sábado, 1 de junho de 2024

Serendipidades


You don’t reach Serendip by plotting a course for it.You have to set out in good faith for elsewhere and loseyour bearings serendipitously.”
John Barth, em The Last Voyage of Somebody, the Sailor (Nova York, 1991)

O uso da palavra serendipity apareceu pela primeira vez em 28 de janeiro de 1754, em uma carta de Horace Walpole (filho do ministro, antiquário e escritor Robert Walpole, autor do romance gótico The Castle of Otranto). Na carta, Horace Walpole conta ao seu amigo Horace Mann como tinha encontrado por acaso uma valiosa pintura antiga, complementando: “Esta descoberta é quase daquele tipo a que chamarei serendipidade, uma palavra muito expressiva, a qual, como não tenho nada de melhor para lhe dizer, vou passar a explicar: uma vez li um romance bastante apalermado, chamado Os três príncipes de Serendip: enquanto suas altezas viajavam, estavam sempre a fazer descobertas, por acaso e sagacidade, de coisas que não estavam a procurar…”
Serendipidade então passou a ser usada para descrever aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados. Ou seja, precisamos ter pelo menos um pouco de conhecimento sobre o que “descobrimos” para que o feliz momento de serendipidade não passe por nós sem que sequer o notemos.
Um defeito de cor é fruto da serendipidade. Ele não só contém uma história, como também é consequência de uma outra história que, depois de pensar bastante, percebi que não posso deixar de contar. Até poderia, mas, além de não estar sendo honesta, também estaria escondendo o que ajuda a fazer deste livro um portador de histórias especiais. A primeira destas histórias aconteceu em janeiro de 2001, dentro de uma livraria. Eu estava na seção de guias de viagem procurando informações detalhadas e ilustradas sobre a cultura, o povo, a história e, principalmente, a música de Cuba. Separando alguns guias para ver com calma, vários deles, como peças de dominó, caíram da prateleira, e consegui segurar apenas um, antes que fosse ao chão. Era Bahia de Todos os Santos — guia de ruas e mistérios, do Jorge Amado. Foi aí que aconteceu a primeira serendipidade. Na época, eu estava cansada de morar em uma cidade grande, cansada da minha profissão, tinha acabado de me separar e queria vida nova, em um lugar novo, fazendo coisas diferentes e, quem sabe, realizando um velho sonho: viver de escrever. Desde o dia em que o livro de Jorge Amado caiu nas minhas mãos, eu sabia que este lugar de ser feliz tinha que ser a Bahia.
Ainda na livraria, de pé diante da prateleira, abri Bahia de Todos os Santos e comecei a ler um prólogo chamado “Convite”: “E quando a viola gemer nas mãos do seresteiro na rua trepidante da cidade mais agitada, não tenhas, moça, um minuto de indecisão. Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa cotidiana.”
Na hora, tive a sensação de que ele tinha escrito aquelas palavras exatamente para mim, o que foi virando certeza quando continuei correndo os olhos pelo doce e tentador convite. Bahia. A Bahia me esperava e Jorge Amado ainda estava vivo para me apresentar a ela. Num trecho mais adiante, ele mesmo dizia: “vem e serei teu cicerone.” Eu só não tinha ainda a mínima ideia do que fazer na Bahia, mas quando o momento é de serendipidade, as coisas simplesmente acontecem. Foi por isso que, algumas páginas adiante, encontrei o seguinte texto:“[…]
Do Alufá Licutã, quem conhece o nome, os feitios, o saber, o gesto, a face do homem?Comandou a revolta dos negros escravos durante quatro dias e a cidade da Bahia o teve como seu governante quando a nação malê acendeu a aurora da liberdade, rompendo as grilhetas, e empunhou as armas, proclamando a igualdade dos homens. Não sei de história de luta mais bela do que esta do povo malê, nem de revolta reprimida com tamanha violência.
A nação malê não era apenas a mais culta entre quantas forneceram mercadoria humana para o tráfico repugnante, em verdade os escravos provindos dessa nação alcançavam os preços mais altos, sendo não só os mais caros, também os mais disputados. Serviam de professores para os filhos dos colonos, estabeleciam as contas dos senhores, escreviam as cartas das iaiás, intelectualmente estavam bem acima da parca instrução dos lusos condes e barões assinalados e analfabetos ou da malta de bandidos degredados à longínqua colônia. O mais culto dos malês era o Alufá Licutã.
Levantaram-se os escravos, dominaram e ocuparam a cidade. Logo derrotados pelo número de soldados e pela força das armas, a ordem dos senhores furiosos foi matar todos os membros da nação malê, sem deixar nenhum. Homens, mulheres e crianças, para exemplo. Ordens executadas com requintes terríveis, para que o exemplo perdurasse. Assim aconteceu. […] Da revolta e de seu chefe pouco se sabe. No mais, o silêncio. É o caso de se perguntar onde estão os jovens historiadores baianos, alguns de tanta qualidade e coragem intelectual, que não pesquisam a revolta dos malês, não levantam a figura magnífica do chefe? […] Tema para estudos históricos que venham repor a verdade, redimir a nação condenada, ressuscitar o alufá, retirá-lo da cova funda do esquecimento na qual o enterrou a reação escravagista. Tema para um grande romance...”
Acho que esqueci pelo chão os guias sobre Cuba, encantada com o que tinha acabado de descobrir, porque, apesar de não pertencer à categoria de “jovens historiadores baianos”, estava claro que era para mim a provocação sobre escrever o romance. Durante quase um ano, por meio da internet, de telefonemas para a Bahia, de buscas em livrarias, bibliotecas, sebos, e de material emprestado, pesquisei sobre os malês, muçulmanos escravizados, bravos, inteligentes, e que realmente tinham sido banidos da história. Até então eu nunca tinha ouvido falar deles. Aquele foi também um ano desesperador, porque tudo que eu queria era estar na Bahia, andando pelas ruas por onde os malês tinham andado, entrando nas igrejas onde eles tinham entrado, nadando no mar no qual eles tinham nadado, pois tinha certeza de que, se não estivesse in loco, o livro não sairia. Eu acreditava que alguma coisa no ar da Bahia me faria ouvi-los e senti-los, muito mais do que apenas conhecê-los. Mas não tinha como ir, não tinha dinheiro nem trabalho para me sustentar por lá.
Exatamente um ano depois daquele fortuito encontro com Bahia de Todos os Santos, finalmente fui conhecer Salvador. Para falar a verdade, apenas para poder dizer que já tinha estado lá antes de despachar a mudança. Já havia passado alguns dias em Salvador, procurando lugar para morar, quando resolvi conhecer a Ilha de Itaparica. Saí para caminhar pela Praia do Duro, em Mar Grande, e fui parar em Gamboa, atraída por um tronco de árvore que se vê de longe, não só pelo tamanho, que é considerável, mas também pelo inusitado de estar “plantado” na areia. Parei para olhá-lo de perto e percebi que um homem também me olhava, sentado no muro de uma casa bem em frente ao tronco. Ele percebeu meu interesse e se aproximou, contando que estávamos diante do que tinha sido a “Árvore do Amor”, nascida ali mesmo, na areia, em condições adversas e transformando aquele trecho da praia em um famoso ponto de encontro dos enamorados da ilha, e por isso o nome. Ali, casais se entregavam ao amor e, talvez estimulados pela natureza, pela sombra frondosa da árvore, pela tranquilidade e beleza do mar, pela magia da ilha, costumavam ultrapassar os limites do recato dos veranistas que, a partir da década de 1970, invadiram a ilha com magníficas casas à beira-mar. A Árvore do Amor então começou a definhar — dizem que envenenada por uma veranista mais pudica e insensível — até que tombou. Mas tinha resistido bravamente antes de morrer, pois durante anos o tronco ainda deu galhos e folhas, até secar de vez e se tornar o que eu estava vendo.
Apaixonei-me por aquela história, e talvez para que o homem conversasse um pouco mais comigo e contasse outros detalhes sobre a árvore, perguntei se ele não sabia de alguma casa por ali que estivesse para alugar. Qual não foi a minha surpresa quando ele me indicou a casa ao lado, que eu ainda não tinha percebido, mas era linda, escondida atrás de um jardim bem cuidado, abraçada por amplas varandas e iluminada pela claridade que entrava por enormes portas envidraçadas e emolduradas de vermelho. O homem ainda disse que eu poderia falar com o caseiro, que por sinal estava por lá naquela hora. Conheci a casa, que por dentro era ainda mais fascinante, grande para as minhas necessidades, mas perfeita para os meus sonhos de morar em um paraíso onde tivesse tempo e sossego para escrever o livro sobre os malês. Peguei o número do telefone do proprietário, com quem falei várias vezes, até chegarmos a um preço que eu pudesse pagar.
Antes de voltar para Salvador, ainda naquele dia e enquanto esperava a balsa, que sairia aproximadamente uma hora mais tarde, resolvi conhecer a igreja e aproveitar para agradecer a descoberta daquela casa, que eu já considerava minha próxima morada. A igreja era pequena, mas muito bonita e bem cuidada, o que me fez ter vontade de fazer algumas fotos. Mal tirei a câmera da bolsa, apareceu ao meu lado uma menina, que disse adorar fotografias e que estava ali com a mãe, encarregada da limpeza. Ela era simpática e esperta, me acompanhou pela igreja, contando quem eram os santos que estavam nos nichos e a história de cada um deles, e me mostrou os melhores ângulos para as fotos, pedindo depois que eu tirasse uma fotografia dela. Quando eu já ia bater a foto, ela pediu que esperasse e foi chamar a mãe, que estava limpando a sacristia. A mulher apareceu dizendo que a filha adorava tirar fotografias e que, justamente naquele dia, estava fazendo aniversário; a foto seria um grande presente para ela. Tiramos várias, da menina sozinha, da mãe, das duas juntas, em pé, sentadas nos bancos e na cadeira do padre. Perguntei como eu faria para entregar as fotos, e a mulher me ditou um endereço que achei ser brincadeira, algo como “rua da praça, sétima casa, depois da farmácia”. Mas não era, e logo eu também teria um endereço como aquele. Anotei em um papel qualquer e nunca mais me lembrei de onde o guardei, se é que guardei, pois, morando na ilha, eu poderia ir até a igreja pessoalmente.
Voltei para Salvador, onde fiquei mais alguns dias, e depois fui até São Paulo, permanecendo apenas o tempo necessário para arrumar minhas coisas e pegar o avião de volta, em definitivo. Eu me mudei para a Bahia em março de 2002, e durante mais de sete meses fui a feliz moradora da casa de portas e janelas vermelhas, ensolarada e colorida, na Ilha de Itaparica, “Praia de Gamboa, Rua da Praia, s/n, fundos com Rua da Igreja”, até que um assalto me fez ficar com medo de continuar morando lá, e me mudei para um flat em Salvador. Mas esta é outra história, e antes dela muitas coisas aconteceram. Nos primeiros dias na ilha, nem pensei em trabalhar; estava tão feliz por morar naquele lugar maravilhoso que passava horas e horas caminhando pelas praias, pelas ruínas, pelos fortes e pelas ilhas vizinhas. Acho que nunca tinha sido tão feliz, acreditando ter encontrado o meu paraíso na terra. Mais de um mês depois, achei que já era hora de começar a escrever a história dos malês, que, afinal, tinha sido o real motivo da minha mudança. Com idas semanais a Salvador, encontrei muito material para pesquisa. Aliás, comecei a achar que era material demais e a acreditar que muito mais gente, além de mim e antes de mim, tinha aceitado o convite de Jorge Amado e produzido páginas e páginas sobre os malês e as revoluções, coisas que ficavam apenas pela Bahia e não eram divulgadas no resto do país. Abandonei a ideia de escrever o livro sobre os malês, porque já não havia mais nada de novo a ser contado sobre eles, e escrevi Ao lado e à margem do que sentes por mim. Um romance misturando ficção e autobiografia, que me ajudou a enumerar muitos questionamentos que eu vinha fazendo a respeito do amor, da vida, do passado, do futuro, das escolhas e das imposições. Quando mais da metade desse livro estava pronta, aconteceu o assalto, e percebi que não teria mais tranquilidade para continuar na ilha. Em menos de uma semana eu já estava morando em Salvador, e três meses depois coloquei o ponto final no romance. Foi então que aconteceu a mais feliz das serendipidades.
Como achei que não tinha mais nada para fazer na Bahia, já estava puxando o fio de uma história acontecida em São Luís, no Maranhão, tomando o cuidado de me informar sobre a quantidade de material produzido sobre ela, que era quase nada. Começando a providenciar a mudança, encontrei as fotos tiradas na igreja da ilha, das quais nem me lembrara durante todo aquele tempo. Resolvi aproveitar para passar um fim de semana lá, para me despedir dos amigos e ir até a igreja, ver se encontrava uma das fotografadas, mãe ou filha. No sábado de manhã, encontrei a igreja fechada e, à tarde, estava sendo celebrada uma missa. Quando terminou, não vendo nenhuma das duas, resolvi perguntar por elas a uma senhora que recolhia as velas e os paramentos. Mostrei as fotos e a senhora disse que as conhecia, indicando mais ou menos onde moravam, na praia de Amoreiras.
No domingo de manhã segui para Amoreiras, parando de vez em quando para perguntar e seguindo as indicações que me davam, até chegar a uma casa bastante simples, numa rua estreita, sem calçamento e sem saída. Elas logo se lembraram de mim, a pessoa que tinha tirado as fotos no dia do aniversário da Vanessa; era esse o nome da menina. Dona Clara, a mãe, me convidou para tomar um café e, quando entrei na sala, percebi uma inusitada mesa de centro, com o tampo de vidro sustentado por pilhas e pilhas de papéis e revistas. Elogiei, dizendo que era bom saber que alguém ali gostava muito de ler. Dona Clara disse que não era bem assim, que usava as revistas para apoiar o vidro da mesa, mas que também serviam para que as crianças recortassem figuras para algum trabalho de escola. Quanto aos papéis, o filho mais novo, de seis anos, usava-os para desenhar do lado em que ainda não tinham sido usados. Ela chamou o menino, que brincava no quintal, e pediu-lhe que me mostrasse os desenhos que fazia. Ele, Gérson, todo feliz com a plateia, correu para dentro da casa e voltou com folhas e mais folhas de desenhos. Nada de especial, mas olhei com atenção e até elogiei, pois, incentivado, o menino podia até melhorar. Nunca se sabe onde estão escondidos os grandes talentos.
Virando um dos papéis, amarelado pelo tempo e que deixava vazar a escrita em caneta-tinteiro para o lado dos desenhos, percebi que parecia um documento escrito em português antigo, as letras miúdas e muito bem desenhadas, uma escrita contínua, quase sem fôlego ou pontuação. A leitura daquela folha já estava bastante prejudicada, não só pela interferência do desenho do menino no lado oposto, mas também porque este parecia ter sido feito sobre uma superfície porosa, que bem podia ser o chão de cimento cru da sala, com os traços bastante calcados, fazendo com que a folha se rasgasse em alguns pontos. Peguei outro papel que tinha um desenho menor e, assim que o virei, a primeira palavra que consegui ler foi “Licutan”. Surpresa, perguntei se eles sabiam quem tinha escrito aquilo, ao que dona Clara respondeu que não sabia, e que nem parecia escrito na nossa língua, pois a filha mais velha, a Rosa, que lia muito bem, tinha tentado ler, mas não conseguira. Eu disse que era a nossa língua sim, só que escrita de um modo antigo, e que provavelmente aquele documento era de uma época em que nenhum deles tinha nascido ainda. Dona Clara perguntou se eu conseguia ler e respondi que talvez sim, mas que teria que ser com calma. Perguntei onde ela tinha encontrado tais papéis, que ficavam ainda mais fascinantes à medida que eu ia reconhecendo outros nomes, outras situações e alguns lugares que me remetiam à história dos malês. Ela então contou que tinha pegado os papéis, junto com algumas revistas, na Igreja do Sacramento, na vila de Itaparica, onde também fazia limpeza. Uma troca de padres levou o padre antigo a pedir que ela se desfizesse de tudo que estava guardado em um quartinho nos fundos da casa paroquial, e com dó de jogar fora, principalmente as revistas cheias de figuras, ela pediu permissão para levar para casa. Quase tinha posto fogo nos papéis, mas se lembrou de que o Gérson vivia procurando papel para desenhar e que, quando não encontrava, desenhava até nas paredes.
Pedi ao Gérson que me mostrasse todos os papéis iguais àqueles que ele ainda tivesse, e era uma quantidade considerável, uma pilha de mais ou menos trinta ou trinta e cinco centímetros de altura. Perguntei se eles poderiam me emprestar aquilo tudo, pois eu queria tentar entender o que estava escrito ali, e dona Clara disse que eram meus, que eu nem precisava devolver. Gérson fez cara de protesto, e eu disse que daria a ele uma quantidade ainda maior de papéis, todos novinhos dos dois lados, e ainda canetas, lápis de cor, giz de cera, tintas, pincéis e tudo mais de que ele precisava para fazer muitos desenhos. O menino riu de orelha a orelha, mas não tanto quanto eu, que tinha certeza de ter encontrado ali muito mais do que ousara procurar. Perguntei à dona Clara quando ela levara aquilo tudo para casa, e ela disse que não tinha nem uma semana, que o padre novo nem tinha chegado ainda. Dei graças por não ter me lembrado de entregar as fotografias antes, porque, nesse caso, aqueles papéis teriam se perdido para sempre, nas costas dos desenhos de Gérson.
Quando fui embora, feliz com o meu tesouro, eles me pediram para voltar quando conseguisse ler tudo que estava escrito, para contar a história; e eu prometi que sim, que eles seriam os primeiros a saber. Mas voltei muito antes disso, logo no dia seguinte, com os materiais que tinha prometido ao Gérson. Acho que isto aliviou um pouco a minha consciência por estar tirando deles um documento tão importante como aquele. Hoje já não penso mais assim, e foi por isso que resolvi contar aqui como tudo aconteceu. Acredito que poderia assinar este livro como sendo uma história minha, toda inventada — embora algumas partes sejam mesmo, as que estavam ilegíveis ou nas folhas perdidas, pois dona Clara me contou que Gérson amassava e jogava fora os desenhos dos quais não gostava. Se eu me apropriasse da história, provavelmente a autoria nunca seria contestada, pois ninguém até então sabia da existência dos manuscritos, nem em Itaparica nem alguns historiadores de Salvador para quem os mostrei.
Depois de escrever e revisar este livro, entreguei todos os papéis a uma pessoa que, com certeza, vai saber o que fazer com eles. Mesmo porque esta pode não ser uma simples história, pode não ser a história de uma anônima, mas sim de uma escravizada muito especial, alguém de cuja existência não se tem confirmação, pelo menos até o momento em que escrevo esta introdução. Especula-se que ela pode ser apenas uma lenda, inventada pela necessidade que os escravizados tinham de acreditar em heróis, ou, no caso, em heroínas, que apareciam para salvá-los da condição desumana em que viviam. Ou então uma lenda inventada por um filho que tinha lembranças da mãe apenas até os sete anos, idade em que pais e mães são grandes heróis para seus filhos. Ainda mais quando observados por mentes espertas e criativas, como era o caso deste filho do qual estou falando, que nasceu livre, foi vendido ilegalmente como escravizado, e mais tarde se tornou um dos principais poetas românticos brasileiros, um dos primeiros maçons e um dos mais notáveis defensores dos escravizados e da abolição da escravatura. Um homem inteligente e batalhador que, tendo nascido de uma negra e de um fidalgo português que nunca o reconheceu como filho, conseguiu se tornar advogado e passou a vida defendendo aqueles que não tiveram a sorte ou as oportunidades que ele tão bem soube aproveitar. O que você vai ler agora talvez seja a história da mãe deste homem respeitado e admirado pelas maiores inteligências de sua época, como Rui Barbosa, Raul Pompeia e Silvio Romero. Mas também pode não ser. E é bom que a dúvida prevaleça até que, pelo estudo do manuscrito, todas as possibilidades sejam descartadas ou confirmadas, levando-se em conta o grande número de coincidências, como nomes, datas e situações. Torço para que seja verdade, para que seja ela própria a pessoa que viveu e relatou quase tudo o que você vai ler neste livro. Não pela história, que não desejo a ninguém, e logo você vai saber por quê.
Bem, agora fique com a história que, conforme prometi, foi contada em primeira mão para dona Clara e sua família, em deliciosas tardes na praia de Amoreiras. Nunca é demais lembrar que tinham desaparecido ou estavam ilegíveis várias folhas do original, e que nem sempre me foi possível entender tudo que estava escrito. Optei por deixar algumas palavras ou expressões em iorubá, língua que acabou sendo falada por muitos escravizados, mesmo não sendo a língua nativa deles. Nestes casos, coloquei a tradução ou a explicação no rodapé. O texto original também é bastante corrido, escrito por quem desejava acompanhar a velocidade do pensamento, sem pontuação e quebra de linhas ou parágrafos. Para facilitar a leitura, tomei a liberdade de pontuá-lo, dividi-lo em capítulos e, dentro de cada capítulo, em assuntos. Espero que Kehinde aprove o meu trabalho e que eu não tenha inventado nada fora de propósito. Acho que não, pois muitas vezes, durante a transcrição, e principalmente durante a escrita do que não consegui entender, eu a senti soprando palavras no meu ouvido. Coisas da Bahia, nas quais acredita quem quiser…
Boa leitura!
Ana Maria Gonçalves

As sementes da descoberta flutuam constantemente à nossa volta, mas só lançam raízes nas mentes bem preparadas para recebê-las.”
Joseph Henry

Ana Maria Gonçalves, in Um defeito de cor

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