Querido:
Imagina
só que eu hoje me senti tão feliz que me pus a andar pelo quarto
até sentir as pernas cansadas e a cabeça tonta. Imagina só que
estava chovendo e eu me lembrei de ti. Não, não é assim que eu
devo contar.
Começarei
de outra forma. Como sabes, eu não posso me queixar de infelicidade,
porque, graças ao bom Deus, não me falta o pão nas horas certas e
afinal tenho uma cama onde me estirar depois de um dia em que cumpro
meu dever. Pois bem, querido, amado, eu sou tão mal-agradecida que
às vezes me parece pouco ter o pão e a cama. Às vezes me parece
pouco até o fato de eu ter uma saúde regular e as duas pernas que a
providência não me quis tirar. Bem sei que é uma vergonha e é
como tal que eu o confesso.
Como
eu ia lhe dizendo, às vezes tudo fica com um gosto de borracha e
nesse momento nem mesmo tomar café na cama me distrai. Tudo fica
velho de repente e eu peço a cada instante. Imagina, queridíssimo,
que eu chego a me perguntar: para que o trabalho? para que tomar café
na cama? para que sentir algum prazer? Imagina, meu bem, eu, que
deveria agradecer continuamente por ter nascido com os dois olhos
sãos, ou mesmo, por ter nascido, imagina que essa miserável
criatura que eu sou se revolta contra a Criação! Tu bem podes crer
quanto eu me maldigo depois desses momentos. O pior é quando eles se
instalam podem durar pouco mas podem durar muito também. E, às
vezes, depois de vários dias de pecado, eu me acordo como se tivesse
perdido a memória. Ora é o sol que eu enxergo pela primeira vez,
ora é o ar que eu descubro como é bom respirar. Naturalmente eu não
conto isso a ninguém porque as outras criaturas são melhores que eu
e não duvidam da alegria de Deus.
Vês,
queridíssimo, eu tenho até medo de mim, em alguns momentos. Que
ousadia a minha de escrever essa frase: duvidar da alegria de Deus.
Até onde vou chegar, é isso que me pergunto. Até onde?
Pois
bem, quando estava chovendo, hoje mesmo, eu profanei a Criação com
um coração tão torturado e uma alma onde havia tanta raiva que a
bondade das criaturas não podia entrar. Levei minha cara para a rua,
sobre uma maca, mostrando-a a todos: chorem por mim, chorem por mim.
E toda vez que alguém sorria, eu gritava: mor-te-mor-te-mor-te.
Confesso, contrita e arrependida, que eu me alegrava quando a coisa
saía bem-feita.
Mas
hoje voltei cedo para casa e no meu quarto não tinha, como sempre,
ninguém, e eu fiquei sozinha com meus trinta e dois anos incompletos
e me pus a chorar, com pena de mim. Tentei tudo, afianço-lhe, para
melhorar. Repeti, repeti: que a maldição caia sobre mim, se eu não
ficar alegre! Nenhum resultado. Tentei com melhores modos: você nada
é, que direito tem de ficar triste? Zero. Então eu vi que era
sincera, embora não compreendesse por que, numa terra tão feliz, eu
chorava.
E
o pior é que comecei a ficar orgulhosa: será que outras pessoas
sentem o que eu sinto? aposto que não. Estás vendo, amor, como se
pode chegar a um grau de desgraça tal em que se ama a própria
ferida. Olha, quando eu ouço música me alegro, mesmo sem saber por
quê. Pois bem, eu estava sofrendo mesmo sem saber por quê...
(Vergonha, vergonha! Falar em “sofrer”, quando há gente a quem
Deus castiga com sua cólera, tirando-lhe o pão!)
Querido,
meu gatinho branco, foi então que me salvaste. Foi por isso que
andei pelo quarto louca de alegria, até me cansar. De minha janela
enxerguei-te debruçado à tua. Não me olhaste e parece mesmo que
não me conheces ainda. Levaste à boca o finzinho do cigarro, depois
amassaste-o com cuidado, jogaste-o fora... e pronto. Só isso. Mas eu
compreendi a mensagem.
Perdoa
meu egoísmo, usei teu nome para não enveredar pelo caminho do
pecado. Repeti, como numa oração, ajoelhada perto da cama: José.
José. José. José. José. Disse tantas vezes o mesmo que no fim já
tinha mudado o teu nome por um outro, de que gosto mais: Hermengardo.
Hermengardo. Hermengardo. Hermengardo. Hermengardo... E depois eu
disse: eu te amo, eu te amo, eu te amo... E o meu amor pelos homens
reconciliou-me com o mundo e com Deus.
Não
posso ser tão orgulhosa que pense ter a chuva parado porque Deus
quis abençoar minha redenção. Mas eu sinto que esta é a verdade,
aí está.
E
é por isso, meu rei, que eu beijo teus cabelos e tuas mãos. E
sinto-me tão agradecida e feliz que é mesmo possível que eu te
mande um dia todas as cartas que te escrevi.
A
sempre grata e humilde,
Idalina
Clarice Lispector, em Todos os contos
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