quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Desesperança


Foi logo depois de uma noite terrível, com o navio jogando de um lado para outro, que a Taiwo começou a se separar de mim. Uma noite de tempestade ou de mar com raiva, quando ficamos ouvindo um rugido fortíssimo martelar o casco do navio. Muitos acharam que era o grande monstro das águas querendo mais sacrifícios de gente viva, por não se contentar com os que já tinham sido atirados. O monstro sentia o nosso cheiro, o cheiro de carneiros frescos, mesmo que sujos, que atravessava as paredes do navio e provocava a sua fome. Muitos eram os gritos de desespero quando o navio pendia perigosamente para um dos lados, como se estivesse sendo puxado por garras que queriam tombá-lo e tomar tudo o que levava dentro. A tormenta só parou ao amanhecer, quando então começamos a prestar atenção ao que estava acontecendo dentro do navio.
A Tanisha parecia ter enlouquecido, e nem mesmo apanhar dos guardas foi capaz de fazê-la interromper um riso agudo e forçoso, que acabou sendo imitado por algumas pessoas. A Taiwo teve febre e, como muitos outros, falava coisas sem sentido, como se ainda estivéssemos em Savalu. Conversava com a minha mãe e com o Kokumo, cantava músicas de roda, dizia que estava feliz e surpresa por vê-los ali, pois achava que tinham morrido. Os guardas apareciam de vez em quando para perguntar se alguém mais tinha morrido e foram avisados de que muitos, não apenas a Taiwo, tinham febre. Os doentes mais graves foram levados para cima, e tínhamos certeza de que nunca mais os veríamos. Serviam comida todos os dias, às vezes até duas vezes ao dia, mas ninguém mais se atrevia a levá-la até o porão. Eram escolhidos e desamarrados dez homens, que tinham permissão para sair e buscar as vasilhas. Quase sempre a escolha recaía sobre os muçurumins, talvez por serem os mais quietos, ao contrário do que demonstraram no início da viagem. Eles primeiro serviam os seus e depois os outros homens, sendo que nós, as mulheres, éramos sempre deixadas por último. A Aja e a Jamila diziam salamaleco e faziam um cumprimento com as cabeças sem olhar para eles, nem mesmo quando era o Issa, o marido delas. A nós, as outras mulheres, eles não dirigiam uma só palavra nem respondiam quando queríamos apenas agradecer.
A febre da Taiwo durava mais tempo e ficava mais alta a cada dia, e quando encostei no braço da minha avó para chamar a sua atenção para isso, percebi que também estava quente. Ela então disse para eu me manter o mais afastada possível, para não pegar a doença. Naquele dia, a portinhola se abriu e os guardas chamaram dois pretos, que subiram e voltaram com remédios, que fomos obrigados a tomar sob a ameaça de virarmos comida de peixe se nos recusássemos. Isto porque perceberam que muitos de nós preferiam morrer antes de chegar ao estrangeiro. Eu tomei, a maioria fingiu que tomou, inclusive a minha avó, que disse que antes ser comida de peixe que de gente, completando que isso só valia para alguém da idade dela, não para alguém da minha idade. A minha avó me obrigou a ficar com a dose que lhe cabia, dizendo ser ordem da minha mãe.
A Tanisha, mesmo tendo tomado o remédio e parado de rir, estava longe de ser a mulher que eu tinha conhecido no barracão de Uidá. Falava sem parar e contou que tinham decepado a cabeça de um homem na frente dela, depois que os agarraram em Ketu e estavam a caminho de Uidá. Esse homem tinha um machucado na perna, que parecia inflamada, e caía muito, levando mais alguns para o chão junto com ele. Irritados por terem que parar a todo momento e com medo de que ele levasse os outros a se machucarem também, os lançados mandaram que ele se ajoelhasse, e com um só golpe arrancaram a cabeça dele. Depois, tirando o resto do corpo da amarra da corda, fizeram com que todos seguissem caminho, como se nada tivesse acontecido. A Tanisha disse que ainda tinha sangue dele na roupa dela e que estava ficando com medo de que lhe cortassem o corpo na altura da barriga, onde um ferimento também estava começando a inflamar. Os lançados tinham feito aquele ferimento encostando um ferro quente na barriga dela e de muitos outros, o mesmo ferro para todos, dizendo que eles eram encomendas da mesma pessoa. O machucado da Tanisha estava doendo e a minha avó desejou ter ali algumas ervas para secar a ferida.
Quando serviram a refeição, a minha avó benzeu a água e me deu para que eu a jogasse em cima do machucado da Tanisha, pois talvez isso já ajudasse. Outras pessoas também pediram, pois tinham o mesmo problema. A minha avó benzeu muitas águas e rezou para Xelegbatá, o vodum das pestes e das doenças, que poderia curar todos eles, se Deus quisesse, mas nunca se sabe dos quereres de Deus. O Deus dela, que eu já sabia ser o mesmo de todos, só que com outros nomes. Depois disso, foi como se muitos recobrassem a fé em seus orixás, deuses, voduns e antepassados, entoando cantos que pediam proteção e cura, invocando os eguns e a companhia dos espíritos ancestrais da terra, dos pássaros e das plantas, pedindo malame. A minha avó disse que estava cansada e preferia morrer, o que achava que não ia demorar muito, pois sentia a presença dos amigos abikus. Na escuridão, ela já tinha visto o Kokumo e a minha mãe, e disse saber que a Taiwo estava querendo ir com eles, embora não fosse um abiku. A Taiwo já quase não falava ou se mexia, mas de vez em quando reclamava por não conseguir respirar direito e por doerem as costas e a cabeça. O remédio da Taiwo, que continuava sendo distribuído junto com todas as refeições, a minha avó passava para mim, que me curava por nós três, visto que ela também não queria o dela, dizendo que já tinha vivido o suficiente.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

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