Arte: Rodrigo Rosa
[…]
Segundo
digo, o tempo que paramos na Guararavacã do Guiacuí regulou em dois
meses. Bem ermo. De lá, a gente cruzou as vizinhanças todas,
fizemos grande redondeza. Todo dia, trocávamos recado de avisos com
o pessoal do Alaripe. Notícia, nenhumas. Nada não chegava em envio,
do que fosse para chegar. Da outra banda do rio, se sucedeu a queima
dos campos! quando o vento dava para trás, trazia as tristes
fumaças. De noite, o morro se esclarecia, vermelho, asgrava em
labaredas e brasas. Da banda de cá, num rumo, daí a obra de duas
léguas, tinha uma lavourinha, de um sujeito ainda moço, que era
amigo nosso.
― Ah,
se ele quisesse alugar a mulherzinha dele para a gente, bem caros
prêços que eu pagava... ― assim o que dizia o Paspe, suspiroso.
Mas quem vinha eram os meninos do lavrador, montados num cavalo
magro, traziam feixes de cana, para vender para a gente. As vezes,
vinham em dois cavalos magros, e eram cinco ou seis meninos,
amontados, agarrados uns nos outros, uns mesmo não se sabia como
podiam, de tão mindinhos. Esses meninozinhos, todos, queriam todo o
tempo ver nossas armas, pediam que a gente desse tiros. Diadorim
gostava deles, pegava um por cada mão, até carregava os
menorzinhos, levava para mostrar a eles os pássaros das ilhas do
rio. ― Olha, vigia! o manuelzinho-da-crôa já acabou de fazer a
muda... Um dia, em que tínhamos caçado uma paca bem gorda, o Paspe
pitou de sal um quarto dela, enrolou em folhas, e deu ao menino mais
velho!
― Pra
tu leva de presente, dá à tua mãe, fala que quem mandou fui eu...
― ele recomendou. A gente ria. Os meninos receavam o gado! ali no
meio tinha reses muito bravas, um dia uma vaca deu corrida em alguém,
querendo bater. Mas, depois, com o secar, de magros e fracos os bois
se atolavam no embrejado, até morrerem alguns. Os urubus espaceavam,
quando o céu empoeirado. Pousavam no pindaibal do brejo. João
Vaqueiro chamava a gente, ia desatolar os bois que podia. Uns eram
mansos! por um punhado de sal, se chegavam, lambiam o chão nos pés
da gente. João Vaqueiro sabia tudo. Chega passava a mão nas tetas
de uma vaca ― capins tão bons, o senhor crê? ― algumas ainda
guardavam leite naqueles peitos. ― A gente carecia era de dar um
fogo, se sair por aí, por combate... ― sensato se dizia. Que
jagunço amolece, quando não padece.
A
quase meio-rumo de norte e nascente, a quatro léguas de demorado
andamento, tinha uma venda de roça, no começo do cerradão. Vendiam
licór de banana e de pequí, muito forte, geleia de mocotó, fumo
bom, marmelada, toucinho. Sempre só um de nós era que ia lá ―
para não desconfiarem. Ia o Jesualdo. A gente outorgava a ele o
dinheiro, cada um encomendava o que queria. Diadorim mandou comprar
um quilo grande de sabão de coco de macaúba, para se lavar corpo. O
dono da venda tinha duas filhas, o Jesualdo cada vez que voltava
carecia de explicar à gente, de dia e de noite, como elas eram,
formosuramente. ― Ei, que quando vier o tempo, que de guerra se
tiver licença, ah, e se esse vendeiro for contra nós, ah, eu vou
lá, pego uma das duas, de mocinha faço ela virar mulher... ―
oVove disse. ― O que tu não faz! Porque o que eu quero é o exato:
que eu vou lá, prezado peço em casamento, e nóivo... ― o Triol
contestou. E o Liduvino e o Admeto cantavam coisas de sentimento,
cantavam pelo nariz. Ao que perguntei: e aquela canção de Siruiz?
Mas eles não sabiam. ― Sei não, gosto não. Cantigas muito
velhas... ― eles desqueriam.
Daí,
deu um sutil trovão. Trovejou-se, outro. As tanajuras revoaram.
Bateu o primeiro toró de chuva. Cortamos paus, folhagem de
coqueiros, aumentamos o rancho. E vieram uns campeiros, rever o gado
da Tapera Nhã, no renovame, levaram as novilhas em quadra de
produzir. Esses eram homens tão simples, pensaram que a gente estava
garimpando ouro. Os dias de chover cheio foram se emendando. Tudo
igual ― às vezes é uma sem-gracez. Mas não se deve de tentar o
tempo. As garças é que praziam de gritar, o garcêjo delas, e o
socó-boi range cincêrros, e o socó latindo sucinto. Aí pelo mato
das pindaíbas avante, tudo era um sapal. Coquexavam. De tão bobas
tristezas, a gente se ria, no friinho de entrechuvas. Dada a primeira
estiada, voltou aquele vaqueiro Bernabé, em seu cavalinho castanho!
e vinha trazer requeijão, que se tinha incumbido a ele, e que por
dinheirinho bom se pagou. ― A vida tem de mudar um dia para melhor
― a gente dizia. Requeijão é com café bem quente que é mais
gostoso. Aquele vaqueiro Bernabé voltou, outras diversas vezes.
Ah,
e, vai, um feio dia, lá ele apontou, na boca da estrada que saía do
mato, o cavalinho castanho dava toda pressa de vinda, nem cabeceava.
Achamos que fosse mesmo ele. Aí, não era. Era um brabo nosso, um
cafuz pardo, de sonome o Gavião-Cujo, que de mais norte chegava. Ele
tinha tomado muitas chuvas, que tudo era lamas, dos copos do freio à
boca da bota, e pelos vazios do cavalo. Esbarrou e desapeou, num
pronto ser, se via que estava ancho com muitas plenipotências. O que
era? O Gavião-Cujo abriu os queixos, mas palavra logo não saíu,
ele gaguejou ar e demorou ― decerto porque a notícia era urgente
ou enorme. ― Aruê, então?! ― Titão Passos quis. ― Te rogaram
alguma praga? O Gavião-Cujo levantou um braço, pedindo prazo. A fé,
quase gritou!
― Mataram
Joca Ramiro!...
Aí
estralasse tudo ― no meio ouvi um uivo dôido de Diadorim ―!
todos os homens se encostavam nas armas. Aí, ei, feras! Que no céu,
só vi tudo quieto, só um moído de nuvens. Se gritava ― o araral.
As vertentes verdes do pindaibal avançassem feito gente pessoas.
Titão Passos bramou as ordens. Diadorim tinha caído quase no chão,
meio amparado a tempo por João Vaqueiro.
Caíu,
tão pálido como cera do reino, feito um morto estava. Ele, todo
apertado em seus couros e roupas, eu corri, para ajudar. A vez de ser
um desespero. O Paspe pegou uma cuia dágua, que com os dedos
espriçou nas faces do meu amigo. Mas eu nem pude dar auxílio: mal
ia pondo a mão para desamarrar o colete-jaleco, e Diadorim voltou a
seu si, num alerta, e me repeliu, muito feroz. Não quis apóio de
ninguém, sozinho se sentou, se levantou. Recobrou as cores, e em
mais vermelho o rosto, numa fúria, de pancada. Assaz que os belos
olhos dele formavam lágrimas. Titão Passos mandava, o Gavião-Cujo
falava. Assim os companheiros num estupor. Ao que não havia mais
chão, nem razão, o mundo nas juntas se desgovernava.
― Repete,
Gavião!
― Ai,
chefe, ai, chefe: que mataram Joca Ramiro...
― Quem?
Adonde? Conta!
Arre,
eu surpreendi eriço de tremor nos meus braços. Secou todo cuspe
dentro do estreito de minha boca. Até atravessado, na barriga, me
doeu. Antes mais, o pobre Diadorim. Alheio ele dava um bufo e soluço,
orço que outros olhos, se suspendia nas sussurrosas ameaças. Tudo
tinha vindo por cima de nós, feito um relâmpago em fato.
― ...Matou
foi o Hermógenes...
― Arraso,
cão! Caracães! O cabrobó de cão! Demónio! Traição! Que me
paga!... ― constante não havendo quem não exclamasse. O ódio da
gente, ali, em verdade, armava um pojar para estouros. Joca Ramiro
podia morrer? Como podiam ter matado? Aquilo era como fosse um touro
preto, sozinho surdo nos ermos da Guararavacã, urrando no meio da
tempestade. Assim Joca Ramiro tinha morrido. E a gente raivava alto,
para retardar o surgir do medo ― e a tristeza em crú ― sem se
saber por que, mas que era de todos, unidos malaventurados.
― ...O
Hermógenes... Os homens do Ricardão... O Antenor... Muitos...
― Mas,
adonde onde!?
― A
desgraça foi num lugar, na Jerara, terras do Xanxerê, beira da
Jerara ― lá onde o córrego da Jerara desce do morro do Voo e cai
barra no Riachão... Riachão da Lapa... Diz-se que foi sido de
repente, não se esperava. Aquilo foi à traição toda. Morreram os
muitos, que estavam persistindo lealmente. Aí, mortos! João Frio, o
Bicalho, Leôncio Fino, Luís Pajeú, o Cambó, Leite-de-Sapo, Zé
Inocêncio... uns quinze. Até se deu um tiroteio terrível; mas o
pessoal do Hermógenes e do Ricardão era demais numeroso... Dons
bons, quem pôde, fugiram corretamente. Silvino Silva conseguiu fuga,
com vinte e tantos companheiros...
Mas
Titão Passos, de arrompe, atalhou a narração, ele agarrou o
Gavião-Cujo pelos braços!
― Hem,
diá! Mas quem é que está pronto em armas, para rachar Ricardão e
Hermógenes, e ajudar a gente na vingança agora, nas desafrontas? Se
tem, e ondé então que estão?!
― Ah,
sim, chefe. Os todos os outros! João Goanhá, Sô Candelário,
Clorindo Campêlo... João Goanhá pára com porçanheira de homens,
na Serra dos Quatís. Aí foi ele quem me mandou trazer este aviso...
Sô Candelário ainda está para o Norte, mas o grosso dos bandos
dele se acha nos pertos da Lagoa-do-Boi, em Juramento... Já foi
portador para lá. Sendo que se despachou um positivo também para
dar parte a Medeiro Vaz, nos Gerais, no de lado de lá do Rio... Sei
que o sertão pega em armas, mas Deus é grande!
― Louvado.
Ah, então! graças a Deus! Ao que, então, está bem... ― Titão
Passos se cerrou.
E
estava. Era a outra guerra. A gente ficávamos aliviados. Aquilo dava
um sutil enorme.
― Teremos
de ir... Teremos de ir... ― falou Titão Passos, e todos
responderam reluzentemente.Tínhamos de tocar, sem atraso, para a
Serra dos Quatís, a um lugar dito o Amoipira, que é perto de Grão
Mogol. Artes que o Gavião-Cujo ainda contava mais, as miúcias ―
parecia que tinha medo de esbarrar de contar. Que o Hermógenes e o
Ricardão de muito haviam ajustado entre si aquele crime, se sabia. O
Hermógenes distanciou Joca Ramiro de Só Candelário, com falsos
propósitos, conduziu Joca Ramiro no meio de quase só gente dele,
Hermógenes, mais o pessoal do Ricardão. Aí, atiraram em Joca
Ramiro, pelas costas, carga de balas de três revólveres... Joca
Ramiro morreu sem sofrer. ― E enterraram o corpo? ― Diadorim
perguntou, numa voz de mais dór, como saía ansiada. Que não sabia
― o Gavião-Cujo respondeu; mas que decerto teriam enterrado,
conforme cristão, lá mesmo, na Jerara, por certo. Diadorim tanto
empalidecesse; ele pediu cachaça. Tomou. Todos tomamos. Titão
Passos não queria ter as lágrimas nos olhos. ― Um homem de tão
alta bondade tinha mesmo de correr perigo de morte, mais cedo mais
tarde, vivendo no meio de gente tão ruim... ― ele me disse,
dizendo num modo que parecia ele não fosse também jagunço, como
era de se ser. Mas, agora, tudo principiava terminado, só restava a
guerra. Mão do homem e suas armas. A gente ia com elas buscar doçura
de vingança, como o rominhol no panelão de calda. Joca Ramiro
morreu como o decreto de uma lei nova.
A
daí, carecia fosse alguém do lado de lá do morro, pela gente do
Alaripe. ― Pois vamos, Riobaldo! ― Diadorim se pós. Vi que ele
fervia ali assim no pego do parado. Selamos os cavalos. Serra acima,
fomos. Ao no galope, cada um engulia suas palavras. A mesmo estava o
céu encoberto, e um mormaço. Mas, na descambada, Diadorim me
reteve, me entregou a ponta do cabresto para segurar. ― De tudo
nesta vida a gente esquece, Riobaldo. Você acha então que vão logo
olvidar a honra dele? ― me perguntou. Devo que retardei muito em
responder, com cara de não compreensão. Porque Diadorim completou!
― ...dele, a glória do finado. Do que se finou... E dizia aquilo
com uma misturação de carinho e raiva, tanto desespero que nunca
vi. Desamontou, foi andando sem governar os passos, tapado pelas
môitas e árvores. Eu restei ficando tomando conta do cavalo. Pensei
que ele tivesse ido a lá, por necessitar. Mas demorou tanto a volta,
que eu resolvi tocar atrás, para o que havia ver, esporei e vim
puxando o cavalo dele adestro. E aí o que vi foi Diadorim no chão,
deitado debruços. Soluçava e mordia o capim do campo. A doideira.
Me amargou, no cabo da língua. ― Diadorim! ― chamei. Ele, sem se
aprumar, virou o rosto, apertou os olhos no choro. Falei, falei, meus
consolos, e ele atendia, em querelenga, me pedindo que sozinho fosse,
deixasse ele ali, até minha volta.
― Joca
Ramiro era seu parente, Diadorim? ― eu indaguei, com muita cordura.
― Ah, era, sim... ― ele me respondeu, com uma voz de pouco corpo.
― Seu tio, será? ― Que era... ― ele deu, em gesto. Entreguei a
ele o cabresto do cavalo, e continuei ida. Em certa distância, para
prevenir os alaripes, e evitar atraso, esbarrei e disparei tiros,
para o ar, umas vezes. Cheguei lá, estavam todos reunidos, por meu
feliz. E estava chovendo, de acordo com o mormaço. ― Trago notícia
de grande morte! ― sem desapear eu declarei. Eles todos tiraram os
chapéus, para me escutar. Então, eu gritei! ― Viva a fama do
nosso Chefe Joca Ramiro... E, pela tristeza que estabeleceu minha
voz, muito me entenderam. Ao que quase todos choraram. ― Mas,
agora, temos de vingar a morte do falecido! ― eu ainda pronunciei.
Se aprontaram num átimo, para comigo vir. ― Mano velho Tatarana,
você sabe. Você tem sustância para ser um chefe, tem a bizarria...
― no caminho o Alaripe me disse. Desmenti. De ser chefe, mesmo, era
o que eu tinha menos vontade.
Mas
assim se deu que, no seguinte dia, no romper das barras, saímos
tocando, Diadorim do meu lado, mudado triste, muito branco, os olhos
pisados, a boca vencida. Deixamos para trás aquele lugar, que disse
ao senhor, para mim tão célebre ― a Guararavacã do Guaicuí, do
nunca mais.
Redeando,
rumamos, em tralha e tórto, por aquele a-fora ― a gente ia
investir o sertão, os mares de calor. Os córregos estavam sujos.
Aí, depois, cada rio roncava cheio, as várzeas embrejavam, e tantas
cordas de chuva esfriavam a cacunda daquelas serras. A terrível
notícia tinha se espalhado assaz, em todas as partes o povo fazia
questão de obsequiar à gente, e falavam muito bem do falecido. Mas
nós passávamos, feito flecha, feito faca, feito fogo. Varamos todos
esses distritos de gado. Assomando de dia por dentro de vilórios e
arraiais, e ocupando a cheio todas as estradas, sem nenhum
escondimento: a gente queria que todo o mundo visse a vingança! Alto
do Amoipira, quando terminamos lá, os cavalos já afracavam. João
Goanhá, em toda economizada estatura, foi ver a gente vindo e abriu
seus bons braços. Ele estava com próprios trezentos guerreiros. E
sempre outros chegavam. ― Meu irmão Titão Passos... Meu irmão
Titão Passos... ― ele falou, crescente. ― E vocês todos,
valentes cabras... Agora é que vai ser a grande briga! Disse que com
três dias se saía em armas. João Goanhá ia na vaca e no boi: não
estava com pororas. E Só Candelário, onde era que estava? Só
Candelário, piorado doente, devia de estar um tempo desses nos
Lençóis, para onde portador seguira, com pressa de chamado. Mesmo
assim, João Goanhá desnecessitava de esperar por ele, para aos dois
Judas traidores dar batalha. No que achamos bom conselho. E outros
vinham chegando, oferecendo peito de ajuda, com prestança em ponta.
Veio até quem não se imaginou! como aquele Nhão Virassaia, com
seus trinta e cinco cacundeiros ― o que carregava nome de fama por
todo o RioVerde-Grande. E o velho Ludujo Filgueiras, montesclarense,
com vinte e dois atiradores. E o grande fazendeiro coronel Digno de
Abreu, que mandou, seus, trinta e tantos capangas, também, por Luís
de Abreuzinho comandados, que era dele filho-natural. E o gado em pé
que se provia, para se abater e se comer, chegava a ser uma boiada.
Com sacas de farinha, surrão de sal, e açúcar preto e café ―
até em carro-de-bois os mantimentos de fubá e arroz e feijão
entregados. Só em quantidades de munição era que a gente não
produzia luxo, e Titão Passos se entristeceu de não poder ter
trazido a nossa, na Guararavacã tão em vão esperada. Mas a lei de
homem não é seus instrumentos. Saímos em guerra. Ahã, do norte,
da Lagoa-do-Boi, com troca de avisos, sobrevinha também o bastante
da rapaziada dos baianos, debaixo do comando de Alípio Mota, cunhado
de Sô Candelário. A simples íamos cercar bonito os Judas, não
tinham escape. Aindas que se escapassem para o poente, atravessassem
o rio, ah, encontravam ferro e fogo! lá estava Medeiro Vaz ― o rei
dos Gerais!
[...]
Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas
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