Na
manhã seguinte, quando uma filha chegou para substituí-la, a dona
da barraca disse que podíamos ficar com ela e a família até
encontrarmos um lugar só nosso. Ela se chamava “a felicidade
eterna”, Titilayo, e morava em uma casa perto do mercado, onde
ajeitamos as nossas coisas em um comprido corredor ao lado da porta
dos fundos, o que para nós também era novidade, pois a nossa casa
não tinha divisão alguma e apenas uma porta. Eu e a Taiwo
estranhamos o quintal, que era cercado e muito pequeno, se comparado
ao nosso em Savalu, e não abrigaria nem a sombra do iroco. Mas a
casa, apesar de simples, nos pareceu bastante grande. Era dividida em
três cômodos, todos quartos, separados quase até o teto por
grossas divisórias de palha misturada com barro. No primeiro deles,
perto da porta que dava para a rua, ficava a esteira da Titilayo e a
da sua filha Nilaja com os dois filhos, um menino e uma menina. A
filha da Nilaja era quase do mesmo tamanho que eu e a Taiwo e se
chamava Aina, pois tinha nascido com o cordão do umbigo enrolado em
volta do pescoço. O menino, Akin, era um pouco mais velho e, pelo
nome, estava destinado a se tornar um grande guerreiro quando
crescesse. Eu me lembrei do Kokumo e do Babatunde, e contei para o
Akin que o meu irmão também teria sido um grande guerreiro se não
tivesse virado rio. O Akin disse que as pessoas não viram rio e
perguntou se eu e a Taiwo já tínhamos visto o mar, que era o maior
rio do mundo. Como dissemos que não, ele quase nos arrastou até lá,
tamanha era a ansiedade em nos mostrar o que chamava de a grande
maravilha de Olorum.
Demoramos
bastante para chegar até o mar, a pé ou de boleia com um canoeiro
conhecido do Akin, através de uma confusa mas bonita mistura de
canais, lagoas, pequenas ilhas e bancos de areia. Eu achei que o mar
era da cor do pano de Iemanjá que a minha avó tinha em Savalu, só
que mais brilhante e mais macio. Tocado pelo vento, o mar ia de um
lado para outro, fingia que ia e voltava. A Taiwo sorriu, eu sorri e
fiquei com vontade de que a minha avó estivesse junto para sorrir
também, se ainda soubesse. Desde a casa, tínhamos passado pela
terra vermelha das ruas de Uidá, depois pelo verde do mato baixo e
ralo que dava chão para as palmeiras, pelos diversos tons dos rios,
das lagoas e das ilhotas, e, por fim, pela brancura da areia. Eu já
estava bastante admirada com todas aquelas cores vivas e
contrastantes e com o grande movimento de canoas e outras pequenas
embarcações, mas nunca poderia imaginar a beleza do mar. Areia eu
já tinha visto, é claro, no fundo dos rios de Savalu, como contei
para a Aina e o Akin. Disse também que se alguém juntasse todos os
rios de Savalu, e todo o rio de Savalu até Uidá, também dava um
mar. Mas depois fiquei em dúvida, porque vi que o mar corria para
todos os lados, a perder de vista. Meus novos amigos apenas sorriram,
porque não conheciam o rio de Savalu, que de maneira alguma era mais
bonito que o mar. Mas quanto a isto eu me calei, não querendo
admitir que eles conheciam mais maravilhas do que eu e a Taiwo, que,
de início, ficamos com um pouco de medo de entrar na água. Mas ao
vermos como a Aina e o Akin estavam se divertindo, não resistimos e
percebemos que a água do mar era mais quente que a água do rio.
Agora, quando me recordo, sou capaz de reviver cada uma daquelas
sensações.
Quando
voltamos para casa, a minha avó estava brava, mas a Titilayo sorriu
e disse que era bom para uma pessoa ser apresentada ao mar o quanto
antes, pois era uma visita à morada de Iemanjá. A minha avó quis
argumentar, mas não deu tempo, pois logo em seguida chegou a
Nourbesse com a Hanna amarrada às costas. Elas eram a nora e a neta
da Titilayo, esposa e filha do Ayodele, filho dela que trabalhava em
plantações de algodão distantes de Uidá e só voltava para casa
de vez em quando, nos intervalos entre plantação e colheita. Eles
dormiam no quarto do meio, e, no outro, dormiam a Meni, a Sanja e a
Anele, as três filhas solteiras da Titilayo. Em seu quarto, a
Titilayo tinha uma Oxum com uma racha enorme, um Xangô com seu
machado de duas pontas e um Ogum que parecia vigiar, com seus olhos
atentos de caçador, uma coleção de ferramentas bem pequenas.
Comentei que eram muito bonitas e o Akin disse que tinham sido feitas
pelo pai dele antes de ir embora. Lembro-me de que naquele momento
invejei bastante o Akin e a Aina, por terem nascido em Uidá e por
terem conhecido o pai, que tinha deixado para eles aquelas lindas
lembranças. A minha mãe não gostava de falar sobre o nosso pai,
meu e da Taiwo; dizia que nem se lembrava mais dele, e eu não tinha
coragem de perguntar para a minha avó.
Todos
nos receberam muito bem, e na nossa primeira noite na casa teve festa
com carne fresca assada na fogueira e muito aluá, que a Titilayo
vendia no mercado para acompanhar os acarás. Todo mundo dançou,
menos a minha avó, que disse estar cansada e foi se deitar. Depois
que ela saiu, eu e a Taiwo também dançamos, uma olhando nos olhos
da outra, testa contra testa. A Aina e o Akin acharam engraçado e
dançaram assim também, enquanto todos sorriam e cantavam, e eu
pensei que assim estava bem melhor. A Titilayo era viúva e os filhos
dela não tinham mais pai, assim como eu e a Taiwo nunca tivemos pai
e também não tínhamos mais mãe, e mesmo assim eles não perderam
a vontade de cantar, dedançar e de sorrir. A Anele era a mais bonita
das filhas, a Sanja era a mais bem-vestida e usava sempre uma roupa
azul que ia do pescoço até os pés, e a Meni dançava quase tão
bem quanto a minha mãe. Era estranho, mas eu me sentia muito à
vontade entre eles, como se estivesse na minha casa. Quando eu e a
Taiwo fomos nos deitar, a Titilayo colocou uma esteira nova para nós
duas, maior do que a que tínhamos em Savalu. A minha avó ainda
estava acordada, de joelhos em frente a um altar montado com pedras
cobertas por um pano branco, sobre o qual estavam Xangô, Nanã e os
Ibêjis. Ela olhava para eles como se não estivessem ali, e também
não nos ouviu quando pedimos a bênção.
No
dia seguinte, a minha avó começou a trabalhar no mercado, ajudando
na barraca da Titilayo, enquanto eu e a Taiwo fomos levadas para
conhecer a cidade. As lojas e as casas nos pareceram os palácios
descritos pela minha avó, os de Abomé. Eu me lembro de que achei
interessantes as lojas, pequenos mercados dentro das casas, que
vendiam de tudo um pouco, coisas de comer e de beber, panos, fitas,
miniaturas como as que o pai do Akin tinha feito, enfeites, estátuas
e muitos outros produtos que o nosso amigo disse serem de um lugar
que se chamava estrangeiro e ficava muito longe, depois do mar.
Durante muitos dias eu fiquei pensando no mar e, principalmente, no
estrangeiro, fazendo planos para conhecê-lo e saber se era mais
bonito que Uidá.
Já
estávamos em Uidá havia quase duas semanas quando comecei a
perceber como o Akin era esperto e inteligente. Ele conhecia quase
todos os donos das lojas, pois de vez em quando fazia alguns
trabalhos para eles, como limpar o chão, levar recados ou entregar
encomendas. Foi dele a ideia de andar comigo e com a Taiwo pelas
lojas e pedir presentes em nome dos Ibêjis, qualquer coisa, desde
que não fizesse falta, e o único que não deu foi um muçurumim,
dono de uma loja de tecidos, que usava um chapéu que eu achei muito
estranho. Em Savalu, quase toda gente usava chapéu, principalmente
nos dias de festa no mercado, e alguns eram muito bonitos, enfeitados
com papéis coloridos e fitas. Quando voltamos para casa, foi porque
não conseguíamos mais carregar todos os presentes que ganhamos, e a
minha avó novamente ficou brava, mas, no fundo, acho que gostou. A
Titilayo riu e disse que éramos mais espertos do que ela imaginava,
mas que não devíamos fazer aquilo novamente porque os tempos
estavam difíceis e as pessoas poderiam não ter o que dar. Como
ninguém gostava de recusar presentes aos Ibêjis, acabavam gastando
o que não podiam ou se desfazendo do que precisavam, sem contar que
ainda tinham que economizar dinheiro para quando começasse a época
das chuvas, em que quase não havia movimento no mercado, nem o
quevender ou colher, e faltava trabalho para muita gente. Os rios e
lagoas transbordavam, engolindo as terras e os caminhos e
dificultando os negócios. O Akin disse que então só pediríamos
nas casas dos ricos, dos comerciantes que vendiam gente e moravam do
outro lado da cidade. O Ayodele, que tinha voltado dos campos de
algodão, avisou que não era para irmos lá de jeito nenhum, pois
eles nos colocariam dentro de um navio e nos mandariam como carneiros
para o estrangeiro. Eu perguntei o que era navio e ele respondeu que
era uma canoa muito grande, bem maior do que a que tinha nos levado
de Savalu para Uidá.
Naqueles
dias, com tantas descobertas, eu me sentia como se tivesse nascido de
novo, em uma outra época, em um lugar muito diferente de tudo que eu
pensava existir. O Ayodele conhecia Savalu, pois já tinha ido e
voltado de Natitingou, que ficava muitos dias de viagem depois da
minha terra, para onde tinha levado alguns estrangeiros que queriam
comprar fazendas. Eu gostava do Ayodele, que tinha um nome que
significava “a alegria vem para o lar”, e ele era assim mesmo,
como a mãe, distribuindo alegria a todos quando estava em casa.
Principalmente à Nourbesse, que, como ele afirmava, seria sua única
esposa. Eu pensei que também ia querer um marido só para mim, ou
então ser a primeira esposa. A Titilayo tinha sido a primeira esposa
e, quando o marido morreu, ficou com a casa só para ela, pondo as
outras mulheres na rua. Ela contava essa história e ria muito, o que
em si já era engraçado porque, sendo gorda, a barriga dela não
parava de balançar, fazendo todo mundo rir junto, menos a minha avó.
A Titilayo dizia que eu e a Taiwo éramos abençoadas e que fazia
muito gosto em nos receber em sua casa.
Alguns
dias mais tarde, a minha avó foi ver o mar. Ela se sentou em um
matinho perto da areia e ficou olhando durante um longo tempo. Com
muito cuidado, eu e as outras crianças entramos na água, a Hanna
também, amarrada às costas da Aina. Ela já gostava do mar, a
abençoada Hanna que tinha nascido perto daquela beleza toda. Tenho
certeza de que o Kokumo também teria gostado demais, pois ele já
adorava o rio, que era muito menor e mais feio. Eu também pensava na
minha mãe, que poderia ganhar mais dinheiro dançando no mercado de
Uidá, frequentado por mais gente. Muitos brancos iam ao mercado de
Uidá, brancos iguais aos que eu tinha visto uma única vez em
Savalu. Os brancos de Uidá não eram apenas viajantes; a maioria
morava na cidade ou nas vizinhanças e tinha bastante dinheiro. Era
uma grande confusão quando iam às compras, pois todos queriam
vender para eles, que não se importavam de pagar o preço pedido,
sem negociar. Não andavam sozinhos, levavam sempre alguns pretos
carregadores que, mais cedo ou mais tarde, segundo o Akin, virariam
carneiros no estrangeiro. Eu olhava para eles e achava que não eram
diferentes de nós, que não se pareciam com carneiros, mas o Akin
confirmou que, de algum modo que não sabia como, os pretos que iam
para o estrangeiro se transformavam em carneiros sim, e eram assados
e comidos como carneiros, carne que os brancos muito apreciavam.
Estranhei aquela informação e fiquei tentando me lembrar de que cor
era Xangô, já que ele também gostava de carneiros, como os que a
minha avó sacrificava. Mas eram carneiros que já tinham nascido
assim, como eu mesma tinha visto, e não gente que virava carneiro. O
Akin disse que algumas pessoas não viravam, tanto que ele conhecia
quem já tinha ido até o estrangeiro e voltado, contando como era
longe. Perguntei se havia guerreiros no estrangeiro e ele respondeu
que não, nem imagino o porquê, mas me recordo que na hora pensei
como teria sido melhor para a minha mãe e para o Kokumo terem vivido
no estrangeiro, longe dos guerreiros do Adandozan e onde talvez nem
fossem abikus. O Akin perguntou se eu e a Taiwo queríamos ser
esposas dele e nós dissemos que sim, e como a Taiwo tinha nascido
primeiro, ela seria a primeira esposa. Eu, que queria um marido só
para mim, não me importei de ser a segunda esposa, desde que fosse
por ela, talvez por causa daquilo que já falei, de pensar em nós
duas como se fôssemos uma só. A Aina disse que se o Kokumo não
tivesse morrido, ela ia querer ser esposa dele, e então poderíamos
morar todos juntos, na mesma casa. Tenho boas recordações daquele
tempo, quando tudo era novo, todos os momentos eram felizes e eu nem
sequer imaginava o que ainda estava para acontecer.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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