quinta-feira, 12 de setembro de 2024

AS RÃS – Drama em nove atos


Ato II

Sob luz verde, o palco parece um sombrio mundo subaquático. Ao fundo, há uma caverna em meio a finos capins. Da caverna chega de vez em quando o coaxo de rãs e o choro de bebês. Uma dúzia de bebês está pendurada acima do palco. Eles agitam braços e pernas e choram juntos.

À frente da cena, estão posicionadas duas bancadas para moldar bonecos de barro. Sentados atrás dessas bancadas, Hao Mão Grande e Qin He amassam a argila, totalmente concentrados.

Entra a tia, arrastando-se para fora da caverna. Veste uma túnica preta folgada, os cabelos despenteados.

TIA (como se recitasse uma lição decorada da cartilha) Meu nome é Wan Coração, tenho setenta e três anos. Trabalhei como ginecologista por exatos cinquenta anos. Já estou aposentada, e mesmo assim continuo a trabalhar dia e noite sem descanso. Pelas minhas mãos nasceram ao todo nove mil oitocentos e oitenta e três bebês… (ergue a cabeça, olha para os bebês pendurados). Crianças, que lindo é seu choro! Quando o escuto, fico mais tranquila; quando não escuto, sinto um vazio no coração. É o som mais lindo do mundo; é o réquiem da tia. Que pena não ter gravador naquele tempo para gravar o choro dos recém-nascidos. Enquanto vivesse, escutaria esse som todos os dias; quando morresse, tocaria a gravação no meu enterro. O pranto de nove mil oitocentos e oitenta e três bebês em coro deve ser uma música muito bonita… (fascinada). Que seu choro comova o céu e a terra! Que seu choro leve a tia ao paraíso…
QIN (sombrio) Cuidado que os choros podem te arrastar para o inferno!
TIA (caminha com leveza por entre os bebês pendurados, como um peixe nadando alegre; dá tapinhas no bumbum das crianças) Chorem, meus tesouros, chorem! Silêncio indica problema. Choro é sinal de saúde…
HAO Biruta!
QIN De quem está falando?
HAO De mim mesmo!
QIN Se falava de si, tudo bem, falar de mim é que não pode (com arrogância). Porque sou o escultor mais famoso do Nordeste de Gaomi. Se tem gente que não acha, problema deles. No trabalho com a argila, sou o número um do mundo. O homem tem de saber como se valorizar, se você mesmo não acreditar que é alguém, quem mais vai levá-lo a sério? Os bonecos que produzo são verdadeiras obras de arte, cada um vale cem dólares.
HAO Ouviram? Agora sabem o que é pouca-vergonha? Quando eu brincava com argila, ele ainda estava catando titica de galinha para comer. Eu fui condecorado mestre do artesanato folclórico! E você, é o quê?
QIN Camaradas e amigos, ouviram isso? Hao Mão Grande, mais do que sem-vergonha, você é descarado mesmo, é um maluco, é obsessivo-compulsivo. Passou a vida inteira moldando os bonecos, mas até agora não conseguiu concluir nenhum. Você sempre destrói o que faz antes de terminar, achando que o próximo sempre será melhor que o último. Quem tudo quer nada tem. Camaradas e amigos, vejam as mãos dele, tão grandes que nem parecem de gente, são patas de rã, pés de pato, com membranas entre os dedos…
HAO (irritado, joga um punhado de barro em Qin He) Pare de falar merda! Seu perturbado, saia já daqui!
QIN Quem é você para me mandar embora?
HAO Você está na minha casa.
QIN Quem pode provar que esta é a sua casa? (aponta para a tia e os bebês pendurados). Ela pode provar isso? E eles?
HAO (aponta para a tia) Ela com certeza tem como provar.
QIN Por que ela é capaz de fazer isso?
HAO Ela é a minha mulher!
QIN Por que diz que ela é sua mulher?
HAO Porque eu me casei com ela.
QIN Quem pode provar que você se casou com ela?
HAO Porque dormi com ela!
QIN (segura a cabeça angustiado) Não…! Sua mentirosa! Você me enganou. Desperdicei minha juventude por sua causa. Você me prometeu, você disse que não casaria com mais ninguém, a vida inteira!
TIA (irrita-se com Hao Mão Grande) Para que você o provocou? Tínhamos combinado.
HAO Esqueci.
TIA Você se esqueceu? Vou lembrá-lo. Eu disse que eu podia me casar com você, mas você teria de aceitá-lo, tratá-lo como meu irmão mais novo, tolerar suas birutices, suas bobagens e seus disparates; cuidando de lhe dar comida para comer, um teto para morar e roupa para vestir.
HAO Também preciso tolerar que ele durma com você, certo?
TIA Louco! Os dois enlouqueceram!
QIN (aponta para Hao Mão Grande com raiva) O louco aqui é ele. Eu sou muito normal!
HAO Não adianta gritar, não adianta se irritar. Não importa se seu punho fica mais alto que uma árvore, não importa se saltam cerejas vermelhas de seus olhos, se crescem cornos de carneiro na sua cabeça, se voam pássaros de sua boca, se o seu corpo se enche de pelos de porco, nada disso pode mudar o fato de que você é louco! Isso é um fato gravado na pedra!
TIA (sarcástica) Esse palavrório todo, aprendeu lendo o roteiro do Girino?
HAO (aponta para Qin He) A cada dois meses você precisa voltar para o manicômio de Feng Er Shan e passar três meses internado. Lá você veste camisa de força, toma sedativos e, se precisar, senta na cadeira elétrica. Transformam você num saco de ossos, e você lá, de olhar vidrado, parecendo um órfão africano. Seu rosto fica cheio de merda de mosca, feito um emplastro velho. Já faz dois meses que você fugiu, não faz? Amanhã ou depois precisa voltar, não precisa? (imita uma sirene de ambulância, Qin He treme da cabeça aos pés, ajoelha-se no chão). Da próxima vez que entrar lá, não sai mais. Se um maníaco como você ficar solto, vai trazer fatores de desarmonia para esta sociedade harmoniosa!
TIA Chega!
HAO Se eu fosse médico, trancaria você lá dentro para sempre. Ia espancá-lo com um bastão elétrico, ia deixá-lo espumando pela boca, tendo convulsões, em estado de choque, sem poder acordar nunca mais. E mesmo que acordasse, estaria completamente sem memória (Qin He abraça a cabeça e rola no chão, solta gritos assustadores).
HAO Isso é o que se chama de rocambole de burro, uma péssima interpretação. Continue, continue rolando. Olhe, sua cara está mais comprida; fique aí, suas orelhas estão crescendo; daqui a pouco vai se transformar em um burro de puxar moinho (Qin He, de quatro no chão, com a bunda inclinada para o alto, imita um burro puxando o moinho). Isso, assim mesmo. É um ótimo burro! Depois de moer essas duas medidas de feijão, ainda tem uma medida de sorgo. Um bom burro não precisa tapar os olhos, porque não come a farinha do moinho. Trabalhe direito e seu dono não vai te maltratar. Já preparei a ração para você se fartar.
A tia tenta ajudar Qin He a se levantar, mas ele morde a mão dela.

TIA Você é um ingrato.
HAO Eu já disse, não tem nada a ver com você. Cuide bem daquelas crianças, não deixe que passem frio nem fome. Mas também não pode deixar que comam demais ou que vistam muita roupa. É como você sempre fala: para o bebê ficar bem, deixe-o sentir um pouquinho de fome e frio (volta-se para Qin He). Por que parou de puxar? Burro preguiçoso. Só trabalha à base de chicotada?
TIA Pare de perturbá-lo! Ele é doente!
HAO Ele é doente? Acho que você é que é doente!

Qin He desmaia com a boca espumando.

HAO Levante-se, pare de se fingir de morto! Esse truque é velho. Esse truque eu já vi inúmeras vezes. Até o besouro no monturo sabe. Quer me assustar, se fingindo de morto? Bah! Não tenho medo disso! Melhor você morrer mesmo! Morra agora, não demore nem mais um minuto!

Às pressas, a tia tenta socorrer Qin He. Hao Mão Grande a impede.

HAO (amargurado) Minha paciência já chegou ao limite. Não posso mais permitir que você use aquela forma de socorrê-lo…

A tia se move para a esquerda, Hao Mão Grande a acompanha para a esquerda; a tia se move para a direita, Hao Mão Grande a segue para a direita.

TIA Ele é um doente! Para a mente de um médico, há apenas dois tipos de pessoas neste mundo: os saudáveis e os doentes. Mesmo que ele tenha batido em meus pais, se estiver tendo um ataque, eu deixarei de lado o rancor para tentar salvá-lo; mesmo que o irmão tenha um ataque epiléptico enquanto me estupra, vou tirá-lo do meu corpo para socorrê-lo.
HAO (de repente retesa o corpo e murmura amargurado) Enfim você admitiu que teve sei lá que envolvimento com os dois irmãos.
TIA Isso já faz parte da história, da história de uma civilização milenar. Quem reconhece a história é materialista histórico; quem a nega, é idealista histórico.
TIA (senta-se ao lado de Qin He, abraça-o como se fosse um bebê, balança-o e murmura uma canção) Quando penso em você, meu coração se parte… quando penso em você, quero chorar mas as lágrimas não saem… quero escrever, mas não sei o endereço, quero cantar, mas não lembro a letra… quero beijar, mas não acho sua boca, quero abraçar, mas não acho você…

Sai da caverna um menino de aventalzinho verde (com uma rã bordada) e cabeça lisa como uma melancia. Ele lidera um bando de rãs (interpretadas por crianças), sentadas em cadeiras de rodas, apoiadas em muletas ou com os braços enfaixados. O menino verde grita: “Pague a dívida! A dívida!”. As “rãs” coaxam.
A tia grita, solta Qin He e foge do menino verde e do bando de rãs no palco.
Hao Mão Grande e Qin He, já desperto, bloqueiam o ataque do bando de rãs para proteger a tia, que sai de cena. O menino verde e as rãs a seguem.

Cortina.

Mo Yan, em As rãs

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