Tendo
passado parte da vida a ensinar, estudar e esquecer línguas, sempre
me interessei pelo método de aprendê-las; menos pela maneira meio
inconsciente da criança, a quem as inculcam na escola, ou por
aquela, custosa mas cômoda, de ir passar uma temporada nos países
onde elas se falam, do que pelo esforço consciente do autodidata
que, fechado num quarto, com alguns livros, experimenta, a cada
palavra nova, uma sensação de prazer que não lhe dariam os
ensinamentos ministrados por um mestre vivo.
Provavelmente
não haverá nenhum método certo para aprender uma língua sem
mestre; isto é, haverá tantos métodos quantos indivíduos. O
espírito alemão, quimérico de tão sistemático, produziu, é
verdade, séries de manuais uniformes para o aprendizado solitário
de todos os idiomas. Lembro-me ainda desses grandes estojos de
papelão, cada um com vinte cadernos enormes, que encerrava o sumo de
cada língua. Nada faltava nessas obras excelentes: leituras,
gramática, exercícios, tabelas, transcrição fonética,
vocabulário… Apenas era preciso ser alemão para não perder a
coragem e a paciência antes de chegar ao fim; e, quem ali chegasse,
ficaria fatalmente com a impressão árida de ter esgotado
completamente o idioma estudado e perderia o entusiasmo inicial.
Quão
mais excitante a gente atirar-se de ponta-cabeça na obra de um bom
escritor do idioma ignorado, e, armado apenas de um dicionário e de
uma gramática, partir à descoberta de ignoradas regiões! Se esse
modo de estudar não mira a nenhum intuito imediatista, no final das
contas não é menos prático do que outro qualquer. Aí, também, se
requer uma grande persistência, mas o caminho é bem mais
acidentado, cheio de encontros inesperados e divertidos. Cumpre,
porém, não desistir depois de haver passado três horas sobre uma
frase de cinco palavras, perfeitamente claras quando separadas.
Fica-se exposto, igualmente, a tomar por uma originalidade do autor
um rodeio comum do idioma ou por uma característica deste último
uma simples fantasia poética; mas são precisamente esses enganos
que encantam, com a condição de se observar a regra essencial do
jogo: a de só recorrer a um professor ou conhecedor mais adiantado
do idioma em casos extremos.
Às
vezes os jornais referem casos de poliglotismo, mas não se mostram
interessados em divulgar os métodos pelos quais foi obtido o
resultado. Há tempos, li uma nota acerca de um funcionário sueco, o
qual, tendo de fazer duas viagens diárias de uma hora entre a casa e
a repartição, aproveitava-as metodicamente e, aposentado ao cabo de
trinta anos de serviço, via-se dono de doze idiomas. À falta de
pormenores no tocante ao método empregado, podemos concluir, apenas,
que nos compartimentos dos trens suecos não há muita conversa; e,
também, que suas condições de conforto devem ser diferentes das da
nossa Central.
O
certo é que os momentos perdidos em espera forçada, em filas, em
condução podem ser aproveitados otimamente pelo aprendiz de
línguas. Um ex-aluno meu, senhor já de idade, para tal fim trazia
sempre consigo num dos bolsos do colete regular número de papeletas,
nas quais inscrevera palavras francesas com a tradução no verso.
Nas folguinhas do dia, retirava-as e examinava-as uma por uma,
arrumando depois as que sabia num segundo e as que não sabia num
terceiro bolso do mesmo colete, e reservando um quarto às que
principiava a saber. Por mais satisfatório que lhe tenha sido o
resultado, o método, infelizmente, não é adotável no Rio, onde as
únicas pessoas que andam de colete, os condutores de bonde, são
precisamente aquelas que não podem consagrar ao estudo o tempo que
passam em condução.
Ocorre-me
ainda o caso de um poeta meu conhecido, boêmio e vadio, que um dia
resolveu aprender o italiano, decorando todo o dicionário de
Cappuccini. Com uma assiduidade que surpreendeu a todos, chegou ao
fim da letra A, onde desistiu. Encontrei-o mais tarde na Itália e
observei-lhe mais de uma vez a conversa pitoresca. Tinha uma riqueza
vocabular extraordinária: nomes de bichos e plantas, provérbios e
rifões, expressões de sabor clássico e termos regionais, mas todos
começados por A; ao passar dessa letra, não fazia senão balbuciar.
Mais
atraentes, porém, do que tais casos de esquisitões anônimos, são
os de escritores de valor, isto é, de pessoas para as quais as
línguas aprendidas se tornaram efetivamente meios de alargar o
horizonte, de ampliar a sua visão do mundo e das coisas. É pena os
testemunhos serem tão raros.
Mariano
Catalina, ao contar a vida de Alarcón, consigna o original sistema
inventado por este: “O método de que se valeu para entender as
obras escritas em línguas que não sabia é a um tempo tão
engenhoso e simples e demonstra com tal evidência e energia a
capacidade de seu autor que não podemos renunciar a descrevê-lo…
Sem gramáticas e sem dicionários, com dois exemplares da Jerusalém
libertada, um em francês e outro em castelhano, conseguiu entender a
língua de Montaigne; para conhecer aquela em que Tasso tinha
escrito, contentou-se com a Eneida em latim e em italiano.” Método
pessoal este, sem dúvida, e que tem a desvantagem (ou o prazer,
segundo a pessoa) de forçar o aprendiz a reinventar toda a gramática
de uma língua.
Muito
valioso o depoimento de Alfieri sobre seus estudos do grego. O poeta
italiano, famoso por sua força de vontade (foi quem escolheu como
tema: Volli, sempre volli, fortissimamente volli), pôs-se a estudar
a língua de Homero com quarenta e oito anos, principalmente por
teimosia, ao notar que os caracteres gregos lhe perturbavam a vista e
que tinha grandes dificuldades em pronunciar as palavras gregas.
Levou meses a ler em alta voz textos de que quase nada entendia, ao
mesmo tempo em que decorava as regras da gramática; não somente
acabou entendendo os clássicos mais difíceis como se tornou
tradutor de alguns deles. De todas as façanhas de sua vida
acidentada, foi dessa que mais se orgulhou, a ponto de inventar uma
ordem de Homero e de se nomear a si mesmo cavaleiro dela. É com essa
confissão algo pueril e ao mesmo tempo comovedora que termina a sua
autobiografia.
Nada
encontrei a respeito do método adotado por Tolstói, outro estudioso
do grego que iniciou a aprendizagem ainda mais tarde, depois dos
cinquenta anos. Romain Rolland cita-lhe uma carta inédita em que se
patenteia todo o deslumbramento que lhe trouxe o novo estudo: “Sem
o conhecimento do grego, não há instrução… Estou convencido de
que até agora eu nada sabia de tudo aquilo que no verbo humano é
realmente belo, de uma beleza simples.” (O deslumbramento foi tão
durável que dois anos depois a esposa de Tolstói lhe pedia que
abandonasse o estudo, que, segundo ela, o alheava do presente,
fazendo-o como que um homem antigo, um morto.)
Dos
escritores que aprendiam línguas com mestres, merecem nota dois
casos bastante divertidos. Com doze anos, Benjamin Constant era um
menino de inteligência precoce, mas terrivelmente indócil e
convencido. Seus professores precisavam de recursos especiais para
fazê-lo estudar. Um deles veio propor-lhe que inventassem uma língua
que fosse apenas deles. O menino apaixonou-se pela ideia e os dois
puseram-se à obra inventando sucessivamente um alfabeto, um
dicionário e uma gramática. O trabalho ia de vento em popa, e
dentro em pouco a língua desconhecida estava completa, rica e
harmoniosa, mais bela que todas as conhecidas. O que não era de
admirar, pois era a língua grega.
O
caso contado por Montaigne não é menos curioso. Seu pai, convencido
de que a inferioridade dos franceses da época em relação aos
gregos e aos romanos da Antiguidade provinha do fato de perderem
muito tempo com o estudo desses dois idiomas, lembrou-se de confiar o
filho pequeno, em vez de a uma ama-seca, a um professor de latim que
também dava lições ao resto do pessoal da casa. Assim, até a
idade de seis anos, o menino não ouviu em torno de si outra língua
senão a de Cícero: daí a facilidade com que ele se familiarizou
com as letras clássicas. Montaigne pai, que pode ser considerado um
dos inventores do método direto, excogitou depois outro sistema para
o filho aprender o grego, fazendo com que aprendesse as declinações
e as conjugações como que jogando bola.
Em
tudo isso, porém, as gerações novas levam vantagem às antigas:
enquanto estas desperdiçavam tempo em aprender as línguas alheias,
aquelas descobriam a maneira de viver muito bem sem saber nem sequer
a própria.
1950
Paulo Rónai, em Como aprendi o português e outras aventuras
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