Mal
soubemos que era dia, pois entrava um pouco de luz por pequenas
frestas no madeirame, e um homem que estava ao lado do Benevides, o
Aziz, disse que ele não se mexia. Tentaram acordá-lo, mas foi em
vão. Alguém disse que poderia ser fome, mas o Aziz apalpou o
pescoço do Benevides e encontrou suas mãos endurecidas agarradas à
corda. Uma mão na entrada e outra na saída da volta que a corda
dava no pescoço, esticada de maneira a não permitir a passagem de
ar nenhum. O Benevides tinha se matado, e muita gente disse que ele
tinha feito o certo, que antes virar carneiro de bicho do mar, pois
provavelmente seria lançado ao mar, do que carneiro de branco no
estrangeiro. Ninguém sabia o que fazer, alguns gritaram para ver se
os guardas apareciam, mas nada aconteceu. O calor e o cheiro forte de
suor e de excrementos misturado ao cheiro da morte, não ainda o do
corpo morto, mas da morte em si, faziam tudo ficar mais quieto, como
se o ar ganhasse peso, fazendo pressão sobre nós. Já estávamos
todos muito fracos, pois era o início do quarto dia sem comer. A
minha avó quase não falava, às vezes soltava um suspiro, um
murmurar de orações. A Taiwo ficava dizendo que estava com fome,
mas depois esqueceu. Eu também tentava esquecer que tinha fome,
procurando na memória a aparência do Benevides entre os vários
rostos para os quais muitas vezes fiquei olhando dentro do barracão,
ainda em África, mas não consegui. Nenhum deles parecia se chamar
Benevides. Ainda naquele dia abriram a portinhola e mandaram que nos
sentássemos o mais junto possível da parede do navio. Era difícil
nos mexermos, e os guardas se aborreceram, gritando que se não
quiséssemos comida era para avisar, porque eles não dispunham do
dia todo, tinham mais o que fazer além de dar comida a preto. Usavam
o chicote e todas as línguas que conheciam para que entendêssemos.
Talvez tivessem nos deixado tantos dias sem comer para que, mesmo com
raiva, ficássemos suficientemente fracos para não reagir. Estávamos
com fome bastante para evitar qualquer problema que adiasse ainda
mais a distribuição da comida, que era carne salgada, farinha e
feijão. Cada um recebeu a sua parte em cumbucas de casca de coco, e
foram distribuídas algumas vasilhas de água que passaram de mão em
mão e não foram suficientes nem para metade de nós, tamanha a
sede.
Retiraram
o corpo do Benevides e a noite foi tranquila, dormimos quase
agradecendo o favor que tinham feito ao nos darem comida. Mas, na
manhã seguinte, três outros homens apareceram mortos, tinham se
enforcado durante a noite. Ao retirarem os corpos, os guardas
avisaram que se mais alguém se matasse, o corpo ia ficar ali mesmo,
até o fim da viagem que mal tinha começado, como um castigo para
todos os outros. A partir daquele aviso, quase ninguém dormiu
direito para vigiar os companheiros, porque não queria ter ao lado
um cadáver apodrecendo. Talvez mais pelo incômodo de sabê-lo morto
e de vê-lo sendo devorado por fora, porque por dentro já nos
sentíamos um pouco mortos. Quanto ao cheiro do possível cadáver,
provavelmente seria apenas mais um cheiro misturado aos outros, que
nos esforçávamos em vão para ignorar. Ao entrar no porão, os
guardas tinham panos amarrados sobre o nariz e ficavam apenas o tempo
suficiente para fazerem o que tinham ido fazer, distribuir comida ou
chicotear quem gritava ou reclamava das condições de viagem. Às
vezes alguém puxava um canto triste, um ou outro tentava acompanhar
durante alguns versos, mas não ia além disso. A dor cantada era
própria demais, única demais para ter acompanhamento, e dividir a
dor alheia parecia falta de respeito. Pelo menos era o que eu sentia,
pois ficava com vergonha de cantar junto alguma música que conhecia,
mesmo que ninguém mais ouvisse, mesmo que fosse só para mim. Eu
esperava a pessoa terminar e então recomeçava, sozinha.
Não
nos davam comida todos os dias, e me acostumei a isso. Acho que todos
nos acostumamos, gostando de uma certa sensação de conforto causada
pela fome e pela fraqueza. Era como se o espírito se separasse do
corpo e ficasse livre e solto, tanto da carne quanto do porão do
navio. Eu olhava para a Taiwo e, de repente, a alma que partilhávamos
se transportava imediatamente para Uidá, ou para Savalu, e
brincávamos todos juntos, a Taiwo, eu, o Kokumo, a minha mãe e a
minha avó. Certas cantigas voltavam à memória, as que a minha mãe
cantava para nos fazer dormir e as que a minha avó cantava enquanto
tecia ou conversava com os voduns. Acho que acontecia a mesma coisa
com a minha avó, porque às vezes eu olhava para ela e a pegava
sorrindo, abrindo a boca para dizer palavras apenas para dentro dela
mesma, entregue à moleza que nos fazia estar no presente e no
passado ao mesmo tempo, como se desta maneira pudéssemos evitar o
futuro incerto, que ninguém sabia onde ou como seria.
Alguns
dias depois do suicídio dos três homens, morreu uma das mulheres.
De onde eu estava não foi possível vê-la, mas sabia quem era. Ela
tinha marido no navio e os dois ficavam sempre juntos no barracão. O
marido chorou e se lamentou em voz alta, querendo saber o que tinha
acontecido. Mas nós, as mulheres que estávamos mais perto, não
soubemos dizer. Ela apenas tinha fechado os olhos e morrido, sem que
ninguém percebesse. Nem sei como percebemos depois, porque, na maior
parte do tempo, ela tinha ficado quieta, sem se mexer, e talvez já
estivesse doente desde o embarque. Foi a primeira a morrer sem causa
aparente, e nos dias seguintes outras pessoas adoeceram, homens,
mulheres, hauçás, ketus, peles, ijexás… Alguns diziam que era
porque estávamos ali havia muitos dias, no meio daquela imundície
toda, respirando um ar que não era de gente respirar, sem ver o sol,
sem tomar chuva, sem nos lavarmos, sem comer e sem beber água
direito. A Taiwo começou a chorar porque o vestido novo já estava
muito sujo, e a minha avó disse que o lavaria quando chegássemos ao
estrangeiro. Mas eu preferia chegar daquele jeito mesmo, bem suja
para que os brancos não quisessem nos fazer de carneiros. Carneiros
de verdade eram limpos. E também para que não nos quisessem de
presente, nem a mim nem à Taiwo, pois eu não gostava da ideia de
dar sorte para gente que tratava gente pior do que se trata carneiro.
No
dia em que morreram mais duas pessoas, um homem e uma mulher,
apareceram alguns brancos para ver o que estava acontecendo, mas não
chegaram a entrar no porão. Olharam pela portinhola aberta no teto e
logo mandaram fechar. Voltaram mais tarde, com os rostos cobertos por
panos que cheiravam muito bem, ainda melhor que os cheiros das ervas
que a minha mãe costumava passar no corpo, em Savalu, antes de ir
dançar no mercado. Somente os olhos deles estavam de fora, e percebi
que tinham um olhar de nojo e medo. Não nos tocavam, e quando
queriam que um de nós se virasse de frente, ou de costas, ou de
lado, cutucavam de longe com bastões de madeira. Escolheram alguns
homens fortes e fizeram com que eles tirassem dali mais de dez
pessoas, todas muito doentes, que depois soubemos terem sido jogadas
ao mar. Os homens que tinham ajudado a carregar os doentes para fora
do porão não queriam contar nada, pois tinham sido avisados de que
seriam punidos se contassem. Mas um deles não se amedrontou e, em um
tom de voz bastante baixo, contou o que foi repassado de ouvido em
ouvido, quase um sussurro, como se o ar abafado pudesse grudar nas
palavras e carregá-las para fora do porão até os ouvidos dos
homens que eram capazes de jogar pessoas vivas ao mar, para alimentar
os peixes. E nem eram todos brancos, os guardas. Alguns eram até
mais pretos do que eu, ou a minha avó e a Taiwo, mas agiam como se
não fossem, como se trabalhar ao lado de brancos mudasse a cor da
pele deles e os fizesse melhores do que nós.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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