Até
ficar velho, operação antigamente simples e natural, resumível na
venerável sentença “quem não morre fica velho”, está se
tornando cada vez mais complicado, a ponto de, receio eu, causar
algumas crises de identidade nesse cada vez mais vasto contingente da
população. Acho que vou sugerir a criação, nas faculdades de
Filosofia, de um curso de epistemologia da velhice, porque a
confusão, pelo menos entre os menos ilustrados, como eu, aumenta a
cada dia. Talvez até os próprios geriatras se beneficiem desse
estudo, porque tenho praticamente certeza de que, entre eles, há
divergências sobre o conceito de “velho”.
A
mim, confesso, já enche um pouco o saco esse negócio. Começou, se
não me falham os rateantes neurônios, com essa conversa de terceira
idade, inventada pelos americanos, que são muito bons de eufemismo,
como testemunha a exemplar frase “lide com preconceito extremo”,
que, dizem, a CIA usava quando ordenava um assassinato. Passou a não
pegar bem chamar velho de velho mesmo e agora a velharada é agredida
com designações tais como “boa idade”, “melhor idade”,
“feliz idade” e outras qualificações ofensivas. E, dentro
dessas categorias, já me contaram que há subcategorias. Ninguém
mais é velho, fica até feio o sujeito hoje em dia dizer que é
velho.
De
minha parte, reivindico apenas alguns direitos, entre os quais devo
ressaltar não ser obrigado a entrar na fila dos idosos dos bancos.
Aliás, a não entrar em fila de idoso nenhum, a não ser que, na
hora, o que raramente sucede, isso apresente alguma vantagem. Fila de
banco é uma furada séria, porque não só alguns de nossa variegada
turma ou são surdos ou requerem primeiros socorros se começam a
lhes explicar o que significa “o sistema caiu”, por exemplo. Me
contaram que, numa agência aqui do bairro, uma senhora teve um
pitaco, porque pensou que isso queria dizer que o banco falira e suas
economias de viúva tinham ido juntar-se à vaca no brejo.
Imagino
que, pelo tom acima, talvez alguém entre vocês tenha antecipado que
vou lembrar outra vez o que Jorge Amado, entre as incontáveis peças
de sabedoria que me presenteou ao longo de nossa convivência de
décadas, me disse a respeito da velhice. Aliás, vou dar um furo de
reportagem — sou do tempo do furo de reportagem, espero ser
cumprimentado pela direção do jornal. Jorge não me falou somente
uma vez sobre a velhice, embora não fosse seu assunto favorito. Há
muitas outras frases, mas não se destaca entre elas somente a que
divulguei aqui: “Compadre, já me falaram muito das alegrias da
velhice, mas ainda não me apresentaram a nenhuma.” Teve outra,
saquem agora o tremendo furo: “Compadre, não importa o que lhe
digam, a gente não aprende nada com a velhice; a única coisa que a
gente aprende com a velhice é que velhice é uma merda.”
Entrevendo
os setentinha a média distância, temo que, como tudo mais que o
compadre me ensinou, isso tudo seja a impiedosíssima verdade. Pode
ser que, a depender da categoria empregada, eu não seja velho
(cartas sobre o que é ser velho, principalmente as escritas por
velhos como eu, que vão dizer que a velhice está na mente etc.
etc., para o editor, por caridade), mas, outro dia, não lembro onde,
fui descer dois degraus do palco aonde havia antes subido e quatro
jovens pressurosas me apararam as costas e me seguraram os cotovelos
como se eu fosse um hipopótamo paraplégico tentando um salto
ornamental. Eu talvez pareça um hipopótamo paraplégico, mas sou no
máximo uma anta com artrite e ainda tenho lepidez bastante para
descer um meio-fio com relativa confiança. (A velhice não está na
mente, está nas juntas.)
Quanto
ao aspecto didático da velhice, também parece confirmar-se o que me
falou meu amigo. A vida pode ensinar alguma coisa e geralmente
ensina, embora quase sempre a gente aprenda tarde demais —
besteira, esse negócio de “nunca é tarde demais”, costuma ser
tarde demais mesmo. Mas a velhice mesmo só ensina o que ele disse.
Certo, talvez eu não seja velho o suficiente para esta confirmação,
mas os indícios são claros. Calçar meias, para citar um caso, já
me parece uma modalidade olímpica e nem me passa pela cabeça
alcançar um centésimo do índice. Um dos meus joelhos volta e meia
faz um barulho alarmante, dói uma besteirinha e depois volta ao
silêncio enigmático com que minhas noites são atormentadas por
visões de ossinhos se esfarelando, enquanto eu vou à banca de
jornal. E por aí vai, o pudor me cala.
Mas
Jorge não testemunhou o que hoje testemunho. As alegrias da velhice,
afinal, não são meramente individuais. E não é que agora vejo o
Brasil a transformar-se mesmo num grande canteiro de obras? Falam até
que o Bolsa Família será gradualmente extinto, pois o governo vai
chamar cada beneficiário e dar a ele um emprego. Claro, não há
empregos nem para os que estão fora do BF, mas também não se pode
querer tudo. E as coletividades que agora verão instalar-se a
concórdia e a prosperidade, através dos Territórios da Cidadania?
Até mesmo as eleições municipais, frequentemente causa de rancor e
hostilidade, deverão ser bem mais tranquilas. E, finalmente, o Big
Brother Brazil deixou de ocupar o primeiro lugar entre as
contribuições do Brasil para o progresso da Humanidade neste
século. Agora, através da visão e da generosidade do Nosso Guia, o
Brasil deu um passo muito à frente de Orwell e até do BBB. Não
disse ele que d. Dilma Rousseff é a mãe do PAC? O PAC não é o
nascimento de um novo Brasil, para o povo e não para a Zelite?
Então, além do Nosso Guia, temos a nossa Big Mother. Perfeito, até
do ponto de vista psicanalítico. A única desvantagem sobre o BBB é
que eles não deixam a gente ver o que eles fazem, mesmo entrando
compulsoriamente para o pay-per-view.
João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite
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