Na
estação Silver, ele viu o brilho do trem noturno que se aproximava.
De
longe, parecia uma tocha mágica se movendo em câmera lenta.
Por
dentro, era o paraíso.
O
vento estava fresco, e o assento, quentinho.
O
coração dele era uma engrenagem com defeito.
Os
pulmões, feitos de cera.
Ele
se deitou e dormiu.
***
O
trem parou na cidade pouco depois das cinco da manhã de domingo.
— Ei,
garoto. Garoto! Chegamos — avisou um homem, que o sacudia
para acordá-lo.
Clay
levou um susto, mas se levantou, e, apesar de tudo — da enxaqueca
colossal, da dor lancinante ao pegar a mala —, o chamado era
inconfundível.
Ele
sentiu o fulgor do lar.
Em
sua cabeça, já estava lá, assistindo ao mundo contido na rua
Archer; estava no telhado, via a casa de Carey. Se olhasse para trás,
encontraria as Cercanias. Clay já ouvia, inclusive, o filme passando
na TV da nossa sala de estar — mas não. Ele não poderia passar
por lá, muito menos naquele estado. Precisava esquecer que aquele
lugar existia.
A
rua Archer teria que esperar mais um pouco.
***
Em
vez disso, saiu andando.
Percebeu
que, quanto mais se movia, menos doía, então se arrastou pela
cidade, pela rua Hickson, até chegar debaixo da ponte, onde parou e
descansou um pouco, encostado na estrutura inclinada. Os trens
chacoalhando acima, o porto tão azul que ele mal conseguia olhar, os
rebites enfileirados acima da cabeça dele, o grande arco cinzento
que se estendia até o infinito.
Não
era à toa que aquela era a ponte preferida dele. Ali ele ficou,
recostado, e custou a ir embora.
***
À
tarde ele finalmente conseguiu sair dali, percorrendo as curvas do
terminal de balsas da cidade, o Circular Quay, passando por palhaços,
um guitarrista, além dos tradicionais didjeridus.
O
pessoal da balsa de Manly acenou para ele.
O
cheiro de batata frita quase foi sua ruína.
Ele
pegou o trem, fez baldeação em Town Hall, contou as paradas e
seguiu a pé. Teria rastejado, se fosse preciso. Ao menos a um lugar
aonde poderia ir.
Quando
chegou lá, no topo da colina, pela primeira vez em muito tempo,
prestou a devida atenção à lápide:
PENÉLOPE
DUNBAR
UMA
MULHER DE MUITOS NOMES:
a
Rainha dos Erros, a Garota do Aniversário, a Noiva do Nariz Quebrado
e Penny
*****
MUITO
AMADA POR TODOS, MAS EM ESPECIAL PELOS GAROTOS DUNBAR
Enquanto
lia, ele se agachou.
Sorriu
com a última linha e se deitou. Nosso irmão ficou ali sozinho um
bom tempo, o rosto colado na terra, e chorou em silêncio, por quase
uma hora.
Volta
e meia penso nisso, em como queria ter estado lá com ele. Como
aquele que logo lhe daria uma surra, o derrubaria e o puniria por
seus pecados, lamento por não saber de tudo na época.
Eu
teria tomado aquele menino nos braços e falado bem baixinho.
Eu
teria dito: Clay, vem pra casa.
Markus Zusak, em O construtor de pontes
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