Acho
que sou escritor porque tenho tido muitas aventuras. Como lemos desde
pequenos em biografias e almanaques, todo escritor vive metido em
grandes aventuras, caçando búfalos, lutando boxe, morando entre os
esquimós, pegando em armas pela liberdade da Grécia, dormindo com
Marylin Monroe e enchendo a cara em companhia de Fidel Castro. Minha
experiência de caça se resume a rolinhas fogo-pagou em Aracaju,
mas, em compensação, a parte aí do porre com Fidel Castro eu já
desempenhei. Não sei se ele notou, mas eu, o poeta peruano Antonio
Cisneros e o ator Gianfrancesco Guarnieri (no Peru conhecido
popularmente como Panchito Guarnieri) traçamos bem uns vinte mojitos
cada um, na noite em que Fidel apareceu para charlar na casa do
ministro da Cultura de Cuba. Ele não pode dizer que tomou um porre
na minha companhia (preferia daiquiris e, comparado a nós, parecia
um abstêmio), mas eu posso dizer que tomei um porre na companhia
dele. São coisas da existência aventurosa do escritor — minha
vida daria um romance.
Por
exemplo, certa feita fui fazendeiro no Arizona um dia inteiro, ganhei
um chapéu de cowboy, discuti problemas de irrigação e fiz
um discurso para os apaches (ou navajos; eu estava um pouco assanhado
e nunca me lembro se o discurso foi para os apaches e a dançadinha
foi na dança de chuva dos navajos, ou vice-versa). Tornar-se
fazendeiro no Arizona é muito mais fácil do que parece assim à
primeira vista, basta o sujeito estar no Arizona e ser um pouco
abestalhado — precisamente meu caso naquele dia.
Eu
integrava um grupo de estudantes brasileiros, que os americanos
estavam levando numa field trip ao Arizona. Americano gosta muito de
levar a gente para field trips, uns passeios cuja atividade principal
consiste em ouvir palestras feitas por um camarada de camisa de
colarinho, manga curta e fala anasalada, bebendo café em xícaras de
papel enormes e ganhando de presente um extraordinário número de
folhetos e livrinhos. E, claro, todo mundo usando crachá, porque
americano gosta de crachá ainda mais do que a Rede Globo, é
impressionante.
Então
a gente estava no Arizona, todos muito resignados e tomando xícara
após xícara daquele café na esperança de dar uma mão para a
balança comercial brasileira, e ouvindo palestras sobre projetos de
irrigação. Não que a gente estivesse particularmente interessada
em irrigação, mas não tem água no Arizona e aí eles ficam
orgulhosíssimos de qualquer reguinho que constroem, fazendo questão
de mostrá-lo pormenorizadamente aos visitantes. No segundo dia de
visitas a regos e calhas, atrasei-me por causa de um pernambucano que
não falava inglês e tinha medo até de entrar no elevador sozinho.
Como ele parecia sempre à beira de atacar os presentes a peixeiradas
(carregava um canivetão mestiço de peixeira), eu ficava ali
ajudando e acabava atrasado.
Desci
afobado para o saguão do hotel e, não vendo ninguém do grupo,
perguntei ao homem da recepção se ele não sabia onde estava o
pessoal. Ele perguntou meu nome, olhou uma lista e me entregou um
crachá. “O ônibus é aquele ali, já vai sair”, explicou,
apontando para a rua. Estranhei o crachá, porque já tinha um, mas
raciocinei que me encontrava na terra da fartura e havia que dar
saída para a produção da indústria crachaleira. Era diferente do
antigo e, estranhamente, dizia “Ribeiro-Brasil”. Se todo mundo
era do Brasil, por que a indicação do país? Bem, talvez fosse uma
coisa maior, com gente de outros lugares. Corri para o ônibus,
entrei, sentei, o motorista imediatamente fechou a porta e saiu
velozmente. Pela janela, aquelas montanhas e despenhadeiros que a
gente vê no cinema, por trás dos quais despontam as cabeças dos
índios antes do massacre do forte. Acho que passei alguns minutos
distraído com a paisagem e, quando resolvi olhar em torno e puxar
papo, bati o olho num rosto oriental e simpático a meu lado.
“Huan-Taiwan”, dizia o crachá. Será que há alguma cidade
paulista chamada Taiwan? — pensei rapidamente. Mas aí dei uma
panorâmica nos outros passageiros e descobri que, naturalmente,
estava no ônibus errado. Estava numa field-trip de
fazendeiros, é claro, no lugar de algum xará cujo pernambucano era
mais difícil que o meu e o atrasara ainda mais. No comecinho,
ensaiei ficar em pânico: se fosse uma viagem para outro Estado, por
exemplo, extraviando-me definitivamente do meu grupo? Mas tinha
despertado do devaneio exatamente com o motorista explicando que
estaríamos de volta ao hotel às sete horas da noite, mesma hora
prevista para os brasileiros. E aí passei o controle para o diabinho
que acompanha os escritores aventurosos, sujeitinho muito cínico,
mas de grande simpatia. Afinal, sempre tive a fantasia de ser
fazendeiro. “Quando Deus dá, a gente pega”, diz minha avó
alagoana, d. Amália.
Fiquei
imaginando que tipo de fazenda seria a minha. A primeira coisa que me
veio à cabeça foi cacau, mas achei que fingir de rico com oito
dólares no bolso podia ser arriscado. Cacau não. Que tal gado? Não,
podia ser que quisessem que eu montasse num cavalo e não sou chegado
ao hipismo. Além disso, para distinguir um boi de uma vaca, me vejo
obrigado até a ser mal interpretado. Milho! Milho eu manjo mais ou
menos, posso fazer até um charme, explicando como planto feijão no
meio do milharal. Claro! Grande fazendeiro de milho do Norte do país!
E ainda criava do lado umas galinhazinhas, umas cabrinhas, umas
árvores frutíferas, essas coisas de fazenda mesmo.
Vocês
não sabem como o fazendeiro de milho brasileiro tem prestígio no
Arizona, principalmente quando este fazendeiro fica assistindo à
televisão até tarde e aprende a fazer piada de americano. E também
adaptei ao gosto local aquela velha da surdinha que estava
presenciando a conversa de dois fazendeiros a respeito de um pé de
milho pequenininho que deu cada espiga destamanho, fiz grande
sucesso. Escolhido orador da turma para os apaches (ou navajos),
alinhavei palavras emocionadas sobre o homem e a terra, quase levando
o Fessenmeyer às lágrimas (o Fessenmeyer, plantador de trigo em
Iowa, era um dos americanos do grupo, que ficou muito meu amigo e
quis até visitar minha fazenda). Entre os navajos (ou apaches),
introduzi uns jogos de braço baianos na dança da chuva, prometi
enviar ao chefe um mandacaru de presente e ensinei como fazer
amendoim cozido.
Voltei
de chapéu de cowboy para o hotel e, de noite, ainda fui com o
Fessenmeyer ao Pussycat, taverna local de fino trato, onde as
garçonetes se vestiam de gatinhas (quer dizer, só os bigodes e o
rabinho, o resto quase nada, nada) e nós, fazendeiros, discutimos as
vantagens e desvantagens de destilar uísque lá na roça mesmo, em
vez de comprá-lo no armazém. Viajamos, cada um para seu canto, no
outro dia, nunca mais vi o Fessenmeyer ou o Huan (que plantava arroz
e ficou de me mandar umas sementes, mas nunca mandou). Talvez seja
por isso que, ao passar junto de uma dessas barraquinhas que vendem
milho verde aqui no Leblon, eu seja o único morador do Rio que pára,
respira fundo e sente uma certa saudade do Arizona. O escritor, além
de aventuroso, precisa ser original.
João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite
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