Foi
logo depois de uma noite terrível, com o navio jogando de um lado
para outro, que a Taiwo começou a se separar de mim. Uma noite de
tempestade ou de mar com raiva, quando ficamos ouvindo um rugido
fortíssimo martelar o casco do navio. Muitos acharam que era o
grande monstro das águas querendo mais sacrifícios de gente viva,
por não se contentar com os que já tinham sido atirados. O monstro
sentia o nosso cheiro, o cheiro de carneiros frescos, mesmo que
sujos, que atravessava as paredes do navio e provocava a sua fome.
Muitos eram os gritos de desespero quando o navio pendia
perigosamente para um dos lados, como se estivesse sendo puxado por
garras que queriam tombá-lo e tomar tudo o que levava dentro. A
tormenta só parou ao amanhecer, quando então começamos a prestar
atenção ao que estava acontecendo dentro do navio.
A
Tanisha parecia ter enlouquecido, e nem mesmo apanhar dos guardas foi
capaz de fazê-la interromper um riso agudo e forçoso, que acabou
sendo imitado por algumas pessoas. A Taiwo teve febre e, como muitos
outros, falava coisas sem sentido, como se ainda estivéssemos em
Savalu. Conversava com a minha mãe e com o Kokumo, cantava músicas
de roda, dizia que estava feliz e surpresa por vê-los ali, pois
achava que tinham morrido. Os guardas apareciam de vez em quando para
perguntar se alguém mais tinha morrido e foram avisados de que
muitos, não apenas a Taiwo, tinham febre. Os doentes mais graves
foram levados para cima, e tínhamos certeza de que nunca mais os
veríamos. Serviam comida todos os dias, às vezes até duas vezes ao
dia, mas ninguém mais se atrevia a levá-la até o porão. Eram
escolhidos e desamarrados dez homens, que tinham permissão para sair
e buscar as vasilhas. Quase sempre a escolha recaía sobre os
muçurumins, talvez por serem os mais quietos, ao contrário do que
demonstraram no início da viagem. Eles primeiro serviam os seus e
depois os outros homens, sendo que nós, as mulheres, éramos sempre
deixadas por último. A Aja e a Jamila diziam salamaleco e faziam um
cumprimento com as cabeças sem olhar para eles, nem mesmo quando era
o Issa, o marido delas. A nós, as outras mulheres, eles não
dirigiam uma só palavra nem respondiam quando queríamos apenas
agradecer.
A
febre da Taiwo durava mais tempo e ficava mais alta a cada dia, e
quando encostei no braço da minha avó para chamar a sua atenção
para isso, percebi que também estava quente. Ela então disse para
eu me manter o mais afastada possível, para não pegar a doença.
Naquele dia, a portinhola se abriu e os guardas chamaram dois pretos,
que subiram e voltaram com remédios, que fomos obrigados a tomar sob
a ameaça de virarmos comida de peixe se nos recusássemos. Isto
porque perceberam que muitos de nós preferiam morrer antes de chegar
ao estrangeiro. Eu tomei, a maioria fingiu que tomou, inclusive a
minha avó, que disse que antes ser comida de peixe que de gente,
completando que isso só valia para alguém da idade dela, não para
alguém da minha idade. A minha avó me obrigou a ficar com a dose
que lhe cabia, dizendo ser ordem da minha mãe.
A
Tanisha, mesmo tendo tomado o remédio e parado de rir, estava longe
de ser a mulher que eu tinha conhecido no barracão de Uidá. Falava
sem parar e contou que tinham decepado a cabeça de um homem na
frente dela, depois que os agarraram em Ketu e estavam a caminho de
Uidá. Esse homem tinha um machucado na perna, que parecia inflamada,
e caía muito, levando mais alguns para o chão junto com ele.
Irritados por terem que parar a todo momento e com medo de que ele
levasse os outros a se machucarem também, os lançados mandaram que
ele se ajoelhasse, e com um só golpe arrancaram a cabeça dele.
Depois, tirando o resto do corpo da amarra da corda, fizeram com que
todos seguissem caminho, como se nada tivesse acontecido. A Tanisha
disse que ainda tinha sangue dele na roupa dela e que estava ficando
com medo de que lhe cortassem o corpo na altura da barriga, onde um
ferimento também estava começando a inflamar. Os lançados tinham
feito aquele ferimento encostando um ferro quente na barriga dela e
de muitos outros, o mesmo ferro para todos, dizendo que eles eram
encomendas da mesma pessoa. O machucado da Tanisha estava doendo e a
minha avó desejou ter ali algumas ervas para secar a ferida.
Quando
serviram a refeição, a minha avó benzeu a água e me deu para que
eu a jogasse em cima do machucado da Tanisha, pois talvez isso já
ajudasse. Outras pessoas também pediram, pois tinham o mesmo
problema. A minha avó benzeu muitas águas e rezou para Xelegbatá,
o vodum das pestes e das doenças, que poderia curar todos eles, se
Deus quisesse, mas nunca se sabe dos quereres de Deus. O Deus dela,
que eu já sabia ser o mesmo de todos, só que com outros nomes.
Depois disso, foi como se muitos recobrassem a fé em seus orixás,
deuses, voduns e antepassados, entoando cantos que pediam proteção
e cura, invocando os eguns e a companhia dos espíritos ancestrais da
terra, dos pássaros e das plantas, pedindo malame. A minha
avó disse que estava cansada e preferia morrer, o que achava que não
ia demorar muito, pois sentia a presença dos amigos abikus. Na
escuridão, ela já tinha visto o Kokumo e a minha mãe, e disse
saber que a Taiwo estava querendo ir com eles, embora não fosse um
abiku. A Taiwo já quase não falava ou se mexia, mas de vez em
quando reclamava por não conseguir respirar direito e por doerem as
costas e a cabeça. O remédio da Taiwo, que continuava sendo
distribuído junto com todas as refeições, a minha avó passava
para mim, que me curava por nós três, visto que ela também não
queria o dela, dizendo que já tinha vivido o suficiente.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
Nenhum comentário:
Postar um comentário