sábado, 21 de setembro de 2024

AS RÃS | Drama em nove atos

 


Ato III

Sala de audiência da delegacia. Há apenas uma mesa comprida e, sobre ela, um telefone. Flâmulas e certificados de condecoração pendurados na parede.

A policial Wei, sentada, sinaliza a Chen Sobrancelha que sente na cadeira do outro lado da mesa. Chen veste a mesma roupa: túnica e véu pretos.

WEI (formal, fala como novata) Cidadã, faça o favor de se sentar.
CHEN S. (do nada) Cadê os dois tambores? Não devia ter dois tambores na entrada?
WEI Que tambores?
CHEN S. Antigamente sempre tinha tambores, por que vocês não colocaram lá? Sem eles, como o povo vai denunciar as injustiças?
WEI Você está falando dos yamen, as sedes de governo da sociedade feudal! Estamos no socialismo, os yamen já deixaram de existir faz tempo!
CHEN S. Mas não no governo de Kaifeng…
WEI Você viu isso na novela, não foi? O magistrado Bao, chefe do governo de Kaifeng…
CHEN S. Quero falar com o magistrado Bao.
WEI Cidadã, está na sala de audiência da delegacia da rua Binhe e eu sou a policial de plantão, Wei Ying. Pode me contar seus problemas, vou tomar nota e informar a meus superiores.
CHEN S. Mas meu problema é muito grande e só o magistrado Bao consegue resolver.
WEI Cidadã, hoje ele não se encontra. Por que não me conta seus problemas e me encarrego de informá-los ao magistrado? O que acha?
CHEN S. Promete?
WEI Prometo! (aponta a cadeira à frente) Sente-se, por favor.
CHEN S. Esta cidadã que vos fala não se atreve a se sentar.
WEI Falei para se sentar, pode se sentar.
CHEN S. Esta que vos fala agradece pelo assento!
WEI Aceita um copo d’água?
CHEN S. Esta que vos fala não deseja beber.
WEI Cidadã, vamos deixar de lado esse teatro todo. Como se chama?
CHEN S. Meu nome original era Chen Sobrancelha, mas essa Chen já morreu. Ou melhor, metade dela está morta, a outra metade ainda é viva. Por isso, não sei mais meu próprio nome.
WEI Cidadã, está brincando comigo? Ou quer que eu brinque com você? Isto aqui é uma delegacia de polícia, é um lugar sério.
CHEN S. Eu tinha as sobrancelhas mais lindas do Nordeste de Gaomi, daí o meu nome. Agora não tenho mais… Não tenho mais sobrancelhas (estridente), nem cílios, nem cabelos, não tenho mais por que ser chamada de Sobrancelha.
WEI (dando-se conta da situação) Cidadã, se não se importar, pode tirar o véu?
CHEN S. Não!
WEI Se não me engano, você é vítima do incêndio da Fábrica de Brinquedos Dongli, não é?
CHEN S. Você é muito inteligente.
WEI Estava na academia de polícia quando vi na TV a reportagem sobre o incêndio. Esses capitalistas não têm nenhum escrúpulo! Eu me solidarizo, do fundo do coração, com o seu sofrimento. Se deseja pedir indenização pelo acidente, é melhor procurar um tribunal, o Comitê do Partido, a prefeitura, ou até a imprensa.
CHEN S. Mas você não conhece o mandarim Bao, o Justo? Só ele pode resolver meu problema.
WEI (a contragosto) Está bem, pode falar. Vou fazer todo o possível para transmitir suas reivindicações a meus superiores.
CHEN S. Quero processar as pessoas que roubaram o meu bebê.
WEI Quem roubou seu bebê? Não se afobe, conte com calma. Acho melhor tomar um copo d’água para molhar a garganta. Sua voz já está rouca (serve um copo de água e entrega-o a Sobrancelha).
CHEN S. Não quero beber. Sei que você quer ver o meu rosto quando eu estiver bebendo água. Odeio o meu rosto, e também odeio que os outros vejam o meu rosto.
WEI Mil desculpas, não era minha intenção.
CHEN S. Depois do acidente, só olhei uma vez no espelho. Desde então, fiquei com ódio do espelho e de qualquer objeto que reflita a imagem. Eu queria me matar assim que terminasse de pagar as dívidas do meu pai, mas agora não quero mais morrer. Se eu me matar, meu bebê vai morrer de fome. Se eu me matar, meu bebê vai ficar órfão. Meu filho está chorando, escute… Está rouco de tanto chorar, quero amamentá-lo. Meus seios parecem balões de tão inchados, vão estourar logo. Mas eles esconderam minha criança…
WEI Quem são eles?
CHEN S. (olha para a porta em alerta) São rãs do tamanho de uma tampa de panela, que mugem como bois. São rãs ferozes que comem crianças…
WEI (levanta-se para fechar a porta) Moça, fique tranquila. Estas paredes são à prova de som.
CHEN S. Estão por toda parte, agem em conluio com gente do governo.
WEI Mas Bao, o Justo, não tem medo deles.
CHEN S. (levanta-se da cadeira e ajoelha-se no chão) Mandarim Bao, o abuso que sofri é profundo como o mar, peço-vos fazer justiça por esta humilde cidadã.
WEI Pode contar.
CHEN S. Com vossa permissão, excelência, esta que vos fala tem por nome Chen Sobrancelha e é natural do Nordeste de Gaomi. Meu humilde pai, Chen Nariz, crendo na superioridade dos homens sobre as mulheres, engravidou minha humilde mãe fora do planejamento para ter um menino. Infelizmente seu plano foi descoberto, minha humilde mãe teve de se esconder e foi perseguida no rio por funcionários do governo. Por desgraça, minha humilde mãe morreu logo depois de dar à luz na jangada. Meu pai ficou muito desapontado ao ver que tinha mais uma filha. De início, me abandonou à própria sorte, mais tarde me levou para casa. Como nasci fora da cota, meu humilde pai teve de pagar uma multa de cinco mil e oitocentos iuanes. Desde então, começou a beber todos os dias e, quando bêbado, batia em mim e na minha irmã. Mais tarde, fui para o Sul, com minha humilde irmã, Chen Orelha, buscar um emprego em Cantão. Por um lado para pagar a dívida do meu humilde pai, por outro, para encontrar uma vida decente. Éramos, as duas irmãs, beldades reconhecidas, se quiséssemos seguir o mau caminho, ganharíamos dinheiro fácil. Mas guardamos nossa honra como a flor de lótus que se mantém pura em meio à lama. Então, um incêndio inesperado levou a vida de minha irmã e destruiu meu rosto…

Wei enxuga as lágrimas com um lenço de papel.

CHEN S. Minha irmã morreu para me salvar… Irmã… Por que me salvou? Antes morrer do que viver como um fantasma vivo…
WEI Malditos capitalistas! Deviam ser todos presos e fuzilados!
CHEN S. Eles foram bons, pagaram vinte mil iuanes como indenização por minha irmã, arcaram com todas as despesas médicas durante minha internação no hospital, e me pagaram quinze mil. Dei todo esse dinheiro ao meu pai e disse a ele: “Pai, o que pagou de multa para me ter fora da cota, mais os juros ao longo desses vinte anos, estou lhe devolvendo com esse dinheiro. A partir de hoje, não lhe devo mais nada!”.
WEI Seu pai também não é flor que se cheire.
CHEN S. Por pior que seja, é meu pai, você não pode falar mal dele.
WEI O que ele fez com o dinheiro?
CHEN S. O que mais ele faria? Comeu, bebeu, fumou, torrou tudo!
WEI Esse é um imprestável da pior espécie.
CHEN S. Como disse, você não pode falar mal do meu pai.
WEI (falando para si mesma) Estou me preocupando à toa. E depois?
CHEN S. Depois, fui trabalhar no ranário.
WEI Conheço essa empresa, é muito famosa. Ouvi dizer que estão extraindo um produto cosmético da pele das rãs. Se conseguirem, vão registrar uma patente mundial.
CHEN S. São justamente eles que quero processar.
WEI Continue.
CHEN S. A criação de rãs é só fachada, o verdadeiro negócio é produção de bebês.
WEI Produção de bebês?
CHEN S. Eles contrataram um grupo de jovens para gestar os bebês para os ricos que precisam de filhos.
WEI Existe um negócio assim?
CHEN S. Na empresa existem vinte quartos secretos e vinte mulheres contratadas, umas casadas, outras solteiras; umas feias, outras bonitas; umas engravidam com sexo, outras, sem sexo…
WEI Espera aí! Como assim? Engravidar com ou sem sexo?
CHEN S. Pare de se fazer de desentendida! Não sabe dessas coisas? Você ainda é virgem?
WEI Mas não entendo mesmo…
CHEN S. Engravidar com sexo é dormir com o homem, morar com ele como um casal até engravidar. Sem sexo é injetar o esperma do homem no útero da mulher com um tubo! Você é virgem?
WEI E você?
CHEN S. Claro que sou.
WEI Mas acabou de dizer que teve um bebê.
CHEN S. Tive um filho, sim, mas continuo virgem. Eles fizeram uma enfermeira gorda inserir um tubo de esperma no meu útero, por isso engravidei e tive a criança. Mas nunca dormi com um homem, sou pura, sou virgem!
WEI Quem são eles mesmo?
CHEN S. Isso não posso falar, ou vão matar meu filho…
WEI É o gordo do ranário? Como se chama mesmo? Ah, Bochecha, não é?
CHEN S. Cadê Yuan Bochecha? Eu estava à procura dele. Desgraçado, você mentiu para mim, vocês me enrolaram! Falaram que o meu bebê nasceu morto e me mostraram um gato esfolado dizendo que era meu filho. Encenaram uma versão moderna de “O príncipe e o guaxinim”. Tudo isso para ficarem com meu dinheiro, tudo isso para me impedir de procurar meu filho. Não quero dinheiro, nem gosto de dinheiro, se eu gostasse, em Cantão, tinha aceitado a proposta de um empresário taiwanês de me pagar um milhão por três anos. Mas quero o meu filho. Meu filho é a melhor criança do mundo. Mandarim Bao, a justiça está em vossas mãos…
WEI Assinaram algum contrato com você para ser barriga de aluguel?
CHEN S. Assinaram, sim. Pagaram um terço na assinatura. Quando o bebê nascesse e fosse entregue sem problemas, aí pagariam o restante.
WEI Assim pode ficar um pouco complicado, mas tudo bem, o mandarim Bao vai julgar o caso. Pode continuar.
CHEN S. Me disseram que o tubo de esperma veio de um homem importante. Um gênio, com genes excelentes. Disseram que, para ter um bebê saudável, ele parou de fumar e beber. Comia um abalone e dois pepinos-do-mar por dia. Esse cuidado todo durou nada menos que seis meses.
WEI (irônica) Investiu pesado, hein?
CHEN S. Criar bons descendentes é uma tarefa de muito longo prazo, não se devem poupar esforços. Disseram que esse homem importante viu a minha foto antes de ser desfigurada e achou que eu tinha uma beleza mestiça.
WEI Já que não gosta de dinheiro, por que aceitou ser barriga de aluguel?
CHEN S. Eu disse que não gosto de dinheiro?
WEI Isso saiu da sua própria boca.
CHEN S. (tentando se lembrar) Agora me lembrei, é que meu pai foi hospitalizado depois de um acidente de carro. A barriga de aluguel era para pagar as despesas de internação.
WEI Você é mesmo uma boa filha. Um pai desses é melhor morto mesmo.
CHEN S. Já pensei assim também, mas ele é meu pai, afinal de contas.
WEI Por isso falei que você é uma boa filha.
CHEN S. Sei que meu filho não morreu porque ouvi o choro dele quando nasceu… Escute, ele está chorando de novo… Meu filho, não tomou nem um bocado do leite de sua mãe desde que chegou a este mundo… Coitadinho dele…

O delegado abre a porta e entra.

DELEGADO Que choradeira é essa? Não pode falar mais baixo?
CHEN S. (de joelhos) Magistrado Bao, excelência, fazei-me justiça…
DELEGADO O que é isso? Que bagunça é essa?
WEI (em voz baixa) Delegado, isto pode ser um tremendo caso criminal! (entrega as anotações ao delegado e este as folheia). Pode envolver crime de prostituição organizada e crime de tráfico de crianças!
CHEN S. Mandarim Bao, resgatai meu filho…
DELEGADO Bem, Chen Sobrancelha, vou aceitar suas queixas por escrito. Vou relatar tudo ao mandarim. Agora pode voltar para casa e esperar por notícias.

Sai Chen Sobrancelha.

WEI Delegado!
DELEGADO Você é recém-chegada, não está a par da situação. Essa mulher é vítima do incêndio da Fábrica de Brinquedos Dongli, e faz anos que não anda boa da cabeça. Merece nossa compaixão, mas o que mais podemos fazer?
WEI Mas delegado, eu vi que…
DELEGADO Você viu o quê?
WEI (relutante) A secreção de leite nos seios dela!
DELEGADO Pode ser suor, não? Wei, você foi empossada há pouco tempo. Nossa profissão exige que fiquemos alerta, mas sem excessos de zelo!

Cortina.

Mo Yan, em As rãs

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