Lembro-me
ainda de Jimmy, aquele rapaz de cabelos castanhos e despenteados,
encobrindo um crânio alongado de rebelde nato.
Lembro-me
de Jimmy, de seus cabelos e de suas ideias. Jimmy achava que nada
existe de tão bom quanto a natureza. Que se duas pessoas se gostam
nada há a fazer senão amarem-se, simplesmente. Que tudo o mais, nos
homens, que se afasta dessa simplicidade de princípio de mundo, é
cabotinismo, e espuma. Se essas ideias partissem de outra cabeça, eu
não toleraria ouvi-las sequer. Mas havia a desculpa do crânio de
Jimmy e havia sobretudo a desculpa de seus dentes claros e de seu
sorriso limpo de animal contente.
Jimmy
andava de cabeça erguida, o nariz espetado no ar, e, ao atravessar a
rua, pegava-me pelo braço com uma intimidade muito simples. Eu me
perturbava. Mas a prova de que eu já estava nesse tempo imbuída das
ideias de Jimmy e sobretudo do seu sorriso claro, é que eu me
repreendia essa perturbação. Pensava, descontente, que evoluíra
demais, afastando-me do tipo padrão – animal. Dizia-me que é
fútil corar por causa de um braço; nem mesmo de um braço de uma
roupa. Mas esses pensamentos eram difusos e se apresentavam com a
incoerência que transmito agora ao papel. Na verdade, eu apenas
procurava uma desculpa para gostar de Jimmy. E para seguir suas
ideias. Aos poucos estava me adaptando à sua cabeça alongada. Que
podia eu fazer, afinal? Desde pequena tinha visto e sentido a
predominância das ideias dos homens sobre a das mulheres. Mamãe
antes de casar, segundo tia Emília, era um foguete, uma ruiva
tempestuosa, com pensamentos próprios sobre liberdade e igualdade
das mulheres. Mas veio papai, muito sério e alto, com pensamentos
próprios também, sobre... liberdade e igualdade das mulheres. O mal
foi a coincidência de matéria. Houve um choque. E hoje mamãe cose
e borda e canta no piano e faz bolinhos aos sábados, tudo
pontualmente e com alegria. Tem ideias próprias, ainda, mas se
resumem numa: a mulher deve sempre seguir o marido, como a parte
acessória segue a essencial (a comparação é minha, resultado das
aulas do Curso de Direito).
Por
isso e por Jimmy, eu também me tornei aos poucos natural.
E
foi assim que um belo dia, depois de uma noite quente de verão, em
que dormi tanto como nesse momento em que escrevo (são os
antecedentes do crime), nesse belo dia Jimmy me deu um beijo. Eu
previra essa situação, com todas as variantes. Desapontou-me, é
verdade. Ora, “isso” depois de tanta filosofia e delongas! Mas
gostei. E daí em diante dormi descansada; não precisava mais
sonhar.
Encontrava-me
com Jimmy na esquina. Muito simplesmente dava-lhe o braço. E mais
tarde, muito simplesmente acariciava-lhe os cabelos despenteados. Eu
sentia que Jimmy estava maravilhado com o meu aproveitamento. Suas
lições haviam produzido um efeito raro e a aluna era aplicada. Foi
um tempo feliz.
Depois
fizemos exames. Aqui começa a história propriamente dita.
Um
dos examinadores tinha olhos suaves e profundos. As mãos muito
bonitas; morenas.
(Jimmy
era claro como um bebê.) Quando me falava, sua voz tornava-se
misteriosamente áspera e morna. E eu fazia um esforço enorme para
não fechar os olhos e não morrer de alegria.
Não
houve lutas íntimas. Dormi (sic) apertava-me com o examinador à
tarde, às seis horas. E encantava-me sua voz, falando-me de ideias
absolutamente não jimiescas. Tudo isso envolvido de crepúsculo, no
jardim silencioso e frio.
Era
eu então absolutamente feliz. Quanto a Jimmy continuava despenteado
e com o mesmo sorriso que me esquecera de esclarecer a Jimmy a nova
situação.
Um
dia, perguntou-me por que andava eu tão diferente. Respondi-lhe
risonha, empregando os termos de Hegel, ouvidos pela boca do meu
examinador. Disse-lhe que o primitivo equilíbrio tinha-se rompido e
formara-se um novo, com outra base. É inútil dizer que Jimmy não
entendeu nada, porque Hegel era um ponto do fim do programa e nós
nunca chegamos até lá. Expliquei-lhe então que estava
apaixonadíssima por D..., e, numa maravilhosa inspiração (lamentei
que o examinador não me ouvisse), disse-lhe que, no caso, eu não
poderia unir os contraditórios, fazendo a síntese hegeliana. Inútil
a digressão.
Jimmy
olhava-me estupidamente e só soube perguntar:
– E
eu?
Irritei-me.
Não
sei, respondi, chutando uma pedrinha imaginária e pensando: ora,
arranje-se! Nós somos simples animais.
Jimmy
estava nervoso. Disse-me uma série de desaforos, que eu não passava
de uma mulher, inconstante e borboleta como todas. E ameaçou-me: eu
ainda me arrependerei dessa mudança súbita. Em vão tentei
explicar-me com as suas teorias: eu gostava de alguém e era natural,
apenas; que se eu fosse “evoluída” e “pensante” começaria
por tornar tudo complicado, aparecendo com conflitos morais, com
bobagens da civilização, coisas que os animais desconhecem em
absoluto. Falei com uma eloquência adorável, tudo devido à
influência dialética do examinador (aí está a ideia de mamãe: a
mulher deve seguir... etc.). Jimmy, pálido e desfeito, mandou-me
para o diabo a mim e as minhas teorias. Gritei-lhe nervosa, que não
eram minhas essas maluquices e que, na verdade, só podiam ter
nascido de uma cabeça despenteada e comprida. Ele gritou-me, mais
alto ainda, que eu não entendera nada do que então me explicara com
tanta bondade: que tudo comigo era tempo perdido. Era demais. Exigi
uma nova explicação. Ele mandou-me de novo ao inferno.
Saí
confusa. Em comemoração, tive uma forte dor de cabeça. De uns
restinhos de civilização, surgiu-me o remorso.
Minha
avó, uma velhinha amável e lúcida, a quem contei o caso, inclinou
a cabecinha branca e explicou-me que os homens costumam construir
teorias para si e outras para as mulheres. Mas, acrescentou depois de
uma pausa e um suspiro, esquecem-nas exatamente no momento de agir...
Retruquei a vovó que eu, que aplicava com êxito a lei das
contradições de Hegel, não entendera palavra do que ela disse. Ela
riu e explicou-me bem-humorada:
Minha
querida, os homens são uns animais.
Voltávamos,
assim, ao ponto de partida? Não achei que esse fosse um argumento,
mas consolei-me um pouco. Dormi meio triste. Mas acordei feliz,
puramente animal. Quando abri as janelas do quarto e olhei o jardim
fresco e calmo aos primeiros fios de sol, tive a certeza de que não
há mesmo nada a fazer senão viver. Só continuava a me intrigar a
mudança de Jimmy. A teoria é tão boa!
Clarice Lispector, em Todos os contos
Nenhum comentário:
Postar um comentário