Dez
anos depois, os resultados da revolução acenada surgiram nesta obra
prodigiosa, que de chofre atirava o leitor no labirinto de que já
falamos. É verdade que epígrafes tiradas de Plotino e de
Ruysbroeck, tão inesperadas ao limiar de um conjunto de romances
regionais, punham-no de sobreaviso. O título dava a entender a
existência de ligações íntimas entre as peças de um conjunto, de
um plano oculto que as unia; as epígrafes exortavam à procura de um
ou vários sentidos escondidos.
O
livro tinha nada menos de sete romances inseparavelmente ligados ao
cenário mineiro de imensos chapadões semidesertos, vastos
horizontes e feéricos espetáculos naturais em perpétua mudança,
que infunde em seus habitantes atração pelo mistério e pelo
sobrenatural, temores vagos, crenças e superstições estranhas,
medos cósmicos. O autor geralmente escolhe como personagens
indivíduos marginais e por isso pouco modificados pelo convívio
social, mais acessíveis às forças invisíveis do ambiente:
crianças, loucos, mendigoscangaceiros, vaqueiros. Eles é que formam
o elenco num teatro onde não há separação completa entre palco e
plateia, autor e personagens. O mais das vezes conhecemo-los em
momentos de crise quando, acuados pelo amor, pela doença, ou pela
morte, desesperadamente procuram tomar consciência de si mesmos, de
compreenderem o sentido de sua vida.
Quem
tenta resumir qualquer uma dessas extensas narrativas, perceberá
logo as dificuldades da tarefa. Por mais que se esforce, não
conseguirá encerrar num esquema a riqueza dos motivos, o
emaranhamento de fios, a secção de planos múltiplos. “Uma
estória de amor”, por exemplo, relata uma festa de Manuelzão,
chegado de menino desamparado a encarregado de uma fazenda. Já no
fim da vida, impelido pela ânsia de perpetuar-se, inaugura com um
banquete a capela que acaba de construir. Em trilhos quase paralelos
correm a ação exterior (a sequência da festa, a chegada dos
convidados, o cerimonial do banquete, o seu decurso) e a íntima (o
embate de inquietações surdas no espírito tosco do anfitrião,
torturado por ideias de vida falha, solidão, morte próxima).
Depois, as duas linhas convergem para um remate brusco: da boca de um
velho mendigo brota uma canção épica, milagre cuja vaga intuição
integra a atmosfera da festa e apaga os tristes símbolos da
frustração de Manuelzão: o riacho que secou, o cavour que
ele almejou por toda a existência e que estava fora da moda, quando,
afinal, ele se achou em condições de adquiri-lo.
Peça
não menos sugestiva é “O recado do morro”, onde testemunhamos a
gênese de outra canção no decorrer de uma expedição (mais uma
das suas mágicas viagens pelo sertão). O núcleo da canção brota
do espírito perturbado de um louco, é alimentado e desenvolvido
pela cooperação casual de outros alucinados e é acabado por um
bardo popular que lhe dá forma e sentido. A viagem da comitiva e o
nascer da canção operam-se simultaneamente e a conclusão desta
prefigura o fim trágico daquela. Um recado infralógico da atmosfera
e da paisagem transmuda-se em verso através da cooperação de uma
sequela de anormais, de senso embotado, mas de sentidos apurados.
A
menção de apenas dois romances não significa menosprezo pelos
cinco outros, apenas decorre do fato de estarmos restritos à mera
amostragem pelos limites deste estudo. Esta Seleta traz
trechos de uma terceira estória, “Campo geral”, talvez
suficientes para gravar na memória a singela figura do menino
Miguilim, mini poeta plantado por um capricho do destino num campo
agreste do sertão, mas que apenas faz pressentir a perturbadora
riqueza de motivações que tece em seu redor o ambiente que o cria e
amolga.
Se
os temas e os ambientes do livro ampliavam e prolongavam os de
Sagarana, suas inovações estilísticas eram ainda mais
radicais. Era impossível não perceber que se tratava dos produtos
de consciente pesquisa formal, uma estonteante experimentação
criadora que, de início, perturbou muita gente. Era fenômeno
inédito aquele estilo nitidamente “oral”, mas que não
correspondia in totum à expressão de nenhuma região,
nenhuma classe e nenhuma época, sendo uma mistura personalíssima e
inimitável de artifício e de espontaneidade.
Haurindo
a duas mãos na rica fonte da língua popular de Minas Gerais, João
Guimarães Rosa estende a aplicação dos processos de derivação e
das tendências sintáticas do povo, muitas delas nem registradas, e
cria uma língua própria, de grande força envolvente. Obedecendo
ora à exigência íntima de uma expressividade e matização
infinitas, ora a um sensualismo brincalhão que se compraz em novas
sonoridades, submete o idioma a verdadeira atomização. A invenção
de onomatopeias sem conta, a livre permutação de prefixos verbais,
a atribuição de novos regimes, a ousada inversão das categorias
gramaticais, a multiplicação das desinências afetivas são algumas
dessas fecundas arbitrariedades que, mais de uma vez, se abonam na
prática de outras línguas, cujas reminiscências o poliglota nem
sempre soube ou quis reprimir. A falta de dissociação entre autor e
personagens faz com que complicados conteúdos intelectuais venham a
revestir-se de modismos populares. Palavras mortas ressuscitam,
outras, vivas, são submetidas a transformações violentas, novas
surgem revelando falhas até então despercebidas da língua ou
sugerindo a existência de noções, sensações e fenômenos ainda
não incorporados em nossa percepção.
Paulo Rónai, em Rosa & Rónai: O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador
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