do que o Akin imaginava. Eu teria adorado
a oportunidade de dizer a ele que para todo lado que se olhava era só
mar, mar e mais mar. Mas já naquele momento percebi que não era só
por isso, mas também porque eu queria viver, e não virar carneiro
de gente nem carneiro de peixe, e então sobrevivendo a tudo isso, é
que eu poderia falar com o Akin sobre o mar. O vento soprando na pele
e o sol davam uma sensação boa, de que eu ia conseguir. Quase
sorri, e só não o fiz porque olhei para a minha avó e me assustei.
Ela estava mais velha do que qualquer pessoa que eu já tinha visto,
muito mais magra, os peitos escorrendo por cima dos ossos da costela,
os olhos embaçados e a pele coberta por uma fina crosta
esbranquiçada, igual àquela que se forma sobre a carne que é
salgada para durar mais tempo. Percebi que muitos também estavam
daquele jeito, inclusive eu, na barriga, onde a pele branca que havia
se formado esfarelou quando esfreguei a mão com força sobre ela.
Era mais fácil com a mão molhada em um pouco de saliva, e a crosta
tinha gosto de sal. Mais tarde eu soube que aquilo era causado pelo
próprio corpo, que colocava para fora o excesso de sal da comida que
ingeríamos, principalmente da carne ou do peixe salgado.
A
Jamila e a Aja não queriam tirar as roupas, mas foram obrigadas
pelos guardas e ficaram o tempo todo agachadas a um canto do navio,
uma tentando proteger a outra. Os muçurumins, que também
protestaram mas não precisaram ser obrigados, não levantaram os
olhos do chão e não tiraram as mãos da frente do membro, exceto
quando começaram a rezar e precisaram erguê-las na direção de
Meca ou do céu. Todos nós estávamos contentes com aquela
liberdade. Tenho certeza de que não era este o objetivo dos donos do
tumbeiro, nos deixar felizes, mas sim salvar a carga de algum tipo de
doença contagiosa que poderia pôr a perder a viagem. Foi só à luz
do dia que percebi como parecíamos mesmo bichos, sujos e feios. Não
sei se carneiros, acho que mais os lagartos com que eu costumava
brincar em Savalu. Ficamos deitados ou sentados no chão do navio,
alguns levantando a cabeça em direção ao céu, como se assim fosse
mais fácil armazenar dentro do corpo todo o ar puro de que
necessitaríamos durante o resto da viagem. Mas o melhor mesmo foi o
banho. Ordenaram que fizéssemos fila e, um a um, despejaram água de
imensos baldes sobre as nossas cabeças. Era água do mar, mas de tão
precisados que estávamos de qualquer tipo de água, mesmo que nos
tivessem dito que não era para beber, seria a água mais fresca do
mundo. Era difícil dar a vez ao próximo, mas, para nossa imensa
alegria, a água foi formando poças pelo chão do navio, nas quais
nos deitávamos para brincar, feito crianças. A Taiwo não teve
forças para se manter de pé sozinha e tomou banho nos braços da
Tanisha, quase sem se mover, mas eu senti que ela estava contente.
Não tinha como não estar, e se naquele momento tivessem nos cobrado
qualquer coisa para termos o direito de permanecer ali em cima
durante o resto da travessia, tenho certeza de que teríamos
concordado. Só a Aja e a Jamila, envergonhadas, depois do banho
tinham voltado para o canto onde estiveram antes, chorando muito,
abraçadas.
Algumas
pessoas que tinham os rostos e os corpos cobertos por pequenas
manchas começaram a sentir dor ao contato com a água salgada. Em um
dos homens, as manchas já tinham se transformado em bolhas cheias de
pus. A minha avó disse que era a peste, a varíola, embora hoje eu
ache que não, porque provavelmente todos nós teríamos morrido, ou
então ficado cegos, ou, pelo menos, com o rosto cheio de buracos.
Olhamos o rosto e a garganta da Taiwo e elas estavam lá, as
manchinhas. A minha avó disse que nem todos que pegavam a peste
morriam, mas disse isso com os olhos cheios de água, e me lembrei de
que só tinha visto a minha avó chorar uma vez, no dia em que o
Kokumo e a minha mãe foram para o Orum. Enxugando os olhos,
ela disse que eles estavam voltando para buscar a Taiwo, que queria
ir, então não devíamos ficar tristes. Eu me desesperava porque em
alguns momentos acreditava que seria levada também, pois sem a
Taiwo, ficaria só com metade da alma. Sem a Taiwo, o branco não
iria mais me querer para presente, e eu viraria carneiro, como os
outros.
Todos
ficaram bravos quando jogaram nossas roupas no mar, e a Aja e a
Jamila choraram ainda mais. A Taiwo nem reclamou de ter perdido o
vestido novo. A noite foi muito fria e tivemos que passá-la ao
relento, nus, todos o mais junto possível, porque tinham jogado
remédio no porão e precisaríamos esperar até o dia seguinte para
podermos descer. Foi uma noite longa, mas a melhor de todas. Além de
água e comida, distribuíram cachaça, e todos beberam à vontade.
Os guardas não se importaram quando algumas pessoas se puseram a
cantar e outras vozes foram se juntando. Logo, quase todos estavam
cantando e dançando, sem se lembrar da nudez, da fraqueza, do frio
ou do destino como carneiros. Ou, talvez, apenas preferissem virar
carneiros felizes. Eu também tive vontade de cantar e dançar, mas
não tive coragem, na frente da minha avó e da Taiwo. A Tanisha
dançou em uma roda junto com várias mulheres, e duas delas eram
muito bonitas, parecendo a minha mãe quando dançavam. Os guardas só
impediam que os homens chegassem muito perto deles, ou então que
formassem grandes rodas e ficassem conversando em voz baixa, como se
tramassem algo. Nestes casos, usavam longos bastões para manter
distância e separar grupos suspeitos. Um homem começou a dançar
com uma das moças bonitas e o membro dele ficou duro e em pé como o
dos guerreiros em Savalu, o que me fez lembrar ainda mais da minha
mãe, como se já não bastassem as danças, de que ela tanto
gostava. Na verdade, queria que nada tivesse acontecido, queria não
ter saído nunca de Savalu. A minha avó percebeu e, mesmo tendo dito
para eu ficar longe dela, benzeu-se e me abraçou, dizendo que era
melhor tentarmos dormir.
Quando
o dia amanheceu, os guardas formaram um grupo com todos os doentes
que tinham manchas na pele e disseram que seriam mais bem cuidados
fora do porão. Acho que todos já sabiam o que ia acontecer; que
logo que nós descêssemos, eles seriam atirados ao mar, mas ninguém
protestou. Achei bom a minha avó não ter contado sobre a doença da
Taiwo, que tinha manchas apenas na garganta. A Tanisha alertou que
era perigoso, que todos nós poderíamos pegar a doença por causa
dela, mas minha avó garantiu que não, que tinha fé em Xelegbatá,
o que controla as pestes, que ele iria ajudá-la a cuidar da Taiwo e
só a levaria se Deus quisesse, poupando todos os outros. Quando
descemos, o porão estava limpo e quase tinha um cheiro bom, se não
fosse tão forte. Cheiro de limpeza e de remédio, mais remédio que
limpeza, mas fresco. Todos se benzeram ao entrar, deram kaô a Xangô
e ocuparam os mesmos lugares de antes, como se a familiaridade
pudesse dar um pouco mais de conforto. Alguns dos homens quiseram se
deitar junto das moças com quem tinham dançado, mas os guardas não
deixaram. Nós, as mulheres, continuamos sem as cordas e os homens
voltaram a ser amarrados, e, na medida do possível, começaram a nos
tratar melhor, talvez com medo de não chegarmos vivos ao
estrangeiro. Onde seria o estrangeiro? Será que já tínhamos saído
de África? Eu tinha estes pensamentos porque não fazia ideia de
quantos dias estávamos ali, que deviam ser muitos. Queria chegar
rápido, virar carneiro ou presente, mas que fosse rápido. Mas não
foi rápido o suficiente, porque tudo aconteceu em três dias. A
Taiwo não se levantou nem abriu os olhos, não teve mais manchas e
nem as antigas criaram pus, mas ardeu em febre. Quando às vezes
falava alguma coisa, era sem coerência, e sempre com o Kokumo ou com
a minha mãe, nunca comigo ou com a minha avó, que nos deitamos uma
de cada lado e tentamos aquecê-la com nossos corpos, mesmo porque
não tinham substituído as roupas jogadas no mar.
A
minha avó me acordou no meio do sonho em que eu estava em uma canoa,
remando pelos rios de Savalu, e me disse para segurar bem forte a mão
da Taiwo. Entendi que era a hora de nos despedirmos, e a Taiwo estava
tão fraca que nem respondeu ao meu toque, deixando a mão mole. A
minha avó disse que não era para eu ficar triste, porque a Taiwo
estava alegre em partir para se encontrar com pessoas que gostavam
dela e a estavam esperando no Orum. Apertei mais forte ainda a mão
dela, para que a sua parte na nossa alma não fosse embora e ficasse
comigo. Era nisto que eu pensava, mas não sei se foi assim que
aconteceu, como também não sei dizer se era essa a intenção da
minha avó. Soltei a mão da Taiwo apenas depois de muito tempo,
quando já quase não a sentia mais de tão dormente que estava a
minha, quando os guardas foram buscá-la e bateram na minha avó. Não
muito, mas bateram, e ela não chorou por ter apanhado nem por terem
levado o corpo da Taiwo, que seria jogado no mar sem ao menos ser
lavado direito. Ela disse que, assim que desembarcássemos no
estrangeiro, e se ela ainda estivesse viva, faríamos uma cerimônia
digna para a Taiwo, porque nem para a minha mãe ou para o Kokumo
fizemos de acordo com as tradições, apenas como tinha sido
possível. Eu, assim que desse, também teria que mandar fazer um
pingente que representasse a Taiwo e trazê-lo sempre comigo, de
preferência pendurado no pescoço. Eu e a Taiwo tínhamos nascido
com a mesma alma e eu precisava dela sempre por perto para continuar
tendo a alma por inteiro. Depois da morte dela, o único jeito de
isso acontecer é por meio da imagem em um pingente benzido por quem
sabe o que está fazendo.
Algumas
horas depois de terem levado a Taiwo, como se estivesse apenas
esperando que ela partisse primeiro, a minha avó disse que estava se
sentindo fraca e cansada, que perdia a força e a coragem longe dos
seus voduns, pois tinha abandonado a terra deles, o lugar em que eles
tinham escolhido para viver e onde eram poderosos, e eles não tinham
como segui-la. Durante dois dias ela me falou sobre os voduns, os
nomes que podia dizer, as histórias, a importância de cultuar e
respeitar os nossos antepassados. Mas disse que eles, se não
quisessem, se não tivessem quem os convidasse e colocasse casa para
eles no estrangeiro, não iriam até lá. Então, mesmo que não
fosse através dos voduns, ela disse para eu nunca me esquecer da
nossa África, da nossa mãe, de Nanã, de Xangô, dos Ibêjis, de
Oxum, do poder dos pássaros e das plantas, da obediência e respeito
aos mais velhos, dos cultos e agradecimentos. A minha avó morreu
poucas horas depois de terminar de dizer o que podia ser dito,
virando comida de peixe junto com a Taiwo. Não sei dizer o que
senti, se tristeza, se felicidade por continuar viva ou se medo. Mas
a pior de todas as sensações, mesmo não sabendo direito o que
significava, era a de ser um navio perdido no mar, e não a de estar
dentro de um. Não estava mais na minha terra, não tinha mais a
minha família, estava indo para um lugar que não conhecia, sem
saber se ainda era para presente ou, já que não tinha mais a Taiwo,
para virar carneiro de branco. A Tanisha disse que eu sempre poderia
contar com ela, que poderia ver nela a mãe, a avó e a irmã
perdidas.
Poucos
dias depois que jogaram a minha avó ao mar, avisaram que estávamos
chegando, que da parte de cima do tumbeiro já era possível enxergar
terra de um lugar chamado Brasil. Foi só então que os muçurumins
acreditaram que não estávamos indo para Meca e ficaram bravos por
terem sido enganados, dando pontapés e murros nas paredes do navio.
Os guardas apareceram para ver o que estava acontecendo e disseram
que eles, os muçurumins, tinham sorte por já estarmos tão perto da
terra e, com tantas providências para serem tomadas antes do
desembarque, não terem tempo de castigá-los como gostariam. Mas que
se continuassem, se não se comportassem direito, os novos donos não
se importariam em recebê-los castigados e obedientes. Eles calaram o
protesto, mas rezaram por horas a fio, em voz baixa e todos juntos,
uma oração monótona e repetitiva, um lamento tão triste que o
coração da gente até virava um nó.
Depois
que percebemos que o navio tinha parado, ficamos por muitas horas
ouvindo grande movimentação, barulho de coisas sendo arrastadas e
de vozes gritando ordens. Estavam primeiro descarregando as
mercadorias que tinham sobrado da viagem e as compradas em África.
Eu estava ansiosa para saber se o branco que tinha me escolhido
estaria no desembarque, se tinha ficado sabendo da morte da Taiwo e
se ainda ia me querer. Quando abriram a porta, fomos avisados de que,
por causa das mortes a bordo e de algumas pessoas que ainda estavam
muito doentes, não poderíamos desembarcar logo na cidade de São
Salvador, o nosso destino. Estavam nos deixando em uma ilha chamada
Ilha dos Frades, onde ficaríamos por um tempo até terem certeza de
que mais ninguém adoeceria ou morreria. Quem nos contou isso foi um
guarda que, durante todo o tempo, me pareceu ser uma boa pessoa,
porque os outros nem se davam ao trabalho de prestar atenção às
nossas perguntas.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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