segunda-feira, 29 de julho de 2024

A Contadora de Filmes | [29]


O homem vivia numa casa escura e silenciosa, na última rua do povoado, pelo poente. Era domingo quando fui contar o filme.
E estava nublado.
As ruas, como sempre na hora da sesta, pareciam solitárias. E mais ainda naquele dia em que no campo de futebol, nas vizinhanças do povoado, estava sendo disputada a final do campeonato local. O futebol era a outra coisa que salvava as pessoas do árido tédio do deserto.
Quando cheguei na casa dele, com meu irmão Manuel (que meu pai obrigou a sair do campo para me ajudar), o agiota apareceu na porta, me olhou fixo e perguntou para quê era aquele caixote. Quando expliquei, disse, lacônico:
Nada de disfarces.”
Manuel, contentíssimo, se mandou imediatamente com o caixote para casa, e de lá, a todo vapor, para o campo. Eu, no começo, pensei que o cavalheiro queria imaginar os personagens do jeito que bem entendesse. Até achei que estava certo. Mas em seguida pressenti um traço de malícia na sua atitude. Mesmo assim, não dei importância ao meu palpite. Achei que devia ser influência de tantos filmes que vi.
O agiota morava sozinho. A cortina da janela estava fechada e a casa parecia penumbrosa. O que me chamou a atenção foi como a sala estava atopetada, tantos móveis antigos e baús empoeirados. Minha casa podia até não ter móveis, mas era muito mais luminosa que aquela.
As prateleiras estavam cobertas de coisas que as pessoas iam empenhar: rádios, máquinas fotográficas, aparelhos de louça, cortes de casimira inglesa. Imaginei dentro dos baús centenas de relógios e anéis de ouro. No canto do aparador, atado com elástico de prender dinheiro, via-se o maço de carteiras de identidade que as pessoas empenhavam. O povoado inteiro sabia que o agiota era tão receoso que levava as carteiras com ele para todos os lados, inclusive para a guarita onde trabalhava, para o caso de algum peão receber dinheiro do céu e querer resgatar o documento.
O homem estava pronto para receber dinheiro as vinte e quatro horas do dia.
Dom Nolasco sentou-se num sofá. E, de pé na frente dele, comecei a contar o filme.
Ele havia pedido uma fita do John Wayne, uma que tinham passado no cinema fazia pouco. Pela primeira vez, senti que minhas pernas tremiam.
Pela primeira vez não encontrava as palavras para começar minha narração. E me arrependi de ter deixado meu irmão ir embora.
Sentia medo.
O homem era o homem mau do povoado.
Quando eu estava começando a narração ele me interrompeu de maneira dura para me dizer que não ouvia bem de um ouvido, que me aproximasse mais. Depois me disse que seria melhor contar o filme sentada em seus joelhos.
Falou num tom cortante, que não me atrevi a desobedecer.
Sentada nos ossos de seus joelhos, comecei de novo. O homem me olhava de um jeito esquisito. Então percebi que o filme não interessava nem um pouco. Mas era tarde demais.
Naquele momento o agiota começou a me fazer o que me fez. O medo transformou meu corpo em gelatina e não atinei a nada. O homem fez comigo o que quis, principalmente da cintura para baixo.
Embora eu tivesse feito alguma coisa com alguns amigos de meus irmãos, nos tempos em que os acompanhava até as salitreiras velhas, aquilo não havia passado de brincadeira de criança. Agora sentia que tinham me rasgado por dentro.
E saí dali como se estivesse aluada.
Enquanto caminhava de volta para casa, como se pisasse sobre esponjas, fui deixando cair, uma a uma, o punhado de moedas que o homem pôs à força em minha mão antes de me deixar ir embora. Uma infinita sensação de vergonha embaraçava meu espírito. Eu me sentia impura até mesmo para receber o ar que respirava.
Ao dobrar a esquina de minha viela avistei meu pai na porta e tratei de dissimular da melhor maneira que consegui. Não queria vê-lo sofrer mais do que já sofria. Meu pobre velho cochilava com a cabeça abatida sobre o peito. Meus irmãos o haviam deixado ali, acompanhado pela sua garrafa de vinho. Fiquei olhando para ele, afundado em sua poltrona de rodas – imprestável da cintura para baixo. Então, de repente, e de uma forma obscura, entendi a razão de fundo pela qual minha mãe o havia abandonado.
Recordei, além do mais, que quando ela foi-se embora o céu estava nublado.

Hernán Rivera Letelier, em A Contadora de Filmes

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