I
Saio
de meu poema
como
quem lava as mãos.
Algumas
conchas tornaram-se,
que
o sol da atenção
cristalizou;
alguma palavra
que
desabrochei, como a um pássaro.
Talvez
alguma concha
dessas
(ou pássaro) lembre,
côncava,
o corpo do gesto
extinto
que o ar já preencheu;
talvez,
como a camisa
vazia,
que despi.
II
Esta
folha branca
me
proscreve o sonho,
me
incita ao verso
nítido
e preciso.
Eu
me refugio
nesta
praia pura
onde
nada existe
em
que a noite pouse.
Como
não há noite
cessa
toda fonte;
como
não há fonte
cessa
toda fuga;
como
não há fuga
nada
lembra o fluir
de
meu tempo, ao vento
que
nele sopra o tempo.
III
Neste
papel
pode
teu sal
virar
cinza;
pode
o limão
virar
pedra;
o
sol da pele,
o
trigo do corpo
virar
cinza
(Teme,
por isso,
a
jovem manhã
sobre
as flores
da
véspera).
Neste
papel
logo
fenecem
as
roxas, mornas
flores
morais;
todas
as fluidas
flores
da pressa;
todas
as úmidas
flores
do sonho.
(Espera,
por isso,
que
a jovem manhã
te
venha revelar
as
flores da véspera).
IV
O
poema, com seus cavalos,
quer
explodir
teu
tempo claro; romper
seu
branco fio, seu cimento
mudo
e fresco.
(O
descuido ficara aberto
de
par em par;
um
sonho passou, deixando
fiapos,
logo árvores instantâneas
coagulando
a preguiça).
V
Vivo
com certas palavras,
abelhas
domésticas.
Do
dia aberto
(branco
guarda-sol)
esses
lúcidos fusos retiram
o
fio de mel
(do
dia que abriu
também
como flor)
que
na noite
(poço
onde vai tombar
a
aérea flor)
persistirá:
louro
sabor,
e ácido,
contra
o açúcar do podre.
VI
Não
a forma encontrada
como
uma concha, perdida
nos
frouxos areais
como
cabelos;
não
a forma obtida
em
lance santo ou raro,
tiro
nas lebres de vidro
do
invisível;
mas
a forma atingida
como
a ponta do novelo
que
a atenção, lenta,
desenrola,
aranha;
como o mais extremo
desse
fio frágil, que se rompe
ao
peso, sempre, das mãos
enormes.
VII
É
mineral o papel
onde
escrever
o
verso; o verso
que
é possível não fazer.
São
minerais
as
flores e as plantas,
as
frutas, os bichos
quando
em estado de palavra.
É
mineral
a
linha do horizonte,
nossos
nomes, essas coisas
feitas
de palavras.
É
mineral, por fim,
qualquer
livro:
que
é mineral a palavra
escrita,
a fria natureza
da
palavra escrita.
VIII
Cultivar
o deserto
como
um pomar às avessas.
(A
árvore destila
a
terra, gota a gota;
a
terra completa
cai,
fruto!
Enquanto
na ordem
de
outro pomar
a
atenção destila
palavras
maduras).
Cultivar
o deserto
como
um pomar às avessas:
então,
nada mais
destila;
evapora;
onde
foi maçã
resta
uma fome;
onde
foi palavra
(potros
ou touros
contidos)
resta a severa
forma
do vazio.
João Cabral de Melo Neto, em Antologia Poética
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