quinta-feira, 5 de setembro de 2024

As cem maneiras de estudar idiomas


Tendo passado parte da vida a ensinar, estudar e esquecer línguas, sempre me interessei pelo método de aprendê-las; menos pela maneira meio inconsciente da criança, a quem as inculcam na escola, ou por aquela, custosa mas cômoda, de ir passar uma temporada nos países onde elas se falam, do que pelo esforço consciente do autodidata que, fechado num quarto, com alguns livros, experimenta, a cada palavra nova, uma sensação de prazer que não lhe dariam os ensinamentos ministrados por um mestre vivo.
Provavelmente não haverá nenhum método certo para aprender uma língua sem mestre; isto é, haverá tantos métodos quantos indivíduos. O espírito alemão, quimérico de tão sistemático, produziu, é verdade, séries de manuais uniformes para o aprendizado solitário de todos os idiomas. Lembro-me ainda desses grandes estojos de papelão, cada um com vinte cadernos enormes, que encerrava o sumo de cada língua. Nada faltava nessas obras excelentes: leituras, gramática, exercícios, tabelas, transcrição fonética, vocabulário… Apenas era preciso ser alemão para não perder a coragem e a paciência antes de chegar ao fim; e, quem ali chegasse, ficaria fatalmente com a impressão árida de ter esgotado completamente o idioma estudado e perderia o entusiasmo inicial.
Quão mais excitante a gente atirar-se de ponta-cabeça na obra de um bom escritor do idioma ignorado, e, armado apenas de um dicionário e de uma gramática, partir à descoberta de ignoradas regiões! Se esse modo de estudar não mira a nenhum intuito imediatista, no final das contas não é menos prático do que outro qualquer. Aí, também, se requer uma grande persistência, mas o caminho é bem mais acidentado, cheio de encontros inesperados e divertidos. Cumpre, porém, não desistir depois de haver passado três horas sobre uma frase de cinco palavras, perfeitamente claras quando separadas. Fica-se exposto, igualmente, a tomar por uma originalidade do autor um rodeio comum do idioma ou por uma característica deste último uma simples fantasia poética; mas são precisamente esses enganos que encantam, com a condição de se observar a regra essencial do jogo: a de só recorrer a um professor ou conhecedor mais adiantado do idioma em casos extremos.
Às vezes os jornais referem casos de poliglotismo, mas não se mostram interessados em divulgar os métodos pelos quais foi obtido o resultado. Há tempos, li uma nota acerca de um funcionário sueco, o qual, tendo de fazer duas viagens diárias de uma hora entre a casa e a repartição, aproveitava-as metodicamente e, aposentado ao cabo de trinta anos de serviço, via-se dono de doze idiomas. À falta de pormenores no tocante ao método empregado, podemos concluir, apenas, que nos compartimentos dos trens suecos não há muita conversa; e, também, que suas condições de conforto devem ser diferentes das da nossa Central.
O certo é que os momentos perdidos em espera forçada, em filas, em condução podem ser aproveitados otimamente pelo aprendiz de línguas. Um ex-aluno meu, senhor já de idade, para tal fim trazia sempre consigo num dos bolsos do colete regular número de papeletas, nas quais inscrevera palavras francesas com a tradução no verso. Nas folguinhas do dia, retirava-as e examinava-as uma por uma, arrumando depois as que sabia num segundo e as que não sabia num terceiro bolso do mesmo colete, e reservando um quarto às que principiava a saber. Por mais satisfatório que lhe tenha sido o resultado, o método, infelizmente, não é adotável no Rio, onde as únicas pessoas que andam de colete, os condutores de bonde, são precisamente aquelas que não podem consagrar ao estudo o tempo que passam em condução.
Ocorre-me ainda o caso de um poeta meu conhecido, boêmio e vadio, que um dia resolveu aprender o italiano, decorando todo o dicionário de Cappuccini. Com uma assiduidade que surpreendeu a todos, chegou ao fim da letra A, onde desistiu. Encontrei-o mais tarde na Itália e observei-lhe mais de uma vez a conversa pitoresca. Tinha uma riqueza vocabular extraordinária: nomes de bichos e plantas, provérbios e rifões, expressões de sabor clássico e termos regionais, mas todos começados por A; ao passar dessa letra, não fazia senão balbuciar.
Mais atraentes, porém, do que tais casos de esquisitões anônimos, são os de escritores de valor, isto é, de pessoas para as quais as línguas aprendidas se tornaram efetivamente meios de alargar o horizonte, de ampliar a sua visão do mundo e das coisas. É pena os testemunhos serem tão raros.
Mariano Catalina, ao contar a vida de Alarcón, consigna o original sistema inventado por este: “O método de que se valeu para entender as obras escritas em línguas que não sabia é a um tempo tão engenhoso e simples e demonstra com tal evidência e energia a capacidade de seu autor que não podemos renunciar a descrevê-lo… Sem gramáticas e sem dicionários, com dois exemplares da Jerusalém libertada, um em francês e outro em castelhano, conseguiu entender a língua de Montaigne; para conhecer aquela em que Tasso tinha escrito, contentou-se com a Eneida em latim e em italiano.” Método pessoal este, sem dúvida, e que tem a desvantagem (ou o prazer, segundo a pessoa) de forçar o aprendiz a reinventar toda a gramática de uma língua.
Muito valioso o depoimento de Alfieri sobre seus estudos do grego. O poeta italiano, famoso por sua força de vontade (foi quem escolheu como tema: Volli, sempre volli, fortissimamente volli), pôs-se a estudar a língua de Homero com quarenta e oito anos, principalmente por teimosia, ao notar que os caracteres gregos lhe perturbavam a vista e que tinha grandes dificuldades em pronunciar as palavras gregas. Levou meses a ler em alta voz textos de que quase nada entendia, ao mesmo tempo em que decorava as regras da gramática; não somente acabou entendendo os clássicos mais difíceis como se tornou tradutor de alguns deles. De todas as façanhas de sua vida acidentada, foi dessa que mais se orgulhou, a ponto de inventar uma ordem de Homero e de se nomear a si mesmo cavaleiro dela. É com essa confissão algo pueril e ao mesmo tempo comovedora que termina a sua autobiografia.
Nada encontrei a respeito do método adotado por Tolstói, outro estudioso do grego que iniciou a aprendizagem ainda mais tarde, depois dos cinquenta anos. Romain Rolland cita-lhe uma carta inédita em que se patenteia todo o deslumbramento que lhe trouxe o novo estudo: “Sem o conhecimento do grego, não há instrução… Estou convencido de que até agora eu nada sabia de tudo aquilo que no verbo humano é realmente belo, de uma beleza simples.” (O deslumbramento foi tão durável que dois anos depois a esposa de Tolstói lhe pedia que abandonasse o estudo, que, segundo ela, o alheava do presente, fazendo-o como que um homem antigo, um morto.)
Dos escritores que aprendiam línguas com mestres, merecem nota dois casos bastante divertidos. Com doze anos, Benjamin Constant era um menino de inteligência precoce, mas terrivelmente indócil e convencido. Seus professores precisavam de recursos especiais para fazê-lo estudar. Um deles veio propor-lhe que inventassem uma língua que fosse apenas deles. O menino apaixonou-se pela ideia e os dois puseram-se à obra inventando sucessivamente um alfabeto, um dicionário e uma gramática. O trabalho ia de vento em popa, e dentro em pouco a língua desconhecida estava completa, rica e harmoniosa, mais bela que todas as conhecidas. O que não era de admirar, pois era a língua grega.
O caso contado por Montaigne não é menos curioso. Seu pai, convencido de que a inferioridade dos franceses da época em relação aos gregos e aos romanos da Antiguidade provinha do fato de perderem muito tempo com o estudo desses dois idiomas, lembrou-se de confiar o filho pequeno, em vez de a uma ama-seca, a um professor de latim que também dava lições ao resto do pessoal da casa. Assim, até a idade de seis anos, o menino não ouviu em torno de si outra língua senão a de Cícero: daí a facilidade com que ele se familiarizou com as letras clássicas. Montaigne pai, que pode ser considerado um dos inventores do método direto, excogitou depois outro sistema para o filho aprender o grego, fazendo com que aprendesse as declinações e as conjugações como que jogando bola.
Em tudo isso, porém, as gerações novas levam vantagem às antigas: enquanto estas desperdiçavam tempo em aprender as línguas alheias, aquelas descobriam a maneira de viver muito bem sem saber nem sequer a própria.
1950

Paulo Rónai, em Como aprendi o português e outras aventuras

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