domingo, 14 de julho de 2024

Rastro das gardênias


[...]
Ao fundo do salão, num espaço mais reduzido, havia umas estantes fechadas com portas de tábuas comuns. Era a prisão dos livros proibidos segundo os expurgatórios da Santa Inquisição, por tratarem de “matérias profanas e fabulosas, e de histórias fictícias”. A ela ninguém tinha acesso, salvo Cayetano Delaura, por licença pontifícia para explorar os abismos das letras extraviadas.
Aquele remanso de tantos anos transformou-se num inferno desde que conheceu Sierva María. Não tornaria a se reunir com seus amigos, clérigos e laicos, que com ele partilhavam o deleite das ideias puras e promoviam torneios escolásticos, concursos literários, saraus de música. A paixão se reduziu a entender as astúcias do demônio, e a isso dedicou durante cinco dias e cinco noites suas leituras e meditações, antes de voltar ao convento. Na segunda-feira, ao vê-lo sair com passo firme, o bispo lhe perguntou como se sentia.
Com as asas do Espírito to Santo — disse Delaura. Vestira a sotaina de algodão ordinário que lhe infundia um ânimo de lenhador e trazia a alma encouraçada contra o desalento. Era o que precisava. À guardiã respondeu com um grunhido ao seu cumprimento, Sierva María o recebeu de cara fechada, e ficava difícil respirar na cela devido aos restos de comida estragada e aos excrementos espalhados pelo chão. No altar, junto à lamparina do Santíssimo, estava intacto o almoço do dia. Delaura apanhou o prato e ofereceu à menina uma colherada de feijão-preto com a banha ressecada. Ela refugou.
Várias vezes ele insistiu, e a reação foi igual. Então Delaura comeu a colherada de feijão, tomou-lhe o sabor e engoliu sem mastigar com um ar de genuína repugnância.
Tens razão — disse. — Isto é infame.
A menina não lhe deu a menor atenção. Ao fazer ele um curativo no tornozelo inflamado, a pele da menina se crispou e seus olhos se umedeceram. Julgou-a vencida, aliviou-a com sussurros de bom pastor, e afinal se atreveu a livrá-la das correias para dar uma trégua àquele corpo estragado. A menina flexionou várias vezes os dedos para sentir que ainda eram dela e esticou os pés entorpecidos pelas amarras. Foi então que encarou Delaura pela primeira vez, pesou-o, mediu-o e partiu para cima dele com um salto certeiro de animal de presa. A guardiã ajudou a dominá-la e amarrá-la. Antes de sair, Delaura tirou do bolso um rosário de sândalo e o colocou em Sierva María por cima dos seus colares de feitiçaria.
O bispo se espantou quando o viu chegar com a cara arranhada e uma mordida na mão que doía, só de ver. Mais ainda o espantou, porém, a atitude de Delaura, que mostrava suas feridas como troféu de guerra e zombava do perigo de contrair raiva. Não obstante, o médico do bispo lhe fez um curativo severo, pois era dos que temiam que o eclipse da segunda-feira seguinte fosse o prelúdio de graves desastres.
Em compensação, Martina Laborde, a freira criminosa, não encontrou a menor resistência em Sierva María. Tinha chegado pé ante pé à cela, como por acaso, e a viu amarrada de pés e mãos à cama. A menina se pôs em guarda e manteve os olhos fixos e alertas, até que Martina lhe sorriu. Então ela sorriu também e se entregou sem condições. Foi como se a alma de Dominga de Adviento tivesse saturado o ambiente da cela.
Martina lhe contou quem era e por que estava ali para o resto da vida, embora tivesse perdido a voz de tanto proclamar sua inocência. Quando perguntou a Sierva María por que estava ali presa, ela só pode responder o que sabia pelo exorcista: — Tenho um diabo dentro.
Martina não insistiu, achando que ela mentia, ou que lhe haviam mentido, sem saber que era uma das poucas brancas a quem dissera a verdade. Fez-lhe uma demonstração da arte de bordar, e a menina lhe pediu que a desamarrasse para tentar fazer igual. Martina mostrou as tesouras que trazia no bolso da bata com outros utensílios de costura.
O que queres é que te solte — disse. — Mas previno que se me atacares tenho com que te matar.
Sierva María não pôs em dúvida essa determinação. Solta, repetiu a lição com a facilidade e o bom ouvido com que aprendera a tocar a tiorba. Antes de sair, Martina prometeu arranjar a licença para verem juntas o eclipse do sol na segunda-feira seguinte.
Ao amanhecer da sexta-feira, as andorinhas se despediram com uma ampla revoada no céu, e salpicaram ruas e telhados com uma nevada de anil nauseabundo. Foi difícil comer e dormir enquanto o sol do meio-dia não secou o esterco endurecido e o vento da noite não depurou o ar.
Mas o terror imperou. Nunca se tinha visto as andorinhas cagarem em pleno vôo nem a fedentina de seu excremento perturbar a vida das pessoas.
No convento, ninguém mais pôs em dúvida que Sierva María tivesse poderes suficientes para alterar as leis das migrações. Delaura o sentiu até na dureza do ar, domingo depois da missa, quando atravessava os jardins com uma cestinha de doces comprados nos portais dos mercadores. Sierva María, alheia a tudo, ainda trazia o rosário pendurado no pescoço, mas não respondeu ao seu cumprimento nem se dignou fitá-lo. Ele sentou-se a seu lado, mastigou com deleite uma almojávena da cestinha e disse com a boca cheia: — Tem gosto de glória.
Aproximou da boca de Sierva María a outra metade. Ela se esquivou, mas sem se virar para a parede como das outras vezes, e fez sinal a Delaura que a guardiã os espiava. Com um gesto enérgico na direção da porta, ele ordenou: — Saia dai.
Quando a guardiã se afastou, a menina quis saciar suas fomes atrasadas com a metade da almojaveria, mas cuspiu o bocado.
Tem gosto de titica de andorinha — disse. Contudo, seu humor mudou.
Ajudou a sarar as escaras que lhe ardiam nos ombros e pela primeira vez prestou atenção a Delaura quando descobriu que tinha um pano enrolado na mão. Com uma inocência que não podia ser fingida, indagou o que tinha acontecido.
Foi uma cachorrinha raivosa com um rabo de mais de um metro que me mordeu — disse Delaura.
Sierva María quis ver a ferida. Delaura tirou o pano e ela tocou de leve com o indicador o halo arroxeado da inflamação, como se fosse uma brasa, e riu pela primeira vez.
Sou pior que a peste — disse.
Delaura não respondeu com os Evangelhos. Citou Garcilaso: —“Bem podes fazer isso com quem o possa aguentar. “ Foi embora excitado pela revelação de que uma coisa imensa e irreparável começara a acontecer em sua vida. A guardiã, de parte da abadessa, lhe recordou ao sair que era proibido trazer comida da rua, devido ao risco de que alguém mandasse alimentos envenenados, como ocorrera durante o cerco. Delaura mentiu que tinha levado a cesta com licença do bispo, e fez um protesto formal contra a má qualidade da comida das reclusas num convento famoso por sua boa cozinha..
Durante o jantar, leu para o bispo com uma animação nova.
Acompanhou-o nas orações da noite, como sempre, e ficou de olhos fechados para pensar melhor em Sierva María enquanto rezava.
Retirou-se para a biblioteca mais cedo que de costume, pensando nela, e quanto mais pensava, mais aumentavam suas ânsias de pensar. Repetiu em voz alta os sonetos de amor de Garcilaso, assustado pela suspeita de que em cada verso havia uma premonição cifrada que tinha alguma coisa a ver com sua vida. Não conseguiu dormir. Ao alvorecer, curvou-se sobre a escrivaninha com a testa apoiada no livro que não leu. Do fundo do sono ouviu os três noturnos das matinas do novo dia no santuário vizinho. “Deus te salve, Maria de Todos os Anjos”, disse, adormecido.
Sua própria voz o despertou de repente, e ele viu Sierva María com a bata de reclusa e a cabeleira de fogo vivo sobre os ombros, jogando fora o cravo murcho e pondo no lugar um ramo de gardênias recém-nascidas, da floreira da mesa grande. E Delaura, com voz ardente, repetiu Garcilaso: “Por vós nasci, por vós tenho a vida, por vós hei de morrer e por vós morro”. Sierva María sorriu sem olhá-lo. Ele fechou os olhos para certificar-se de que não era uma ilusão das sombras. Ao abri-los, a visão tinha desaparecido, mas a biblioteca estava impregnada pelo rastro das gardênias.

Gabriel García Márquez, em Do Amor e Outros Demônios

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