sábado, 27 de julho de 2024

As rãs | Parte IV

 


12.

Professor, tenho uma ótima notícia!
Meu filho nasceu na madrugada de ontem.
Como a minha esposa, Leoazinha, estava tendo seu primeiro filho em idade avançada, nem os doutores da Maternidade Jiabao, que dizem ter estudado na Inglaterra ou Estados Unidos, se atreveram a atendê-la. Nesse momento, lembramos naturalmente de minha tia, afinal, sabe mais quem vive mais. Se minha esposa tivesse fé em uma única pessoa, seria minha tia. As duas juntas fizeram inúmeros partos, ela sabe como minha tia age nas situações de emergência.
Leoazinha começou a sentir as dores quando cumpria hora extra à noite no ranário de Yuan Bochecha e meu primo. Em tese, nesse momento, ela deveria estar descansando em casa, mas, teimosa como é, não aceitou os conselhos. Com a barriga saliente, ela andava pelas ruas, provocando muitos comentários e olhares de inveja. Quem a conhecia cumprimentava de longe: “Já está desse jeito, e ainda não fica em casa descansando? O irmão Girino é muito malvado”. “Qual é o problema”, ela respondia, “fazer um parto é como colher uma fruta madura. Quantas camponesas dão à luz tranquilamente na plantação de algodão ou no bosque à beira do rio? Quanto mais caso fizer, mais problema terá.” Sua teoria coincidia com a de muitos profissionais veteranos de medicina tradicional chinesa. Quem escutava isso balançava a cabeça, a maioria concordava e, na hora, ninguém dizia nada contra.
Quando soube da notícia, fui às pressas ao ranário. Yuan Bochecha já havia mandado meu primo buscar minha tia. Ela estava de jaleco branco, uma máscara grande no rosto e os cabelos desgrenhados enfiados numa touca branca. Seu olhar estava eufórico, me fez lembrar aqueles idosos com grandes aspirações. Conduzida por uma moça de branco, minha tia entrou na sala de parto secreta. Fiquei na sala de Yuan Bochecha tomando chá com ele.
No centro da sala havia uma mesa nada menor que uma mesa de pingue-pongue, cor de mogno, e atrás dela uma cadeira giratória preta, de espaldar alto e couro legítimo. Sobre a mesa estavam uma pilha de livros e uma pequena bandeira nacional, muito vermelha. Bochecha pareceu ler meu pensamento e disse, sério: “Cara, até um bandido tem o direito de ser patriótico”.
Ele mostrava desenvoltura no preparo do chá à maneira tradicional, e me disse com uma ponta de exibicionismo: “Este é um chá Dahongpao do monte Wuyi. Não é feito de ouro, mas é de primeira qualidade. Nem quis oferecer ao chefe do distrito quando ele veio. Mas estou preparando para você, isso quer dizer que sou uma pessoa de caráter, não?”.
Vendo que eu estava distraído, Yuan Bochecha disse: “Pode ficar tranquilo, está tudo sob controle, não se preocupe. Vai dar tudo certo. Não perturbamos sua tia à toa, ela é a padroeira do Nordeste de Gaomi. Com ela aqui, o resultado só pode ser: segurança para a mãe e o bebê, felicidade para todos!”.
Mais tarde, me reclinei no sofá espaçoso e confortável e caí no sono. No sonho, vi minha mãe e Wang Renmei. Minha mãe estava com uma roupa de seda muito brilhante, se apoiando numa bengala com cabeça de dragão; Wang Renmei vestia agasalho vermelho e calça verde, uma combinação bastante caipira, mas ainda graciosa. Ela carregava no braço esquerdo um embrulho de pano vermelho, pelas brechas dava para ver um pulôver amarelo. Andavam sem parar pelo corredor, a bengala da minha mãe batia no chão num ritmo brando, mas me deixou muito ansioso. Eu disse: “Mãe, a senhora não quer sentar para descansar um pouco? Andar assim não vai deixar ninguém em paz”. Ela sentou no sofá, logo em seguida sentou no chão com as pernas cruzadas. Segundo ela, sentar no sofá a deixava sem ar. Wang Renmei, com uma expressão encabulada, se escondia atrás da minha mãe como uma menininha. Toda vez que olhava para seu rosto, ela virava a cabeça para o lado. Vi que ela tirou o pulôver amarelo do embrulho e o estendeu. A roupa parecia ter o tamanho da palma da mão de um adulto. Eu disse: “Isso só serve para um boneco”. Ela ficou corada e disse: “Fiz conforme o tamanho do bebê na minha barriga”. Só então percebi que a barriga dela estava visivelmente saliente, e as manchas no rosto também diziam que ela estava grávida. Depois eu disse: “Mas o bebê na sua barriga também não pode ser tão pequeno!”. Seus olhos ficaram vermelhos de repente e ela disse: “Corre Corre, diga para sua tia me deixar ter esse filho”. Minha mãe bateu a bengala no chão: “Tenha esse bebê agora, vou te proteger aqui. Minha bengala pode bater num imperador insensato e nos ministros corruptos, quero ver quem ousa me impedir, eu mato da pior maneira”. Minha mãe cutucou um dispositivo na parede com a bengala, na mesma hora uma porta oculta se abriu devagar. Vi lá dentro uma sala bem iluminada, clara como o dia, havia uma mesa de operação coberta com lençol branco e, em volta dela, quatro pessoas de jaleco branco e máscara enorme. Minha tia estava na cabeceira da mesa, totalmente encoberta, com luvas de borracha nas mãos. Quando Wang Renmei entrou e viu essa cena, virou-se e quis fugir, mas minha tia estendeu a mão e a agarrou. Ela começou a chorar como uma menina indefesa e gritou para mim: “Corre Corre, por amor ao nosso casamento de tantos anos, me ajude…”. Fiquei muito triste e as lágrimas rolaram… Minha tia fez um gesto e quatro pessoas com uniforme de enfermeiro se juntaram e levaram Wang Renmei para a mesa de operação. Eles a despiram com movimentos bruscos. Nesse momento, vi uma mãozinha encarnada se estender por entre as pernas dela, o polegar, o mindinho e o anular estavam fechados e o indicador e o dedo médio fizeram o gesto internacionalmente popular de “V”, o que fez minha tia e suas colegas caírem na gargalhada. Depois de rir bastante, minha tia disse: “Pare com isso, pode sair agora!”. Então um bebê veio saindo devagar. Pôs a cabeça para fora e ficou olhando, como um animalzinho esperto. No momento certo, minha tia o pegou pelas orelhas, envolveu sua cabeça e fez força para puxar: “Quero ver você não sair!”. Logo se ouviu um barulho de pipoca e minha tia segurava na mão um bebê coberto de sangue e muco…
Acordei num sobressalto e senti calafrios. Meu primo e Leoazinha abriram a porta e entraram. Minha esposa segurava uma manta, de onde saía o choro rouco de um bebê. Meu primo falou em voz baixa: “Parabéns, meu primo, seu filho nasceu!”.
Meu primo nos levou de carro à aldeia onde mora meu pai, hoje um pedaço de roça dentro da cidade. Como mencionei numa carta anterior, foi o chefe do distrito, agora prefeito, que mandou preservar esse modelo cultural, uma aldeia de estilo arquitetônico da Revolução Cultural, com os slogans pintados nos muros, painéis com palavras revolucionárias, alto-falantes pendurados e o espaço de reunião da equipe de produção… Era madrugada, não havia nenhum pedestre nas ruas, só alguns ônibus madrugadores passavam correndo levando uns poucos passageiros com cara de fantasma. Garis com o rosto todo tapado, menos os olhos, varriam as calçadas, levantando nuvens de poeira. Eu tinha muita vontade de ver o rosto do bebê, mas a expressão de Leoazinha, mais solene, mais cansada e mais feliz que uma parturiente me fez desistir da ideia. Tinha um cachecol vermelho-escuro enrolado na cabeça, seus lábios estavam rachados. Ela segurava firmemente o bebê no colo, abaixava o rosto de vez em quando, parecia estar olhando para ele ou inalando o cheiro do bebê.
Nós já tínhamos transferido todos os apetrechos do bebê para a casa do meu pai. Como era difícil achar uma cabra leiteira, meu pai encomendou leite com um criador de vacas na aldeia chamado Du. Eles criavam duas vacas que produziam cinquenta litros por dia. Meu pai lhe disse várias vezes que não adicionasse nada no leite, e o cara respondeu: “Meu tio, se o senhor não acreditar em mim, pode vir aqui para tirar leite por conta própria”.
Meu primo estacionou em frente à casa do meu pai. Ele já estava à nossa espera na rua. Junto com ele estava minha cunhada e umas mulheres mais jovens, deviam ser esposas de meus sobrinhos. Minha cunhada pegou o bebê, e as outras mulheres ajudaram Leoazinha a sair do carro e entrar no pátio. Foram diretamente para o quarto de “confinamento”, que estava arrumado fazia tempo.
Minha cunhada abriu o cantinho na manta e mostrou ao meu pai esse neto que veio atrasado. Com lágrimas nos olhos, ele não parava de dizer “muito bem”. Olhando para o bebê de cabelos pretos e rosto corado, fiquei com sentimentos confusos e as lágrimas caíram.
Professor, essa criança me devolveu a juventude e me trouxe inspiração. Sua concepção e seu nascimento foram mais complicados que a média, e a confirmação de sua identidade ainda pode causar vários problemas espinhosos, mas como minha tia sempre diz: “Depois que saiu da boca da panela, é uma vida, vai se tornar um cidadão legítimo deste país e desfrutar de todos os benefícios e direitos que o Estado concede a suas crianças. Se houver algum problema, quem deverá arcar com ele seremos nós, que o pusemos no mundo. Ao bebê, não daremos nada a não ser amor”.
Professor, a partir de amanhã, vou pegar os papéis e concluir, com a maior celeridade, essa peça de teatro tão demorada. Minha próxima carta ao senhor será uma peça que provavelmente jamais será encenada:
As rãs.

Mo Yan, em As rãs

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