O
Adão, meu amigo, professor de biologia, já encantado, amava os
sapos. Dedicou sua vida a estudá-los. Estudava e admirava. Era capaz
de identificá-los não só por sua aparência física como também
pelo seu canto. Creio que o Adão achava os sapos bonitos. E é certo
que eles têm uma beleza que lhes é peculiar. O filósofo Ludwig
Feuerbach diria que para os sapos não existe nada mais belo que o
sapo e, se entre eles houvesse teólogos, haveriam de dizer que Deus
é um sapo. Cada forma de vida é o Bem Supremo para si mesma.
Eu
mesmo, sem ter a sensibilidade do Adão, escrevi um livro para
crianças em que um dos heróis é o sapo Gregório. Mas desejo
confessar que não acho os sapos bonitos. Bonita eu acho a sua
cantoria durante a noite, a despeito da sua falta de imaginação e
da sua monotonia. Mas o que ela perde em riqueza estética é
plenamente compensado pelo seu poder hipnótico, o que é bom para
fazer dormir.
Mas
o fato é que nós, humanos, não consideramos os sapos como animais
com que gostaríamos de conviver. Ter um cãozinho, um gato ou um
coelho como bichinho de estimação, tudo bem. Mas se o menino
quisesse ter um sapo como bichinho de estimação, os pais tratariam
de levá-lo logo a um psicólogo para saber o que havia de errado com
ele. Sapo é bicho de pesadelo.
Quem
sugere isso são as Escrituras Sagradas. Está relatado, no capítulo
oitavo do livro de Êxodo, que Deus, para dobrar a obstinação do
faraó egípcio que não queria deixar que o povo de Israel se fosse,
enviou-lhe uma série de pragas de horrores, uma delas sendo a dos
sapos. Diz o texto que a praga era de rãs, mas não faz muita
diferença.
Eis
que castigarei com rãs todos os teus territórios. O rio produzirá
rãs em abundância, que subirão e entrarão em tua casa, e no teu
quarto de dormir, e sobre o teu leito, e nas casas dos teus oficiais,
e sobre o teu povo, e nos teus fornos, e nas tuas amassadeiras.
Já
imaginaram o horror? A gente entra debaixo das cobertas e sente o
frio das rãs que lá estão. Morde o pão e dentro dele está uma rã
assada.
Nas
estórias infantis é a mesma coisa. A bruxa poderia ter transformado
o príncipe numa girafa, num tatu ou num gato. Escolheu transformá-lo
no mais nojento, um sapo. E há aquela outra estória em que o sapo
queria dormir na cama com a princezinha. Tão horrorizada ela ficou
de ter de dormir com um sapo que, para evitar os beijos e seus
desenvolvimentos inevitáveis, pegou-o pela perna e jogou-o contra a
parede. Esse ato teve efeito mágico, pois, ao cair no chão, o sapo
transformou-se em príncipe. Já aconselhei pessoas a lançar contra
a parede seus sapos e sapas conjugais, para ver se o contrafeitiço
funciona também para os humanos. Parece que não.
O
horror do sapo aparece também numa sugestiva expressão popular:
“ter de engolir sapo”. Por que não “ter de engolir gato”,
“ter de engolir borboleta”, “ter de engolir tico-tico”?
Porque mais nojento que sapo não existe.
Essa
expressão traz o sapo para o campo das atividades alimentares.
Engolir é comer. O ato de comer é presidido pelo paladar. O paladar
é uma função discriminatória. Ele separa o saboroso do não
saboroso. O saboroso é para ser engolido com prazer. O não
saboroso, o corpo se recusa a comer. Cospe. “Ter de engolir sapo”:
ser forçado a colocar dentro do corpo aquilo que é nojento,
repulsivo, viscoso, frio, mole.
Não
há forma de engolir sapo com prazer. Engolir um sapo é ser
estuprado pela boca. Há um ditado inglês que diz: “If you are
going to be raped, and there is nothing you can do about it, relax
and enjoy it”: se você vai ser estuprado e você não pode
fazer nada para impedi-lo, relaxe e trate de gozar o mais que puder.
Esse ditado sugere a possibilidade de sentir prazer em ser estuprado.
Pode até ser. A psicanálise me ensinou a aceitar a possibilidade
dos mais estranhos prazeres perversos. Mas não há relaxamento que
faça do ato de engolir um sapo uma experiência prazerosa.
Por
que engolir um sapo?
Há
pessoas que engolem sapos por medo. Bem que seria possível evitar a
repulsiva refeição: o sapo é um sapinho. Mas elas preferem engolir
o sapo a enfrentá-lo. Não têm coragem de pegá-lo e jogá-lo
contra a parede. Pessoas que fizeram do ato de engolir sapos um
hábito acabam por ficar parecidas com eles: andam aos pulos, sempre
rente ao chão e coaxam monotonamente.
Mas
há situações em que é inevitável engolir o sapo. Eu mesmo já
engoli muitos sapos e disto não me envergonho. O meu desejo, com
esta crônica, é dar uma contribuição ao saber psicanalítico, que
até agora fez silêncio sobre o assunto. Muitos dos sintomas
neuróticos que afligem as pessoas resultam de sapos engolidos e não
digeridos.
Tudo
começa com um encontro: à minha frente um sapo enorme, ameaçador,
com boca grande. A prudência me diz que é melhor engolir o sapo a
ser engolido por ele. É melhor ter um sapo dentro do estômago
(sapos engolidos nunca vão além do estômago) do que estar no
estômago do sapo.
Aí,
impotente e sem opções, deixo que ele entre na minha boca, aquela
massa mole e nojenta. É muito ruim. O estômago protesta, ameaça
vomitar. Explico-lhe as razões. Ele cessa os seus protestos,
resignado ao inevitável. Não consigo mastigar o sapo. Seria muito
pior. Engulo. Ele escorrega e cai no estômago.
Alimentos
não digeríveis são eliminados pelo aparelho digestivo de duas
formas: ou são expelidos pelo vômito ou são expelidos pela
diarreia. Os sapos são uma exceção. Não são digeridos, mas não
são expelidos nem pelas vias superiores nem pelas vias inferiores.
Os sapos se alojam no estômago. Transformam-no em morada. Ficam lá
dentro. Por vezes hibernam. Mas logo acordam e começam a mexer.
Ninguém
engole sapo de livre vontade. Engole porque não tem outro jeito. Tem
sempre alguém que nos obriga a engolir o sapo, à força. A pessoa
que nos obriga a engolir o sapo, a gente nunca mais esquece. Diz a
Adélia que “aquilo que a memória amou fica eterno”. Aí eu
acrescento algo que aprendi no Grande sertão. Conversa de
jagunços matadores. Diz um: “Mato, mas nunca fico com raiva”.
Retruca o outro, espantado: “Mas como?”. Explica o primeiro:
“Quem fica com raiva leva o outro para a cama”. É isso. A gente
leva para a cama a pessoa que nos obrigou a engolir o sapo. A raiva
também eterniza as pessoas. Não adianta falar em perdão. A gente
fica esperando o dia em que ela também terá de engolir um sapo. Ou,
como dizia uma propaganda antiga de loteria, a gente reza: “O seu
dia chegará...”.
Rubem Alves, em Palavras para desatar nós
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