sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Corpo de baile

 


Dez anos depois, os resultados da revolução acenada surgiram nesta obra prodigiosa, que de chofre atirava o leitor no labirinto de que já falamos. É verdade que epígrafes tiradas de Plotino e de Ruysbroeck, tão inesperadas ao limiar de um conjunto de romances regionais, punham-no de sobreaviso. O título dava a entender a existência de ligações íntimas entre as peças de um conjunto, de um plano oculto que as unia; as epígrafes exortavam à procura de um ou vários sentidos escondidos.
O livro tinha nada menos de sete romances inseparavelmente ligados ao cenário mineiro de imensos chapadões semidesertos, vastos horizontes e feéricos espetáculos naturais em perpétua mudança, que infunde em seus habitantes atração pelo mistério e pelo sobrenatural, temores vagos, crenças e superstições estranhas, medos cósmicos. O autor geralmente escolhe como personagens indivíduos marginais e por isso pouco modificados pelo convívio social, mais acessíveis às forças invisíveis do ambiente: crianças, loucos, mendigoscangaceiros, vaqueiros. Eles é que formam o elenco num teatro onde não há separação completa entre palco e plateia, autor e personagens. O mais das vezes conhecemo-los em momentos de crise quando, acuados pelo amor, pela doença, ou pela morte, desesperadamente procuram tomar consciência de si mesmos, de compreenderem o sentido de sua vida.
Quem tenta resumir qualquer uma dessas extensas narrativas, perceberá logo as dificuldades da tarefa. Por mais que se esforce, não conseguirá encerrar num esquema a riqueza dos motivos, o emaranhamento de fios, a secção de planos múltiplos. “Uma estória de amor”, por exemplo, relata uma festa de Manuelzão, chegado de menino desamparado a encarregado de uma fazenda. Já no fim da vida, impelido pela ânsia de perpetuar-se, inaugura com um banquete a capela que acaba de construir. Em trilhos quase paralelos correm a ação exterior (a sequência da festa, a chegada dos convidados, o cerimonial do banquete, o seu decurso) e a íntima (o embate de inquietações surdas no espírito tosco do anfitrião, torturado por ideias de vida falha, solidão, morte próxima). Depois, as duas linhas convergem para um remate brusco: da boca de um velho mendigo brota uma canção épica, milagre cuja vaga intuição integra a atmosfera da festa e apaga os tristes símbolos da frustração de Manuelzão: o riacho que secou, o cavour que ele almejou por toda a existência e que estava fora da moda, quando, afinal, ele se achou em condições de adquiri-lo.
Peça não menos sugestiva é “O recado do morro”, onde testemunhamos a gênese de outra canção no decorrer de uma expedição (mais uma das suas mágicas viagens pelo sertão). O núcleo da canção brota do espírito perturbado de um louco, é alimentado e desenvolvido pela cooperação casual de outros alucinados e é acabado por um bardo popular que lhe dá forma e sentido. A viagem da comitiva e o nascer da canção operam-se simultaneamente e a conclusão desta prefigura o fim trágico daquela. Um recado infralógico da atmosfera e da paisagem transmuda-se em verso através da cooperação de uma sequela de anormais, de senso embotado, mas de sentidos apurados.
A menção de apenas dois romances não significa menosprezo pelos cinco outros, apenas decorre do fato de estarmos restritos à mera amostragem pelos limites deste estudo. Esta Seleta traz trechos de uma terceira estória, “Campo geral”, talvez suficientes para gravar na memória a singela figura do menino Miguilim, mini poeta plantado por um capricho do destino num campo agreste do sertão, mas que apenas faz pressentir a perturbadora riqueza de motivações que tece em seu redor o ambiente que o cria e amolga.
Se os temas e os ambientes do livro ampliavam e prolongavam os de Sagarana, suas inovações estilísticas eram ainda mais radicais. Era impossível não perceber que se tratava dos produtos de consciente pesquisa formal, uma estonteante experimentação criadora que, de início, perturbou muita gente. Era fenômeno inédito aquele estilo nitidamente “oral”, mas que não correspondia in totum à expressão de nenhuma região, nenhuma classe e nenhuma época, sendo uma mistura personalíssima e inimitável de artifício e de espontaneidade.
Haurindo a duas mãos na rica fonte da língua popular de Minas Gerais, João Guimarães Rosa estende a aplicação dos processos de derivação e das tendências sintáticas do povo, muitas delas nem registradas, e cria uma língua própria, de grande força envolvente. Obedecendo ora à exigência íntima de uma expressividade e matização infinitas, ora a um sensualismo brincalhão que se compraz em novas sonoridades, submete o idioma a verdadeira atomização. A invenção de onomatopeias sem conta, a livre permutação de prefixos verbais, a atribuição de novos regimes, a ousada inversão das categorias gramaticais, a multiplicação das desinências afetivas são algumas dessas fecundas arbitrariedades que, mais de uma vez, se abonam na prática de outras línguas, cujas reminiscências o poliglota nem sempre soube ou quis reprimir. A falta de dissociação entre autor e personagens faz com que complicados conteúdos intelectuais venham a revestir-se de modismos populares. Palavras mortas ressuscitam, outras, vivas, são submetidas a transformações violentas, novas surgem revelando falhas até então despercebidas da língua ou sugerindo a existência de noções, sensações e fenômenos ainda não incorporados em nossa percepção.

Paulo Rónai, em Rosa & Rónai: O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador

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