Aqui,
um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não
se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma cobra, talvez,
insinuando-se pelas pedras e pela pouca vegetação. Mas o que é uma
cobra quando não há nenhum homem por perto? Ela pode apenas cravar
seus dentes numa folha, de onde escorre um líquido leitoso. Do alto
desta folha, um inseto alça voo, solta zumbidos, talvez de medo da
cobra. Mas o que são os zumbidos se não há ninguém para
escutá-los? São nada. Ou tudo. Talvez não se possa separá-los do
silêncio ao seu redor. E o que é também o silêncio se não
existem ouvidos? Perguntem, por exemplo, a esses arbustos. Mas
arbustos não respondem. E como poderiam responder? Com o silêncio,
lógico, ou um imperceptível bater de suas folhas. Mas onde, como,
foi feita essa divisão entre som e silêncio, se não com os
ouvidos?
Mas
suponhamos que existissem, um dia, esses ouvidos. Um homem que
passasse, por exemplo, com uma carroça e um cavalo. Podemos
imaginá-los. O cavalo que passa um dia e depois outro e depois
outro, cumprindo sua missão de cavalo: passar puxando uma carroça.
Até que um dia veio a cobra e zás: o sangue escorrendo da carne do
cavalo. O cavalo propriamente dito — isto é, o cérebro do cavalo
— sabe que algo já não vai tão bem quanto antes. Onde estariam
certos ruídos, o eco de suas patas atrás de um morro, o correr do
riacho muito longe, o cheiro de bosta, essas coisas que dão
segurança a um cavalo? Onde está tudo isso, digam-me?
O
carroeiro olha tristemente para o cavalo: somos apenas nós dois aqui
neste espaço, mas o cavalo morre. Relincha, geme, sem entender. Ou
entendendo tudo, com seu cérebro de cavalo. Diga-me, cavalinho: o
que sente um cavalo diante da morte?
Diga-me
mais, cavalinho: o que é a dor de um homem quando não há ninguém
por perto? Um homem, por exemplo, que caiu num buraco muito fundo e
quebrou as duas pernas. Talvez essa dor devore a si mesma, como uma
cobra se engolindo pelo rabo.
Mas
tudo isso é nada. Não se param as coisas por causa de um cavalo.
Não se param as coisas nem mesmo por causa de um homem. Esse homem
que enterrou o cavalo, não sem antes cortar um pedaço da sua carne,
para comer mais tarde. E agora o homem tinha que puxar ele mesmo a
carroça. E logo afastou do pensamento a dor por causa de seu
cavalinho querido. O homem agora tinha até raiva do cavalo, por ele
ter morrido. O homem estava com vergonha de que o vissem — ele, um
ser humano — puxando uma carroça. Mas por que seria indigno de um
ser humano puxar uma carroça? Por que não seria indigno também de
um cavalo? Ora, um cavalo não liga para essas coisas, vocês
respondem. No que têm toda a razão.
E,
afinal, não podemos saber se o viram ou não, o homem puxando sua
carroça, pois nos ocupamos apenas do que se passa aqui, neste
espaço, onde nada se passa. Mas de uma coisa temos certeza: esse
homem também encontrou um dia sua hora. E talvez — porque não
tinha mãe, nem pai, nem mulher, nem filhos ou amigos — ele haja se
lembrado, na hora da morte, de seu cavalo. O homem pensou, talvez,
que agora iria encontrar-se com o cavalo, do outro lado. Sim, do
outro lado: de onde vêm os ecos e o vento e onde se encontram para
sempre homens e cavalos.
Para
esse outro lado há uma linha tênue, que às vezes se atravessa —
uma fronteira. Essa linha, você atravessa, retorna; atravessa outra
vez, retorna, recua de medo. Até que um dia vai e não volta mais.
Aquele
homem, no tempo em que atravessava este espaço aqui, beirando a
fronteira do outro lado, gritava para escutar o eco e sorria para o
cavalo. O homem tinha certeza de que o cavalo sorria de volta, com
seus enormes dentes amarelos. O homem era louco. Mas o que é a
loucura num espaço onde só existem um homem e um cavalo? E talvez o
cavalo sorrisse mesmo, de verdade, sabendo que ali não poderiam
acusá-lo de animal maluco e chicoteá-lo por causa disso.
Depois
foram embora o homem e o cavalo. O cavalo, para debaixo da terra,
alimentar os vermes que também ocupam este espaço, apesar de
invisíveis. Principalmente porque não há olhos para vê-los. Já o
homem foi morrer mais longe. E ficou de novo este território vazio,
espaços, um pouco mais que nada. Não sabemos por quanto tempo, pois
não existe tempo quando não existem coisas, homens, movimentando-se
no espaço.
Mas,
subitamente, eis que este território é de novo invadido. Vieram
outros homens e máquinas, acenderam fogo, montaram barracas, coisas
desse tipo, que os homens fazem. Tudo isso, imaginem, para estender
fios em postes de madeira. (Fios telegráficos, explicamos, embora
aqui se desconheçam tais nomes e engenhos.) Então o silêncio das
noites e dias era quebrado por um tipo diferente de zumbidos. Mas
para quem esses zumbidos, se aqui ninguém escuta, a não ser
insetos? E de que valem novos zumbidos para os insetos, que já os
produzem tão bem? Sim, vocês estão certos: os zumbidos
destinavam-se a pessoas mais distantes, talvez no lugar onde morreu o
dono do cavalo. O que não nos interessa, pois só cuidamos daqui,
deste espaço.
Mas,
de qualquer modo, todos eles (insetos, cobras, animaizinhos cujo nome
não se conhece, sem nos esquecermos dos vermes, que haviam engordado
com a carne do cavalo) sentiram-se melhor quando vieram outros homens
— bandidos, com certeza — e roubaram os postes, fios e zumbidos.
Agora tudo estava novamente como antes, tudo era normal: um
território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não
se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma pequena cobra, talvez,
insinuando-se pelas pedras e pela pouca vegetação — e a cravar
seus dentes numa folha.
Às
vezes, porém, aqui é tão monótono que se imagina ver um vulto que
se move por detrás dos arbustos. Alguém que passa, agachado? Um
fantasma? Mas como, se há soluços? Por acaso soluçam os fantasmas?
Mas o fato é que, de repente, escutam-se (ou se acredita escutar)
esses lamentos, uma angústia quase silenciosa.
Ah,
já sei: um menino perdido, a chorar de medo. Ou talvez um macaquinho
perdido, a chorar de medo. Ah, apenas um macaquinho, vocês respiram
aliviados. Mas quem disse que a dor de um macaquinho é mais justa
que a dor de um menino?
Mas
o que estão a imaginar? Isso aqui é apenas um menino — ou
macaquinho — de papel e tinta. E, depois, se fosse de verdade, o
menino poderia morrer mordido pela cobra. Ou então matar a cobra e
tornar-se um homem. No caso do macaquinho, tornar-se um macacão. Um
desses gorilas que batem no peito cabeludo, ameaçando a todos.
Talvez porque se recordasse do medo que sentiu da cobra. Mas não se
esqueçam, são todos de papel e tinta: o menino, o macaquinho, a
cobra, o homem, o macacão, seus urros e os socos que dá no próprio
peito cabeludo. Cabelos de papel, naturalmente. E, portanto, não há
motivos para sustos.
Pois
aqui é somente um território vazio, espaços, um pouco mais que
nada. Quase um deserto, onde até os pássaros voam muito alto.
Porque depois, em certa ocasião, houve uma aridez tão terrível que
os arbustos se queimaram e a cobra foi embora, desiludida. No
princípio, os insetos sentiram-se muito aliviados, mas logo
perceberam como é vazia de emoções a vida dos insetos quando não
existe uma cobra a persegui-los. E também se mandaram, no que logo
foram seguidos subterraneamente pelos vermes, que já estavam
emagrecendo na ausência de cadáveres.
Então
aqui ficou um território ainda mais vazio, espaços, um pouco mais
que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo.
Nem mesmo uma cobra a insinuar-se pelas pedras e pela vegetação.
Pois não há vegetação e, muito menos, cobras.
Mas
digam-me: se não há ninguém, como pode alguém contar esta
história? Mas isto não é uma história, amigos. Não existe
história onde nada acontece. E uma coisa que não é uma história
talvez não precise de alguém para contá-la. Talvez ela se conte
sozinha.
Mas
contar o que, se não há o que contar? Então está certo: se não
há o que contar, não se conta. Ou então se conta o que não há
para contar.
Sérgio Sant’Anna, em Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século
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