quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Ensaio da Paixão | III


Toco e o anjo

Toco tinha dois metros de altura e um anjo da guarda. Toda manhã a mesma angústia: abrir os olhos, piscar, sentir a vã esperança de liberdade, e afinal vê-lo, de novo, o maldito anjo — pendurado nas tarrafas e redes do quarto, escondido atrás dos caniços, varas e fios de pesca, olhando para ele, guardando-o a uma distância segura, sempre um pouco assustado, talvez até mesmo com vergonha de viver naquela indiscrição eterna. Não dormia, não sumia; somente guardava-o. Fosse Toco onde fosse, acompanhava-o o anjo miúdo, a dois, três metros de distância, com seu silencioso bater de asas — e sempre com medo, temendo a mão de Toco, as pedras que quase o acertavam, temendo a fúria, o ódio de Toco. Nesses ataques esporádicos, voava célere, desaparecendo por alguns instantes. Mas bastava Toco suspirar, fechar e abrir os olhos — e lá estava de novo o anjinho, na fresta da porta, no telhado, no galho de árvore, atrás das pedras, o olhar em Toco, alerta, mas respeitoso.
Por fim, acostumou-se com o anjo. Excepcionalmente, chegava a falar com ele, embora jamais ouvisse uma resposta: o anjinho era mudo. E Toco, ao se perceber falando, sentia um medo adicional: o de que percebessem seus monólogos, e bastava pensar nisso, na invasão do que tinha de mais íntimo, para odiar o anjo com mais força:
Um dia te acerto, desgraçado.
Outras vezes, nas noites melancólicas, de lua, filosofava:— Por que você não é um passarinho? Te botava na gaiola, ficava teu amigo.
E, quando bebia vinho com Edgar e depois vagava solitário pelos caminhos da ilha, preparava armadilhas, oferecia doces:
Vem aqui, meu anjo! Vem aqui perto, come um doce! — e a mão esquerda trêmula, pronta a agarrar e esgoelar a figurinha de asas.
Mas o anjo nunca se aproximava.
Naquela manhã de janeiro, acordou tarde e ficou na cama pensando na vida. Uma sonolência gostosa, o calor, a perspectiva da pesca e, principalmente, da Paixão que se aproximava, com a multidão de amigos, das mulheres que ele amava e que logo iriam povoar a ilha, como todos os anos. Sensação de preguiça e felicidade, a beleza serena do ritual de Cristo, as conversas e bebidas noite adentro, as mil paixões avulsas, a solidão compartilhada…
Finalmente acordou de vez, levantou-se, vestiu um calção, desviou-se das redes e tarrafas penduradas, passou indiferente pelo anjo, foi ao banheirinho da segunda escada e mijou com estrépito. Depois, lavou o rosto e ficou se olhando no espelho: duas espinhas na face ainda sem barba. Lembrou a voz de Dilma: Você tem um rosto bonito. O que eu queria mesmo era viver com você — e Toco sorriu. Estufou o peito nu e viu-se cônsul romano, digno e corrupto no palácio das prostitutas. Então — um gesto largo, lento, nobre — tu és o Cristo? De noite, à beira do mar, lembrou (um ano distante) o choro de Dilma: Você não gosta de mim — e o beijo na boca. Lembrou também o peixe enorme que pescou num fim de tarde, nas Grutas: oito quilos. No canto do espelho, o rosto do anjo a fitá-lo, com espanto e medo.
Sacudiu a cabeça — esquecer — e subiu à cozinha. Enquanto comia pão e bebia leite, ainda sonolento, ouvia a máquina de costura trabalhando sem parar numa saleta próxima, por certo a Vó e a Mãe preparando as vestes da Paixão, com os velhos tecidos de sempre, infinitamente retalhados e costurados em novas combinações. Mastigando o pão — diante de tantas mulheres imaginárias que logo povoariam a ilha —, fantasiava um modo de explicar preventivamente à Dilma que talvez ela não fosse a mulher ideal para ele, mas se sentia incapaz dessa façanha. Dilma, eu acho que... — e não sairia disso, tomado de um mutismo que até a ele irritava; não era bem timidez, era uma espécie intuitiva de filosofia, essa ausência angustiante de palavras. Bem, talvez esse ano ela não viesse, e o problema — se é que havia algum problema em algum lugar — se resolveria por conta própria.
Pelo olhar do anjo sentadinho na janela, percebeu que alguém se aproximava. Rômulo atravessou o pátio central que dava para a cozinha e estacionou à porta, violão debaixo do braço. Sem dúvida, tinha acabado de acordar. A voz baixa e rouca:
Tudo bem com você?
Cabelos sempre desfeitos, ar cansado, queixo meio caído, Rômulo era lento de fala e de gestos. Há alguns meses dormia no chalé de Edgar.
Tudo bem, cara. Come aí qualquer coisa.
Tô sem fome. Os mosquitos quase me matam essa noite. Pô, não foi fácil.
A Mãe gritou de dentro da casa:
Alguém de vocês que leve comida pras galinhas!
Toco livrou-se rápido:
A lata está aí no chão, Rômulo.
Tudo bem. — Virou-se para sair, parou, voltou-se. — Toco, tem um cigarro?
Não fumo.
O sorriso cansado de Rômulo.
Ah, é. Que bobeira a minha — e afastou-se dois passos, voltando em seguida para pegar a lata de milho das galinhas.
Como que para compensar o sonho com as mulheres, ou talvez pelo olhar severo do anjinho, a lembrança da Paixão despertou em Toco um sentido franciscano de responsabilidade, quase um bater no peito de contrição. Doravante, todos precisavam acordar mais cedo e preparar-se para os ensaios. Acabava agora a prolongada folga de fim de ano. Mas a severidade súbita foi vencida mais uma vez pela sensação gostosa do dia ensolarado. Vigiado pelo anjo, agora na outra ponta da mesa, pensava no que fazer antes: aproveitar o resto da manhã para pescar, tomar banho na enseada ou ler o penúltimo capítulo das aventuras do capitão Krupp, um velho volume sem capa que ele lia há meses. Para pescar, já era muito tarde. E, quanto à leitura, queria prolongar ainda mais o prazer da história, a expectativa do fim. O capitão Krupp era um homem corajoso e triste, apaixonado por uma deusa raptada por um pirata também corajoso e triste. Seria uma luta desesperada. Toco se imaginava um tanto capitão Krupp (e também Lord Jim, para compensar o excesso de grandeza, um outro livro que ele já lera umas três vezes) — e sonhava com o dia em que sairia pelo mundo numa longa viagem. Rômulo apareceu de novo na porta, lata de milho ainda na mão:
Toco, tá chegando alguém na praia, dá pra ver ali de cima. Será que não era bom a gente…
Antes que Rômulo terminasse de arrastar a frase, Toco já descia o morro, contornando a casa. Correu pelo caminho entre as árvores que separavam a encosta da enseada e, já na praia, viu Pablo tentando puxar a canoa cheia d’água e Miro ajoelhado na areia.
Pablo! Miro! Viva!
Pablo nem olhou, lutando na água. Miro abraçou-o demoradamente:
Eh, Toco, firme! E aí?!
Tudo bem, velhão! E teus quadros?
Pois dessa vez acertei! Ninguém vai botar defeito! Depois te mostro os esboços. — Agoniado: — Me diga: a Aninha veio?
Faz tempo.
Alegria, alegria!
Mas, bah, tem horas que dá tudo certo!
Toco gritou ao Pablo:
E aí, bicho louco!? — Ao Miro: — Vamos lá dar uma ajuda que ele deve estar furioso…
Esse Pablo é muito engraçado!…
Toco e Pablo afinal se abraçam, velhos amigos.
Levou azar na canoa?
Me fodi. Ajuda a puxar, que esse bosta do Miro não serve pra nada. Primeiro vamos tirar a água.
Toco, braços de Hércules, virou a canoa de borco:
Segura na popa que eu aguento aqui.
Carregaram a canoa até terra firme. Pablo, encharcado, vasculhava a mochila.
O cigarro, pelo menos, não molhou.
Me arruma um — pediu Miro.
Mas que cara de pau! Pega aí.
Não chia, Pablo. Depois eu compro outro maço. — Ao Toco: — A venda funciona ainda?
Funciona. Só que lá em Garapa, no outro lado da ilha.
Pablo afinal sorriu:
É só pra saber, porque dinheiro o Miro não tem mesmo.
Só espere eu vender umas telas, Pablo. Um mês de farra por minha conta!
Tô esperando. — Pablo tirava as calças.
Tem mulher por perto? Se tiver eu já como aqui mesmo. Porra, que atraso.
Deram risadas, Pablo vestiu um calção quase seco e os três sossegaram na sombra, olhando o mar. Os assuntos se atropelavam em silêncio, a ânsia de colocar a vida em dia, mil detalhes para contar — e era tudo tão importante! Esperavam que o principal viesse à tona, vivendo a emoção discreta do reencontro. Miro, indócil, enterrou o toco de cigarro no chão e levantou-se:
Vou andar, pessoal, arrumar minhas tralhas. O Isaías, a Vó, a Mãe, tudo bem?
Tudo estava bem na ilha. Mas, antes de subir, ele achou melhor esclarecer:
Negócio seguinte, Toco: eu quero pintar nesses dois meses. Quero ver se pego uma gruta do sul e trabalho dia e noite. Preciso me livrar dos ensaios. O que você acha?
Fala com o Cisco.
O nome caiu como uma sombra no rosto de Miro. Toco suavizou:
Mas acho que com você não tem problema, já está por dentro. Depois você explica pra ele.
Tudo bem. — Pegou a mochila, o pacote dos quadros. — Vou subindo, tô morrendo de fome. Vocês ficam?
Vamos dar um tempo.
Miro avançou dois passos, parou, olhou em volta, riu sozinho:
Essa ilha é demais. Nasci de novo — e seguiu adiante.
Pablo fumou o cigarro até o filtro e arremessou-o longe com um peteleco. Vendo o anjo coçar a asa, empoleirado na canoa, Toco pensava em Pablo, o velho amigo. Costumavam falar pouco, mas compartilhariam horas e horas de silêncio.
A Carmem já veio, Toco?
Não ainda. Vocês dois são os primeiros do ano.
Eu tinha que vir. Não aguentava mais de dor de estômago. Meu último emprego foi de guardião de estacionamento. Sempre chegava um filho da puta pra pegar o carro às quatro da madrugada.
Toco achou graça.
E aquela menina que você comentou ano passado?
Casou. Com outro, é claro.
Riram. Pablo quase começava a se sentir bem:
É chegar aqui e melhora tudo. Quer dizer, pelo menos no primeiro dia. Mas eu sei: devagar vou me emputecendo com coisas miúdas e no fim é um inferno. Você entende isso?
Toco riscava a areia.
Acho que entendo. Vamos tomar uns porres de vinho. Aí fica tudo claro.
É.
Pausa. Pablo ia dizer qualquer coisa, desistiu, e acabou falando, uma ansiedade mal disfarçada:
Já distribuíram os papéis?
Não ainda. Mas vai ser daquele jeito: cada um escolhe o seu. Sempre deu certo. O que você quer ser?
Um segundo apenas de incerteza — e a confissão abrupta:
Jesus Cristo. Eu queria fazer o Cristo. Eu sei que não tenho imaginação, que não sei falar direito, mas eu queria. — Segurou o braço de Toco, que contemplava o anjo alarmado com a ideia, boquiaberto diante dele. — O que você acha?
Eu acho muito bom, Pablo. Já comentei com o Cisco e concordamos que você seria o Cristo certo para esse ano. Fique tranquilo.
Pablo suspirou — e imediatamente imaginou-se no grande Sermão da Montanha: as pernas tremendo, a voz sufocada, a multidão ansiosa, os braços erguidos, o sol no rosto. O rosto de Carmem: eu te amo, Pablo. Depois, as chicotadas sob a cruz e a redenção final. Um belo começo de ano.
Quem já está aí, Toco?
Pouca gente. A casa ficou meio vazia. Edgar…
Saudades dele...
... Aninha, o Barros…
O Barros!? Aquele filho da puta?
É. Faz uns três ou quatro meses. Eu quase nunca vejo.
Ainda bem. E quem mais?
O Rômulo…
O mosca-morta?
É.
Bom, pelo menos arranjo umas cannabis de vez em quando…
Riram. E Pablo se entusiasmava, antecipando a Paixão:
Tomara que venha bastante gente boa esse ano. Fazer uns ensaios porretas, de limpar a alma. O velho Isaías está bom?
Firme, do jeitão dele, no meio do mato. Só se vê de longe.
Grande figura, o Isaías... O Isaías salvou minha vida. Se não fosse essa Paixão, eu já tinha dado um tiro na cabeça. — Mais assunto: — E a pesca?
Outro dia peguei um robalo de cinco quilos.
E camarão?
Ainda tem bastantinho.
Planos:
Um dia desses fazemos um acampamento nas Grutas, levamos vara, linha, isca, tarrafa. E eu levo a Carmem, ah, a Carmem! Toco, por Deus do céu, se ela quiser transar comigo como quis no ano passado, largo tudo, venho pra cá, planto uma horta e tenho um filho com ela. Quero sossego. Ficar olhando as bananeiras. Coçando o saco na beira da represa. Ó meu braço: só de pensar fico arrepiado. — De repente sério: eram coisas demais ao mesmo tempo, o sonho desmoronava. — Mas... me diga: por que uma coisa tão simples é tão difícil?
Agora o anjo vigiava Toco por trás, oculto nas ramagens.
Não sei, Pablo.
Os dois pensavam, súbito melancólicos. De repente, Pablo levantou-se assustado e apontou o mar:
Caralho! O que é aquilo?!Toco também se ergueu, assombrado:
Olha lá, cara!... que puta navio!…

Cristovão Tezza, em Ensaio da Paixão

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