quinta-feira, 11 de julho de 2024

O tradicionalista


Na estação Silver, ele viu o brilho do trem noturno que se aproximava.
De longe, parecia uma tocha mágica se movendo em câmera lenta.
Por dentro, era o paraíso.
O vento estava fresco, e o assento, quentinho.
O coração dele era uma engrenagem com defeito.
Os pulmões, feitos de cera.
Ele se deitou e dormiu.

***

O trem parou na cidade pouco depois das cinco da manhã de domingo.
Ei, garoto. Garoto! Chegamos — avisou um homem, que o sacudia para acordá-lo.
Clay levou um susto, mas se levantou, e, apesar de tudo — da enxaqueca colossal, da dor lancinante ao pegar a mala —, o chamado era inconfundível.
Ele sentiu o fulgor do lar.
Em sua cabeça, já estava lá, assistindo ao mundo contido na rua Archer; estava no telhado, via a casa de Carey. Se olhasse para trás, encontraria as Cercanias. Clay já ouvia, inclusive, o filme passando na TV da nossa sala de estar — mas não. Ele não poderia passar por lá, muito menos naquele estado. Precisava esquecer que aquele lugar existia.
A rua Archer teria que esperar mais um pouco.

***

Em vez disso, saiu andando.
Percebeu que, quanto mais se movia, menos doía, então se arrastou pela cidade, pela rua Hickson, até chegar debaixo da ponte, onde parou e descansou um pouco, encostado na estrutura inclinada. Os trens chacoalhando acima, o porto tão azul que ele mal conseguia olhar, os rebites enfileirados acima da cabeça dele, o grande arco cinzento que se estendia até o infinito.
Não era à toa que aquela era a ponte preferida dele. Ali ele ficou, recostado, e custou a ir embora.

***

À tarde ele finalmente conseguiu sair dali, percorrendo as curvas do terminal de balsas da cidade, o Circular Quay, passando por palhaços, um guitarrista, além dos tradicionais didjeridus.
O pessoal da balsa de Manly acenou para ele.
O cheiro de batata frita quase foi sua ruína.
Ele pegou o trem, fez baldeação em Town Hall, contou as paradas e seguiu a pé. Teria rastejado, se fosse preciso. Ao menos a um lugar aonde poderia ir.
Quando chegou lá, no topo da colina, pela primeira vez em muito tempo, prestou a devida atenção à lápide:

PENÉLOPE DUNBAR
UMA MULHER DE MUITOS NOMES:
a Rainha dos Erros, a Garota do Aniversário, a Noiva do Nariz Quebrado e Penny
*****
MUITO AMADA POR TODOS, MAS EM ESPECIAL PELOS GAROTOS DUNBAR

Enquanto lia, ele se agachou.
Sorriu com a última linha e se deitou. Nosso irmão ficou ali sozinho um bom tempo, o rosto colado na terra, e chorou em silêncio, por quase uma hora.
Volta e meia penso nisso, em como queria ter estado lá com ele. Como aquele que logo lhe daria uma surra, o derrubaria e o puniria por seus pecados, lamento por não saber de tudo na época.
Eu teria tomado aquele menino nos braços e falado bem baixinho.
Eu teria dito: Clay, vem pra casa.

Markus Zusak, em O construtor de pontes

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