sexta-feira, 6 de setembro de 2024

A morte



Mal soubemos que era dia, pois entrava um pouco de luz por pequenas frestas no madeirame, e um homem que estava ao lado do Benevides, o Aziz, disse que ele não se mexia. Tentaram acordá-lo, mas foi em vão. Alguém disse que poderia ser fome, mas o Aziz apalpou o pescoço do Benevides e encontrou suas mãos endurecidas agarradas à corda. Uma mão na entrada e outra na saída da volta que a corda dava no pescoço, esticada de maneira a não permitir a passagem de ar nenhum. O Benevides tinha se matado, e muita gente disse que ele tinha feito o certo, que antes virar carneiro de bicho do mar, pois provavelmente seria lançado ao mar, do que carneiro de branco no estrangeiro. Ninguém sabia o que fazer, alguns gritaram para ver se os guardas apareciam, mas nada aconteceu. O calor e o cheiro forte de suor e de excrementos misturado ao cheiro da morte, não ainda o do corpo morto, mas da morte em si, faziam tudo ficar mais quieto, como se o ar ganhasse peso, fazendo pressão sobre nós. Já estávamos todos muito fracos, pois era o início do quarto dia sem comer. A minha avó quase não falava, às vezes soltava um suspiro, um murmurar de orações. A Taiwo ficava dizendo que estava com fome, mas depois esqueceu. Eu também tentava esquecer que tinha fome, procurando na memória a aparência do Benevides entre os vários rostos para os quais muitas vezes fiquei olhando dentro do barracão, ainda em África, mas não consegui. Nenhum deles parecia se chamar Benevides. Ainda naquele dia abriram a portinhola e mandaram que nos sentássemos o mais junto possível da parede do navio. Era difícil nos mexermos, e os guardas se aborreceram, gritando que se não quiséssemos comida era para avisar, porque eles não dispunham do dia todo, tinham mais o que fazer além de dar comida a preto. Usavam o chicote e todas as línguas que conheciam para que entendêssemos. Talvez tivessem nos deixado tantos dias sem comer para que, mesmo com raiva, ficássemos suficientemente fracos para não reagir. Estávamos com fome bastante para evitar qualquer problema que adiasse ainda mais a distribuição da comida, que era carne salgada, farinha e feijão. Cada um recebeu a sua parte em cumbucas de casca de coco, e foram distribuídas algumas vasilhas de água que passaram de mão em mão e não foram suficientes nem para metade de nós, tamanha a sede.
Retiraram o corpo do Benevides e a noite foi tranquila, dormimos quase agradecendo o favor que tinham feito ao nos darem comida. Mas, na manhã seguinte, três outros homens apareceram mortos, tinham se enforcado durante a noite. Ao retirarem os corpos, os guardas avisaram que se mais alguém se matasse, o corpo ia ficar ali mesmo, até o fim da viagem que mal tinha começado, como um castigo para todos os outros. A partir daquele aviso, quase ninguém dormiu direito para vigiar os companheiros, porque não queria ter ao lado um cadáver apodrecendo. Talvez mais pelo incômodo de sabê-lo morto e de vê-lo sendo devorado por fora, porque por dentro já nos sentíamos um pouco mortos. Quanto ao cheiro do possível cadáver, provavelmente seria apenas mais um cheiro misturado aos outros, que nos esforçávamos em vão para ignorar. Ao entrar no porão, os guardas tinham panos amarrados sobre o nariz e ficavam apenas o tempo suficiente para fazerem o que tinham ido fazer, distribuir comida ou chicotear quem gritava ou reclamava das condições de viagem. Às vezes alguém puxava um canto triste, um ou outro tentava acompanhar durante alguns versos, mas não ia além disso. A dor cantada era própria demais, única demais para ter acompanhamento, e dividir a dor alheia parecia falta de respeito. Pelo menos era o que eu sentia, pois ficava com vergonha de cantar junto alguma música que conhecia, mesmo que ninguém mais ouvisse, mesmo que fosse só para mim. Eu esperava a pessoa terminar e então recomeçava, sozinha.
Não nos davam comida todos os dias, e me acostumei a isso. Acho que todos nos acostumamos, gostando de uma certa sensação de conforto causada pela fome e pela fraqueza. Era como se o espírito se separasse do corpo e ficasse livre e solto, tanto da carne quanto do porão do navio. Eu olhava para a Taiwo e, de repente, a alma que partilhávamos se transportava imediatamente para Uidá, ou para Savalu, e brincávamos todos juntos, a Taiwo, eu, o Kokumo, a minha mãe e a minha avó. Certas cantigas voltavam à memória, as que a minha mãe cantava para nos fazer dormir e as que a minha avó cantava enquanto tecia ou conversava com os voduns. Acho que acontecia a mesma coisa com a minha avó, porque às vezes eu olhava para ela e a pegava sorrindo, abrindo a boca para dizer palavras apenas para dentro dela mesma, entregue à moleza que nos fazia estar no presente e no passado ao mesmo tempo, como se desta maneira pudéssemos evitar o futuro incerto, que ninguém sabia onde ou como seria.
Alguns dias depois do suicídio dos três homens, morreu uma das mulheres. De onde eu estava não foi possível vê-la, mas sabia quem era. Ela tinha marido no navio e os dois ficavam sempre juntos no barracão. O marido chorou e se lamentou em voz alta, querendo saber o que tinha acontecido. Mas nós, as mulheres que estávamos mais perto, não soubemos dizer. Ela apenas tinha fechado os olhos e morrido, sem que ninguém percebesse. Nem sei como percebemos depois, porque, na maior parte do tempo, ela tinha ficado quieta, sem se mexer, e talvez já estivesse doente desde o embarque. Foi a primeira a morrer sem causa aparente, e nos dias seguintes outras pessoas adoeceram, homens, mulheres, hauçás, ketus, peles, ijexás… Alguns diziam que era porque estávamos ali havia muitos dias, no meio daquela imundície toda, respirando um ar que não era de gente respirar, sem ver o sol, sem tomar chuva, sem nos lavarmos, sem comer e sem beber água direito. A Taiwo começou a chorar porque o vestido novo já estava muito sujo, e a minha avó disse que o lavaria quando chegássemos ao estrangeiro. Mas eu preferia chegar daquele jeito mesmo, bem suja para que os brancos não quisessem nos fazer de carneiros. Carneiros de verdade eram limpos. E também para que não nos quisessem de presente, nem a mim nem à Taiwo, pois eu não gostava da ideia de dar sorte para gente que tratava gente pior do que se trata carneiro.
No dia em que morreram mais duas pessoas, um homem e uma mulher, apareceram alguns brancos para ver o que estava acontecendo, mas não chegaram a entrar no porão. Olharam pela portinhola aberta no teto e logo mandaram fechar. Voltaram mais tarde, com os rostos cobertos por panos que cheiravam muito bem, ainda melhor que os cheiros das ervas que a minha mãe costumava passar no corpo, em Savalu, antes de ir dançar no mercado. Somente os olhos deles estavam de fora, e percebi que tinham um olhar de nojo e medo. Não nos tocavam, e quando queriam que um de nós se virasse de frente, ou de costas, ou de lado, cutucavam de longe com bastões de madeira. Escolheram alguns homens fortes e fizeram com que eles tirassem dali mais de dez pessoas, todas muito doentes, que depois soubemos terem sido jogadas ao mar. Os homens que tinham ajudado a carregar os doentes para fora do porão não queriam contar nada, pois tinham sido avisados de que seriam punidos se contassem. Mas um deles não se amedrontou e, em um tom de voz bastante baixo, contou o que foi repassado de ouvido em ouvido, quase um sussurro, como se o ar abafado pudesse grudar nas palavras e carregá-las para fora do porão até os ouvidos dos homens que eram capazes de jogar pessoas vivas ao mar, para alimentar os peixes. E nem eram todos brancos, os guardas. Alguns eram até mais pretos do que eu, ou a minha avó e a Taiwo, mas agiam como se não fossem, como se trabalhar ao lado de brancos mudasse a cor da pele deles e os fizesse melhores do que nós.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

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