Realmente
nada aconteceu naquela tarde cinzenta de abril. Tudo, no entanto,
prognosticava um grande dia. Ele lhe avisara que sua vinda
constituiria o grande fato, o acontecimento máximo de suas vidas.
Por isso ela entrou no bar da Avenida, sentou-se junto a uma das
mesinhas da janela, para vê-lo, mal apontasse na esquina. O garçom
limpou a mesa e perguntou-lhe o que desejava. Dessa vez justamente
não precisava ficar tímida e ter medo de cometer uma gafe. Estava
esperando alguém, respondeu. Ele olhou-a um momento. “Será que
tenho um ar tão abandonado que não posso estar esperando alguém?”
disse-lhe:
– Espero
um amigo.
E
sabia agora que a voz sairia perfeita: calma e negligente. (Ora não
era a primeira vez que esperava alguém.) Ele limpou uma nódoa
inexistente no canto da mesinha de mármore e, após uma demora
calculada, retrucou, sem ao menos olhá-la:
– Sim,
senhora.
Acomoda-se
melhor na cadeira estreita. Cruza as pernas com certa elegância que,
Cristiano mesmo dissera, é-lhe natural. Segura a bolsa com as duas
mãos, suspira descansadamente. Pronto. É só esperar.
Flora
gosta muito de viver. Muito mesmo. Nessa tarde, por exemplo, apesar
do vestido apertar-lhe a cintura e ela esperar com horror o momento
em que tiver que se levantar e atravessar o comprido recinto com a
saia justa demais, apesar de tudo isto acha bom estar sentada ali, no
meio de tanta gente, para tomar café com bolinhos, como todos. Tem a
mesma sensação de quando era pequena e a mãe lhe dava as
panelinhas “de verdade” para encher de comida e brincar de “dona
de casa”.
Todas
as mesinhas do café estão repletas. Os homens fumam grossos
charutos e os rapazes, metidos em amplos jaquetões, se oferecem
cigarros. As mulheres bebem refrescos e mordem doces com a delicadeza
de roedores, para não espalhar o “batom”. Faz um calor muito
forte e os ventiladores zumbem nas paredes. Se ela não estivesse de
preto poderia se imaginar num café africano, em Dakar ou Cairo,
entre ventarolas e homens morenos discutindo negócios ilícitos, por
exemplo. Mesmo entre espiões, quem sabe? metidos naqueles lençóis
árabes.
Naturalmente
era meio absurdo estar brincando de pensar justamente nessa tarde.
Justamente quando Cristiano lhe prometera o maior dia do mundo e
justamente, oh! Justamente quando tinha medo que nada sucedesse...
simplesmente pela ausência de Cristiano... Era absurdo, mas sempre
que lhe aconteciam “coisas” ela intercalava essas coisas com
pensamentos perfeitamente fúteis e despropositados. Quando Nenê ia
nascer e ela estava no hospital, deitada, branca e morta de medo,
acompanhou obstinadamente o voo de uma mosca em torno de uma xícara
de chá e chegou a pensar, dum modo geral, na vida acidentada das
moscas. E na verdade, concluíra, acerca desses pequeninos seres há
grandes estudos a fazer. Por exemplo: por que é que possuindo um
belo par de asas não voam mais alto? Serão impotentes essas asas ou
sem ideal as moscas? Outra questão: qual a atitude mental das moscas
em relação a nós? E em relação à xícara de chá, aquele grande
lago adocicado e morno? Na verdade, aqueles problemas não eram
indignos de atenção. Nós é que ainda não somos dignos deles.
Um
casal entrou. O homem parou à porta, escolheu demoradamente o lugar,
para lá encaminhou-se com a mulher debaixo do braço, o ar feroz de
quem se prepara para defender um direito: “Eu pago tanto quanto os
outros.” Sentou-se, circundou um olhar de desafio pela sala. A
mocinha era tímida e sorriu para Flora, um sorriso de solidariedade
de classe.
Bem,
o tempo está correndo. Um garçom de bigode louro dirige-se a Flora,
segurando acrobaticamente uma bandeja com refresco escuro no copo
suado. Sem lhe perguntar nada, pousa a bandeja, aproxima o copo de
suas mãos e se afasta. Mas quem pediu refresco, pensa ela
angustiada. Fica quieta, sem se mover. Ah! Cristiano, venha logo.
Todos contra mim... Eu não quero refresco, eu quero Cristiano! Tenho
vontade de chorar, porque hoje é um grande dia, porque hoje é o
maior dia de minha vida. Mas vou conter em algum cantinho escondido
de mim (atrás da porta? que absurdo) tudo o que me atormentar até a
chegada de Cristiano. Vou pensar em alguma coisa. Em quê? “Meus
senhores, meus senhores! Eis-me aqui pronta para a vida! Meus
senhores, ninguém me olha, ninguém nota que eu existo. Mas, meus
senhores, eu existo, eu juro que existo! Muito, até. Olhem, vocês,
que têm esse ar de vitória, olhem: eu sou capaz de vibrar, de
vibrar como a corda esticada de uma harpa. Eu posso sofrer com mais
intensidade do que todos os senhores. Eu sou superior. E sabem por
quê? Porque sei que existo.” E se bebesse o refresco? Pelo menos
aquela mulher que a olha como se ela não estivesse ali, como se ela
fosse uma mesinha vazia, verá que ela faz alguma coisa.
Escolhe
com cuidado uma palhinha, desembrulha-a com gestos negligentes e
chupa o primeiro gole. Ainda bem que Nenê não veio. O refresco é
muito gelado e tudo que Nenê vê quer provar. Quando Cristiano vier,
perguntará antes por ela ou por Nenê? Cristiano disse que ambas
eram duas crianças, que no grupo ele era o único adulto. Mas isso
não entristece muito Flora. Uma vez, logo no princípio, ele a
deixou sentada a um canto do quarto e pôs-se a passear de um lado
para outro, esfregando o queixo. Depois parou diante dela, olhou-a um
tempo e disse: “Mas é uma menina!” No entanto, depois se
acostumou e Flora sempre lhe agradava. Mesmo porque desde pequena
sabia brincar de tudo. Com o Ruivo brincava de soldado que mata, com
a vizinha debaixo era carroceiro, no colégio bancava a índia que
tem muitos filhos, e ainda professora, dona de casa, vizinha má,
mendiga, aleijada e quitandeira. Com o Ruivo brincava de soldado,
obrigada pelas circunstâncias, porque precisava conquistar sua
admiração.
Assim,
não foi difícil brincar de amante de Cristiano. E brincou tão bem
que ele, antes de partir, lhe disse:
“Sabe,
você, gurizinha, vale mais do que eu pensava. Não é uma menininha,
não. É uma mulher cheia de senso e independência.”
Gostou
do elogio de Cristiano como quando ele elogiara seu vestido novo. Ou
quando o professor de francês lhe dissera: “Você serez ainde un
bon poète!” Ou quando sua mãe dizia: “Quando isso crescer vai
prender qualquer um!” Ora, naturalmente que ela sabia fazer
diversas coisas e até muito bem-feitas. Mas ela não era nenhuma
daquelas personalidades que encarnava para se divertir ou por
necessidade. Flora era outra que ninguém descobrira ainda! Eis o
mistério.
O
refresco faz-lhe um mal horrível. O estômago se contrai em náuseas.
Fecha os olhos um momento e vê o líquido escuro em ondas revoltas
fluir e refluir, rugindo. E Cristiano não vem. Faz uma hora que está
ali. Se Cristiano chegasse naquele momento mandaria buscar qualquer
coisa amarga e as náuseas desapareceriam. Depois ele diria
orgulhoso: “Nem sei mesmo o que você faria sozinha. Você arranja
coisas justamente no momento impróprio.” E por que de repente esse
gosto de café na boca? Acena para o garçom. “Água gelada”,
pede. Depois do primeiro gole, anima-se:
– De
que era o refresco?
– De
café, senhorita.
Ah,
de café. Uh, piorou. O garçom a encara com curiosidade e ironia:
– Está
melhor, mademoiselle?
– Sem
dúvida, eu não sentia coisa alguma.
– Beba
uma xícara de café quente que passa tudo, continuou ele
irredutível.
– Traga,
por favor.
“Cristiano,
onde está você? Eu sou pequena, meus senhores, no fundo eu sou do
tamanho de Nenê. Não sabem quem é Nenê? Pois ela é loura, tem os
olhos pretos e Cristiano diz que não se surpreende ao ver sua
carinha muito suja. Diz que no nosso quarto desarrumado, as flores
frescas, o rostinho de Nenê e meu ar de ‘pobre querida’ são
indivisíveis. Mas há uma coisa no meu estômago. E Cristiano não
vem. Se Cristiano não vier? A dona da casa onde moramos, meus
senhores, jura como é frequente o abandono de moças com filhos.
Conhece até três casos. Que dizem? Oh, não fumem agora.”
O
garçom vem com o café. Tem um lindo bigode louro.
Se
eu fosse a senhora, procurava me livrar do refresco. Tem muita gente
que enjoa com refresco de café. É só botar dois dedos no céu da
boca. O toalete é à esquerda.
Flora
volta de lá humilhada e não ousa encarar o bigode louro. Recosta-se
na cadeira e sente-se miseravelmente bem.
Uma
aragem fresca penetra pelas janelas. “Declarações de Mussolini.
Suicídio no Leblon! Olhe a Noite!” Longínquos sons de buzina.
Cristiano perdeu o trem ou me abandonou para sempre.
O
café tornou-se familiar aos seus olhos. Os garçons são afinal uns
homens bobos e muito ocupados. Estão ajeitando as cadeiras no
estrado da orquestra, limpando o piano. Fregueses de outra classe, da
classe dos que depois do banho e do jantar “precisam gozar a vida
enquanto são moços; e para que se tem dinheiro?” instalam-se às
mesinhas.
“Quer
dizer que eu estou perdida”, pensa Flora.
Ouve
de início umas pancadinhas surdas, ritmadas, singulares e
misteriosas, subindo do estrado da orquestra. Em efervescência
crescente, como animaizinhos borbulhando em meio desconhecido, vai-se
acentuando o ritmo. E de repente, do último negro da segunda fila,
ergue-se um grito selvagem, prolongado, até morrer num queixume
doce. O mulato da primeira fila contorce-se numa reviravolta, seu
instrumento aponta para o ar e responde com um “bu-bu” rouco e
infantil. As pancadinhas parecem homens e mulheres gingando num
terreiro da África. Súbito, silêncio. O piano canta três notas
soltas e sérias. Silêncio.
A
orquestra, em movimentos suaves, quase imóvel, agachada, desliza um
fox-blue pianíssimo, insinuante como uma fuga.
Alguns
pares saíram enlaçados.
Estou
aqui há tanto tempo, há tanto tempo! pensa Flora e sente que deve
chorar. Quer dizer que estou perdida. Comprime a testa com as mãos.
Que é que vem agora? O garçom tem pena e vem lhe dizer que pode
esperar quanto quiser. Obrigada. Vê-se no espelho. Mas ela é esta
que está ali? é essa, de cara de coelho assustado, quem está
pensando e esperando? (De quem é essa boquinha? De quem são esses
olhinhos? Seus, não me amole.) Se eu não procurar me salvar,
afogo-me. Pois se o Cristiano não vier, quem dirá a toda essa gente
que eu existo? E se eu, de repente, gritar pelo garçom, pedir papel
e tinta e disser: Meus senhores, vou escrever uma poesia! Cristiano,
querido! Juro que eu e Nenê somos suas.
Vejam
só: Debussy era um músico-poeta, mas tão poeta que um só dos
títulos de suas suítes fazem você se deitar na relva do jardim, os
braços sob a cabeça, e sonhar. Vejam só: Sinos entre folhas.
Perfumes da noite... Vejam só... gritou uma mulher magra na mesa
vizinha, batendo com as costas das mãos na mesa, como se dissesse:
“Eu lhe garanto, agora é noite. Não discuta.”
– Tolice,
Margarida, retrucou um dos homens friamente, tolice. Ora
músico-poeta... Ora veja...
Flora
pediria papel e escreveria:
“Árvores
silenciosas
perdidas
na estrada.
Refúgio
manso
de
frescura e sombra.”
Cristiano
não virá. Um homem se aproxima. Que há?
– Hein?
– Pergunto
se deseja dançar, continua. Pisca os olhos míopes com um ar tolo e
curioso.
– Oh,
não... Realmente, não... eu...
Ele
continua a olhá-la.
– Eu,
francamente, não posso... Oh, talvez mais tarde... Espero um amigo.
Ele
ainda parado. Que fazer com aquele entulho? Meu Deus, os meus olhos.
– Eu
não...
– Por
favor, madame, já entendi, diz o homem ofendido.
E
se afasta. O que foi que aconteceu, afinal? Não sei, não sei. Se eu
não abaixo o rosto, veem os meus olhos. Árvores silenciosas
perdidas na estrada. Oh, com certeza eu não choro por causa do homem
míope. Também não é por Cristiano que nunca mais virá. É por
essa mulher suave, é porque Nenê é linda, linda, é porque essas
flores têm um perfume longínquo. Refúgio manso de frescura e
sombra. “Meus senhores, agora justamente que eu tinha tanto para
dizer, não sei me exprimir. Sou uma mulher grave e séria, meus
senhores. Tenho uma filha, meus senhores. Poderia ser um bom poeta.
Poderia prender quem eu quisesse. Sei brincar de tudo, meus senhores.
Poderia me levantar agora e fazer um discurso contra a humanidade,
contra a vida. Pedir ao governo a criação de um departamento de
mulheres abandonadas e tristes, que nunca mais terão o que fazer no
mundo. Pedir qualquer reforma urgente. Mas não posso, meus senhores.
E pela mesma razão nunca haverá reformas. É que em vez de gritar,
de reclamar, só tenho vontade de chorar bem baixinho e ficar quieta,
calada. Talvez não seja só por isso. Minha saia é curta e
apertada. Eu não vou me levantar daqui. Em compensação tenho um
lenço pequeno, de bolinhas vermelhas, e posso muito bem enxugar o
nariz sem que os senhores, que nem sabem que eu existo, vejam.”
Na
porta surge um homem grande, com jornais na mão. Olha para todos os
lados procurando alguém. Vem esse homem exatamente na direção de
Flora. Comprime sua mão, senta-se. Olha-a com olhos brilhantes e ela
ouve confusamente palavras soltas. “Bichinha, coitadinha... o
trem... Nenê... querida...”
– Tolice
Margarida, tolice, diz o homem na mesa vizinha.
– Quer
alguma coisa? pergunta Cristiano. Refresco?
– Oh,
não, desperta Flora. O garçom sorri.
Cristiano,
completamente feliz, aperta-lhe levemente o joelho por baixo da mesa.
E Flora resolve que nunca, nunca mais mesmo, há de perdoar Cristiano
pela humilhação sofrida. E se ele não tivesse vindo? Ah, então
toda essa espera teria desculpa, teria sentido. Mas, assim? Nunca,
nunca. Revoltar-se, lutar, isso sim. É preciso que aquela Flora
desconhecida de todos, apareça, afinal.
– Flora,
eu tive tanta, tanta saudade de você.
– Meu
bem..., diz Flora docemente, esquecendo a saia curta e apertada.
Clarice Lispector, em Todos os contos
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