quarta-feira, 10 de julho de 2024

Dos apóstatas | 2.


Tornamo-nos novamente devotos” — admitem esses apóstatas; e alguns deles são demasiado covardes para admitir isso.
A esses eu olho nos olhos — a esses digo no rosto e no rubor das faces: sois daqueles que novamente rezam!
Mas é uma vergonha rezar! Não para todos, mas para ti, para mim e quem mais tenha consciência na cabeça. Para ti é uma vergonha rezar!
Bem o sabes: o covarde demônio em ti, que bem gostaria de juntar as mãos e pôr as mãos no colo e sentir-se mais cômodo: — é esse covarde demônio que te diz: “Existe um Deus!”.
Com isso, no entanto, pertences à espécie de homens que temem a luz, aos quais a luz nunca deixa em paz; todos os dias, agora, tens de enfiar a cabeça mais profundamente na noite e na névoa!
E, em verdade, escolheste bem a hora: pois justamente então saem de novo as aves noturnas. Chegou a hora para todos os seres que temem a luz, a hora festiva e de descanso, em que não se — “festeja”.
Já escuto e farejo: chegou sua hora de caçada e procissão, não uma caçada selvagem, é certo, mas mansa, claudicante, espreitante, de gente pisa-mansinho e reza-baixinho, —
uma caçada a sonsos cheios de alma: todas as ratoeiras do coração estão novamente armadas! E, onde quer que eu levante uma cortina, sai voando uma falenazinha noturna.
Estaria lá encolhida com outras falenazinhas? Pois em toda parte sinto cheiro de conventículos ocultos; e, onde há pequenos aposentos, neles se acham novos carolas e névoa de carolas.
Eles ficam longas noites sentados juntos e dizem: “Vamos voltar a ser como as criancinhas e invocar o bom Deus!” — com a boca e o estômago estragados pelos devotos confeiteiros.
Ou durante longas noites olham para uma astuta, expectante aranha-de-cruz, que prega sagacidade às próprias aranhas e ensina que “debaixo das cruzes pode-se tecer bem!”.
Ou ficam sentados o dia inteiro ao lado de pântanos, com varas de pescar, acreditando-se profundos por isso; mas quem pesca onde não há peixes, eu não chamaria sequer de superficial!
Ou aprendem, de maneira risonha-devota, a tocar harpa com um criador de canções que bem gostaria de falar ao coração de jovens mulheres com seus harpejos: — pois já se cansou das mulheres velhas e de seus louvores.
Ou aprendem a arrepiar-se com um semilouco erudito que aguarda, em escuros aposentos, que os espíritos o procurem — e o espírito escape inteiramente!
Ou escutam um velho e vagamundo gaiteiro resmungão, que aprendeu de ventos sombrios o tom sombrio dos sons; agora assovia conforme o vento e prega a aflição com tons aflitos.
E alguns deles se tornaram até mesmo vigias noturnos: agora sabem soprar cornetas e rondar pela noite e despertar velhas coisas que há muito adormeceram.
Cinco falas sobre velhas coisas ouvi, ontem à noite, junto ao muro do jardim: eram desses velhos, aflitos, secos vigias noturnos.
Como pai, não cuida o bastante dos filhos: pais humanos fazem isso melhor!” —
É muito velho! Já não se preocupa com os filhos” — respondeu o outro vigia noturno.
Mas ele tem filhos? Ninguém pode provar isso, se ele mesmo não provar! Há muito eu queria que ele o provasse totalmente.”
Provar? Como se ele tivesse alguma vez provado algo! Prova é algo difícil para ele; dá grande importância a que se creia nele.”
Sim, sim, a fé o torna bem-aventurado, a fé nele. São desse jeito as pessoas velhas. Conosco é assim também!” —
Assim falaram um ao outro os dois velhos vigias noturnos e tementes da luz, e em seguida tocaram suas cornetas, preocupados: foi o que aconteceu ontem à noite, junto ao muro do jardim.
Mas em mim o coração se torceu de rir, querendo explodir, mas não sabia onde, e afundou no diafragma.
Em verdade, isto ainda será minha morte, sufocar de risos quando vejo asnos embriagados e ouço vigias noturnos a duvidar assim de Deus.
Pois há muito não passou o tempo também para essas dúvidas? Quem ainda se permitiria despertar essas velhas coisas adormecidas e tementes da luz?
Há muito tempo tiveram fim os velhos deuses — e, em verdade, foi um bom fim, alegre, de deuses!
Eles não tiveram um “crepúsculo”: — isso é mentira! O que houve, isto sim, foi que um dia morreram de — rir!
Isso ocorreu quando as mais ímpias palavras saíram da própria boca de um deus: “Existe apenas um só Deus! Não deves ter nenhum outro deus além de mim!” —
um velho deus barbudo e raivoso, bastante ciumento, excedeu-se a esse ponto.
E todos os deuses caíram então na risada, mexeram-se nas suas cadeiras e exclamaram: “Justamente isso não é divino, que haja deuses, mas nenhum Deus?”.
Quem tem ouvidos, que ouça. —

Assim falou Zaratustra na cidade que amava e que chamam “A Vaca Malhada”. Dali ele ainda precisava caminhar mais dois dias, para chegar até sua caverna e seus animais; mas sua alma estava exultante com a proximidade do regresso. —

Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra

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