“You
don’t reach Serendip by plotting a course for it.You have to set
out in good faith for elsewhere and loseyour bearings
serendipitously.”
John
Barth, em The Last Voyage of Somebody, the Sailor (Nova
York, 1991)
O
uso da palavra serendipity apareceu pela primeira vez em 28 de
janeiro de 1754, em uma carta de Horace Walpole (filho do ministro,
antiquário e escritor Robert Walpole, autor do romance gótico The
Castle of Otranto). Na carta, Horace Walpole conta ao seu amigo
Horace Mann como tinha encontrado por acaso uma valiosa pintura
antiga, complementando: “Esta descoberta é quase daquele tipo a
que chamarei serendipidade, uma palavra muito expressiva, a qual,
como não tenho nada de melhor para lhe dizer, vou passar a explicar:
uma vez li um romance bastante apalermado, chamado Os três
príncipes de Serendip: enquanto suas altezas viajavam, estavam
sempre a fazer descobertas, por acaso e sagacidade, de coisas que não
estavam a procurar…”
Serendipidade
então passou a ser usada para descrever aquela situação em que
descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos
procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos,
preparados. Ou seja, precisamos ter pelo menos um pouco de
conhecimento sobre o que “descobrimos” para que o feliz momento
de serendipidade não passe por nós sem que sequer o notemos.
Um
defeito de cor é fruto da serendipidade. Ele não só contém
uma história, como também é consequência de uma outra história
que, depois de pensar bastante, percebi que não posso deixar de
contar. Até poderia, mas, além de não estar sendo honesta, também
estaria escondendo o que ajuda a fazer deste livro um portador de
histórias especiais. A primeira destas histórias aconteceu em
janeiro de 2001, dentro de uma livraria. Eu estava na seção de
guias de viagem procurando informações detalhadas e ilustradas
sobre a cultura, o povo, a história e, principalmente, a música de
Cuba. Separando alguns guias para ver com calma, vários deles, como
peças de dominó, caíram da prateleira, e consegui segurar apenas
um, antes que fosse ao chão. Era Bahia de Todos os Santos —
guia de ruas e mistérios, do Jorge Amado. Foi aí que aconteceu
a primeira serendipidade. Na época, eu estava cansada de morar em
uma cidade grande, cansada da minha profissão, tinha acabado de me
separar e queria vida nova, em um lugar novo, fazendo coisas
diferentes e, quem sabe, realizando um velho sonho: viver de
escrever. Desde o dia em que o livro de Jorge Amado caiu nas minhas
mãos, eu sabia que este lugar de ser feliz tinha que ser a Bahia.
Ainda
na livraria, de pé diante da prateleira, abri Bahia de Todos os
Santos e comecei a ler um prólogo chamado “Convite”: “E
quando a viola gemer nas mãos do seresteiro na rua trepidante da
cidade mais agitada, não tenhas, moça, um minuto de indecisão.
Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa cotidiana.”
Na
hora, tive a sensação de que ele tinha escrito aquelas palavras
exatamente para mim, o que foi virando certeza quando continuei
correndo os olhos pelo doce e tentador convite. Bahia. A Bahia me
esperava e Jorge Amado ainda estava vivo para me apresentar a ela.
Num trecho mais adiante, ele mesmo dizia: “vem e serei teu
cicerone.” Eu só não tinha ainda a mínima ideia do que fazer
na Bahia, mas quando o momento é de serendipidade, as coisas
simplesmente acontecem. Foi por isso que, algumas páginas adiante,
encontrei o seguinte texto:“[…]
Do
Alufá Licutã, quem conhece o nome, os feitios, o saber, o gesto, a
face do homem?Comandou a revolta dos negros escravos durante quatro
dias e a cidade da Bahia o teve como seu governante quando a nação
malê acendeu a aurora da liberdade, rompendo as grilhetas, e
empunhou as armas, proclamando a igualdade dos homens. Não sei de
história de luta mais bela do que esta do povo malê, nem de revolta
reprimida com tamanha violência.
A
nação malê não era apenas a mais culta entre quantas forneceram
mercadoria humana para o tráfico repugnante, em verdade os escravos
provindos dessa nação alcançavam os preços mais altos, sendo não
só os mais caros, também os mais disputados. Serviam de professores
para os filhos dos colonos, estabeleciam as contas dos senhores,
escreviam as cartas das iaiás, intelectualmente estavam bem acima da
parca instrução dos lusos condes e barões assinalados e
analfabetos ou da malta de bandidos degredados à longínqua colônia.
O mais culto dos malês era o Alufá Licutã.
Levantaram-se
os escravos, dominaram e ocuparam a cidade. Logo derrotados pelo
número de soldados e pela força das armas, a ordem dos senhores
furiosos foi matar todos os membros da nação malê, sem deixar
nenhum. Homens, mulheres e crianças, para exemplo. Ordens executadas
com requintes terríveis, para que o exemplo perdurasse. Assim
aconteceu. […] Da revolta e de seu chefe pouco se sabe. No mais, o
silêncio. É o caso de se perguntar onde estão os jovens
historiadores baianos, alguns de tanta qualidade e coragem
intelectual, que não pesquisam a revolta dos malês, não levantam a
figura magnífica do chefe? […] Tema para estudos históricos que
venham repor a verdade, redimir a nação condenada, ressuscitar o
alufá, retirá-lo da cova funda do esquecimento na qual o enterrou a
reação escravagista. Tema para um grande romance...”
Acho
que esqueci pelo chão os guias sobre Cuba, encantada com o que tinha
acabado de descobrir, porque, apesar de não pertencer à categoria
de “jovens historiadores baianos”, estava claro que era para mim
a provocação sobre escrever o romance. Durante quase um ano, por
meio da internet, de telefonemas para a Bahia, de buscas em
livrarias, bibliotecas, sebos, e de material emprestado, pesquisei
sobre os malês, muçulmanos escravizados, bravos, inteligentes, e
que realmente tinham sido banidos da história. Até então eu nunca
tinha ouvido falar deles. Aquele foi também um ano desesperador,
porque tudo que eu queria era estar na Bahia, andando pelas ruas por
onde os malês tinham andado, entrando nas igrejas onde eles tinham
entrado, nadando no mar no qual eles tinham nadado, pois tinha
certeza de que, se não estivesse in loco, o livro não
sairia. Eu acreditava que alguma coisa no ar da Bahia me faria
ouvi-los e senti-los, muito mais do que apenas conhecê-los. Mas não
tinha como ir, não tinha dinheiro nem trabalho para me sustentar por
lá.
Exatamente
um ano depois daquele fortuito encontro com Bahia de Todos os
Santos, finalmente fui conhecer Salvador. Para falar a verdade,
apenas para poder dizer que já tinha estado lá antes de despachar a
mudança. Já havia passado alguns dias em Salvador, procurando lugar
para morar, quando resolvi conhecer a Ilha de Itaparica. Saí para
caminhar pela Praia do Duro, em Mar Grande, e fui parar em Gamboa,
atraída por um tronco de árvore que se vê de longe, não só pelo
tamanho, que é considerável, mas também pelo inusitado de estar
“plantado” na areia. Parei para olhá-lo de perto e percebi que
um homem também me olhava, sentado no muro de uma casa bem em frente
ao tronco. Ele percebeu meu interesse e se aproximou, contando que
estávamos diante do que tinha sido a “Árvore do Amor”, nascida
ali mesmo, na areia, em condições adversas e transformando aquele
trecho da praia em um famoso ponto de encontro dos enamorados da
ilha, e por isso o nome. Ali, casais se entregavam ao amor e, talvez
estimulados pela natureza, pela sombra frondosa da árvore, pela
tranquilidade e beleza do mar, pela magia da ilha, costumavam
ultrapassar os limites do recato dos veranistas que, a partir da
década de 1970, invadiram a ilha com magníficas casas à beira-mar.
A Árvore do Amor então começou a definhar — dizem que envenenada
por uma veranista mais pudica e insensível — até que tombou. Mas
tinha resistido bravamente antes de morrer, pois durante anos o
tronco ainda deu galhos e folhas, até secar de vez e se tornar o que
eu estava vendo.
Apaixonei-me
por aquela história, e talvez para que o homem conversasse um pouco
mais comigo e contasse outros detalhes sobre a árvore, perguntei se
ele não sabia de alguma casa por ali que estivesse para alugar. Qual
não foi a minha surpresa quando ele me indicou a casa ao lado, que
eu ainda não tinha percebido, mas era linda, escondida atrás de um
jardim bem cuidado, abraçada por amplas varandas e iluminada pela
claridade que entrava por enormes portas envidraçadas e emolduradas
de vermelho. O homem ainda disse que eu poderia falar com o caseiro,
que por sinal estava por lá naquela hora. Conheci a casa, que por
dentro era ainda mais fascinante, grande para as minhas necessidades,
mas perfeita para os meus sonhos de morar em um paraíso onde tivesse
tempo e sossego para escrever o livro sobre os malês. Peguei o
número do telefone do proprietário, com quem falei várias vezes,
até chegarmos a um preço que eu pudesse pagar.
Antes
de voltar para Salvador, ainda naquele dia e enquanto esperava a
balsa, que sairia aproximadamente uma hora mais tarde, resolvi
conhecer a igreja e aproveitar para agradecer a descoberta daquela
casa, que eu já considerava minha próxima morada. A igreja era
pequena, mas muito bonita e bem cuidada, o que me fez ter vontade de
fazer algumas fotos. Mal tirei a câmera da bolsa, apareceu ao meu
lado uma menina, que disse adorar fotografias e que estava ali com a
mãe, encarregada da limpeza. Ela era simpática e esperta, me
acompanhou pela igreja, contando quem eram os santos que estavam nos
nichos e a história de cada um deles, e me mostrou os melhores
ângulos para as fotos, pedindo depois que eu tirasse uma fotografia
dela. Quando eu já ia bater a foto, ela pediu que esperasse e foi
chamar a mãe, que estava limpando a sacristia. A mulher apareceu
dizendo que a filha adorava tirar fotografias e que, justamente
naquele dia, estava fazendo aniversário; a foto seria um grande
presente para ela. Tiramos várias, da menina sozinha, da mãe, das
duas juntas, em pé, sentadas nos bancos e na cadeira do padre.
Perguntei como eu faria para entregar as fotos, e a mulher me ditou
um endereço que achei ser brincadeira, algo como “rua da praça,
sétima casa, depois da farmácia”. Mas não era, e logo eu também
teria um endereço como aquele. Anotei em um papel qualquer e nunca
mais me lembrei de onde o guardei, se é que guardei, pois, morando
na ilha, eu poderia ir até a igreja pessoalmente.
Voltei
para Salvador, onde fiquei mais alguns dias, e depois fui até São
Paulo, permanecendo apenas o tempo necessário para arrumar minhas
coisas e pegar o avião de volta, em definitivo. Eu me mudei para a
Bahia em março de 2002, e durante mais de sete meses fui a feliz
moradora da casa de portas e janelas vermelhas, ensolarada e
colorida, na Ilha de Itaparica, “Praia de Gamboa, Rua da Praia,
s/n, fundos com Rua da Igreja”, até que um assalto me fez ficar
com medo de continuar morando lá, e me mudei para um flat em
Salvador. Mas esta é outra história, e antes dela muitas coisas
aconteceram. Nos primeiros dias na ilha, nem pensei em trabalhar;
estava tão feliz por morar naquele lugar maravilhoso que passava
horas e horas caminhando pelas praias, pelas ruínas, pelos fortes e
pelas ilhas vizinhas. Acho que nunca tinha sido tão feliz,
acreditando ter encontrado o meu paraíso na terra. Mais de um mês
depois, achei que já era hora de começar a escrever a história dos
malês, que, afinal, tinha sido o real motivo da minha mudança. Com
idas semanais a Salvador, encontrei muito material para pesquisa.
Aliás, comecei a achar que era material demais e a acreditar que
muito mais gente, além de mim e antes de mim, tinha aceitado o
convite de Jorge Amado e produzido páginas e páginas sobre os malês
e as revoluções, coisas que ficavam apenas pela Bahia e não eram
divulgadas no resto do país. Abandonei a ideia de escrever o livro
sobre os malês, porque já não havia mais nada de novo a ser
contado sobre eles, e escrevi Ao lado e à margem do que sentes
por mim. Um romance misturando ficção e autobiografia, que me
ajudou a enumerar muitos questionamentos que eu vinha fazendo a
respeito do amor, da vida, do passado, do futuro, das escolhas e das
imposições. Quando mais da metade desse livro estava pronta,
aconteceu o assalto, e percebi que não teria mais tranquilidade para
continuar na ilha. Em menos de uma semana eu já estava morando em
Salvador, e três meses depois coloquei o ponto final no romance. Foi
então que aconteceu a mais feliz das serendipidades.
Como
achei que não tinha mais nada para fazer na Bahia, já estava
puxando o fio de uma história acontecida em São Luís, no Maranhão,
tomando o cuidado de me informar sobre a quantidade de material
produzido sobre ela, que era quase nada. Começando a providenciar a
mudança, encontrei as fotos tiradas na igreja da ilha, das quais nem
me lembrara durante todo aquele tempo. Resolvi aproveitar para passar
um fim de semana lá, para me despedir dos amigos e ir até a igreja,
ver se encontrava uma das fotografadas, mãe ou filha. No sábado de
manhã, encontrei a igreja fechada e, à tarde, estava sendo
celebrada uma missa. Quando terminou, não vendo nenhuma das duas,
resolvi perguntar por elas a uma senhora que recolhia as velas e os
paramentos. Mostrei as fotos e a senhora disse que as conhecia,
indicando mais ou menos onde moravam, na praia de Amoreiras.
No
domingo de manhã segui para Amoreiras, parando de vez em quando para
perguntar e seguindo as indicações que me davam, até chegar a uma
casa bastante simples, numa rua estreita, sem calçamento e sem
saída. Elas logo se lembraram de mim, a pessoa que tinha tirado as
fotos no dia do aniversário da Vanessa; era esse o nome da menina.
Dona Clara, a mãe, me convidou para tomar um café e, quando entrei
na sala, percebi uma inusitada mesa de centro, com o tampo de vidro
sustentado por pilhas e pilhas de papéis e revistas. Elogiei,
dizendo que era bom saber que alguém ali gostava muito de ler. Dona
Clara disse que não era bem assim, que usava as revistas para apoiar
o vidro da mesa, mas que também serviam para que as crianças
recortassem figuras para algum trabalho de escola. Quanto aos papéis,
o filho mais novo, de seis anos, usava-os para desenhar do lado em
que ainda não tinham sido usados. Ela chamou o menino, que brincava
no quintal, e pediu-lhe que me mostrasse os desenhos que fazia. Ele,
Gérson, todo feliz com a plateia, correu para dentro da casa e
voltou com folhas e mais folhas de desenhos. Nada de especial, mas
olhei com atenção e até elogiei, pois, incentivado, o menino podia
até melhorar. Nunca se sabe onde estão escondidos os grandes
talentos.
Virando
um dos papéis, amarelado pelo tempo e que deixava vazar a escrita em
caneta-tinteiro para o lado dos desenhos, percebi que parecia um
documento escrito em português antigo, as letras miúdas e muito bem
desenhadas, uma escrita contínua, quase sem fôlego ou pontuação.
A leitura daquela folha já estava bastante prejudicada, não só
pela interferência do desenho do menino no lado oposto, mas também
porque este parecia ter sido feito sobre uma superfície porosa, que
bem podia ser o chão de cimento cru da sala, com os traços bastante
calcados, fazendo com que a folha se rasgasse em alguns pontos.
Peguei outro papel que tinha um desenho menor e, assim que o virei, a
primeira palavra que consegui ler foi “Licutan”. Surpresa,
perguntei se eles sabiam quem tinha escrito aquilo, ao que dona Clara
respondeu que não sabia, e que nem parecia escrito na nossa língua,
pois a filha mais velha, a Rosa, que lia muito bem, tinha tentado
ler, mas não conseguira. Eu disse que era a nossa língua sim, só
que escrita de um modo antigo, e que provavelmente aquele documento
era de uma época em que nenhum deles tinha nascido ainda. Dona Clara
perguntou se eu conseguia ler e respondi que talvez sim, mas que
teria que ser com calma. Perguntei onde ela tinha encontrado tais
papéis, que ficavam ainda mais fascinantes à medida que eu ia
reconhecendo outros nomes, outras situações e alguns lugares que me
remetiam à história dos malês. Ela então contou que tinha pegado
os papéis, junto com algumas revistas, na Igreja do Sacramento, na
vila de Itaparica, onde também fazia limpeza. Uma troca de padres
levou o padre antigo a pedir que ela se desfizesse de tudo que estava
guardado em um quartinho nos fundos da casa paroquial, e com dó de
jogar fora, principalmente as revistas cheias de figuras, ela pediu
permissão para levar para casa. Quase tinha posto fogo nos papéis,
mas se lembrou de que o Gérson vivia procurando papel para desenhar
e que, quando não encontrava, desenhava até nas paredes.
Pedi
ao Gérson que me mostrasse todos os papéis iguais àqueles que ele
ainda tivesse, e era uma quantidade considerável, uma pilha de mais
ou menos trinta ou trinta e cinco centímetros de altura. Perguntei
se eles poderiam me emprestar aquilo tudo, pois eu queria tentar
entender o que estava escrito ali, e dona Clara disse que eram meus,
que eu nem precisava devolver. Gérson fez cara de protesto, e eu
disse que daria a ele uma quantidade ainda maior de papéis, todos
novinhos dos dois lados, e ainda canetas, lápis de cor, giz de cera,
tintas, pincéis e tudo mais de que ele precisava para fazer muitos
desenhos. O menino riu de orelha a orelha, mas não tanto quanto eu,
que tinha certeza de ter encontrado ali muito mais do que ousara
procurar. Perguntei à dona Clara quando ela levara aquilo tudo para
casa, e ela disse que não tinha nem uma semana, que o padre novo nem
tinha chegado ainda. Dei graças por não ter me lembrado de entregar
as fotografias antes, porque, nesse caso, aqueles papéis teriam se
perdido para sempre, nas costas dos desenhos de Gérson.
Quando
fui embora, feliz com o meu tesouro, eles me pediram para voltar
quando conseguisse ler tudo que estava escrito, para contar a
história; e eu prometi que sim, que eles seriam os primeiros a
saber. Mas voltei muito antes disso, logo no dia seguinte, com os
materiais que tinha prometido ao Gérson. Acho que isto aliviou um
pouco a minha consciência por estar tirando deles um documento tão
importante como aquele. Hoje já não penso mais assim, e foi por
isso que resolvi contar aqui como tudo aconteceu. Acredito que
poderia assinar este livro como sendo uma história minha, toda
inventada — embora algumas partes sejam mesmo, as que estavam
ilegíveis ou nas folhas perdidas, pois dona Clara me contou que
Gérson amassava e jogava fora os desenhos dos quais não gostava. Se
eu me apropriasse da história, provavelmente a autoria nunca seria
contestada, pois ninguém até então sabia da existência dos
manuscritos, nem em Itaparica nem alguns historiadores de Salvador
para quem os mostrei.
Depois
de escrever e revisar este livro, entreguei todos os papéis a uma
pessoa que, com certeza, vai saber o que fazer com eles. Mesmo porque
esta pode não ser uma simples história, pode não ser a história
de uma anônima, mas sim de uma escravizada muito especial, alguém
de cuja existência não se tem confirmação, pelo menos até o
momento em que escrevo esta introdução. Especula-se que ela pode
ser apenas uma lenda, inventada pela necessidade que os escravizados
tinham de acreditar em heróis, ou, no caso, em heroínas, que
apareciam para salvá-los da condição desumana em que viviam. Ou
então uma lenda inventada por um filho que tinha lembranças da mãe
apenas até os sete anos, idade em que pais e mães são grandes
heróis para seus filhos. Ainda mais quando observados por mentes
espertas e criativas, como era o caso deste filho do qual estou
falando, que nasceu livre, foi vendido ilegalmente como escravizado,
e mais tarde se tornou um dos principais poetas românticos
brasileiros, um dos primeiros maçons e um dos mais notáveis
defensores dos escravizados e da abolição da escravatura. Um homem
inteligente e batalhador que, tendo nascido de uma negra e de um
fidalgo português que nunca o reconheceu como filho, conseguiu se
tornar advogado e passou a vida defendendo aqueles que não tiveram a
sorte ou as oportunidades que ele tão bem soube aproveitar. O que
você vai ler agora talvez seja a história da mãe deste homem
respeitado e admirado pelas maiores inteligências de sua época,
como Rui Barbosa, Raul Pompeia e Silvio Romero. Mas também pode não
ser. E é bom que a dúvida prevaleça até que, pelo estudo do
manuscrito, todas as possibilidades sejam descartadas ou confirmadas,
levando-se em conta o grande número de coincidências, como nomes,
datas e situações. Torço para que seja verdade, para que seja ela
própria a pessoa que viveu e relatou quase tudo o que você vai ler
neste livro. Não pela história, que não desejo a ninguém, e logo
você vai saber por quê.
Bem,
agora fique com a história que, conforme prometi, foi contada em
primeira mão para dona Clara e sua família, em deliciosas tardes na
praia de Amoreiras. Nunca é demais lembrar que tinham desaparecido
ou estavam ilegíveis várias folhas do original, e que nem sempre me
foi possível entender tudo que estava escrito. Optei por deixar
algumas palavras ou expressões em iorubá, língua que acabou sendo
falada por muitos escravizados, mesmo não sendo a língua nativa
deles. Nestes casos, coloquei a tradução ou a explicação no
rodapé. O texto original também é bastante corrido, escrito por
quem desejava acompanhar a velocidade do pensamento, sem pontuação
e quebra de linhas ou parágrafos. Para facilitar a leitura, tomei a
liberdade de pontuá-lo, dividi-lo em capítulos e, dentro de cada
capítulo, em assuntos. Espero que Kehinde aprove o meu trabalho e
que eu não tenha inventado nada fora de propósito. Acho que não,
pois muitas vezes, durante a transcrição, e principalmente durante
a escrita do que não consegui entender, eu a senti soprando palavras
no meu ouvido. Coisas da Bahia, nas quais acredita quem quiser…
Boa
leitura!
Ana
Maria Gonçalves
“As
sementes da descoberta flutuam constantemente à nossa volta, mas só
lançam raízes nas mentes bem preparadas para recebê-las.”
Joseph
Henry
Ana Maria Gonçalves, in Um defeito de cor
Nenhum comentário:
Postar um comentário