Este
caso aconteceu há bastante tempo, ao que me contaram. Afiançaram-me
que era verídico.
É
o seguinte:
Jane
– 28 anos – e Bob Douglas, 32 anos, casados, havia quatro anos,
viviam o que se chama de felizes no bairro de Soho, Londres.
Certa
tardinha, quando Jane servia o chá para ambos, Bob, de repente,
enfureceu-se:
– Fico
doente de ver todos os dias esse bule velho de bico rachado! Não
aguento mais!
Jane,
em geral suave, retrucou também enraivecida:
– Pois
vá você mesmo comprar um bule bem bonito, se tem dinheiro!
Bob
– e ao que parece era a primeira “cena” entre ambos – Bob
saiu batendo a porta. Foi visto num pub, certamente para se acalmar –
e depois nunca mais foi visto por ninguém. Isto mesmo: desapareceu.
Jane boquiaberta.
Muito
tempo depois, Jane soube por um conhecido de ambos que vira Bob num
bar em Paris. E que se alistara por cinco anos na Legião
Estrangeira. O conhecido prometeu-lhe que, havendo meios, ele
arranjaria seu endereço em Paris.
Como
presente de Natal, ela ficou sabendo onde Bob morava e escreveu-lhe
emocionada. E houve a resposta.
Bob
lastimava-se inclusive de não lhe ter escrito: “Querida, quando
recobrei o juízo, fiz tudo para não entrar mais na Legião.
Querida, ajude-me a consegui-lo ou pelo menos venha ter comigo. Só
desejo é estar perto de ti. Sinto saudades terríveis.”
Jane
trabalhou como louca – 15 horas por dia em dois empregos: de dia
como garçonete de um pub, de noite no vestiário de um nightclub.
Até
que juntou o dinheiro suficiente para ir a Paris. Mas não adiantou
seu esforço (que consistia também em comer pouco): Bob já tinha
sido removido para o Norte da África. Jane implorou a oficiais da
Legião Estrangeira no Quai d’Orsay que licenciassem Bob. Chorava.
Também chorava porque tinha vergonha de explicar que a causa não
fora trágica: fora por causa de um bule de chá de bico rachado.
Mas
quem acreditaria? Ouviram-na com polidez e depois disseram-lhe que,
pelo regulamento, ela só teria o marido de volta para casa em cinco
anos.
Restava
à inglesinha retornar a Londres, trabalhar e trabalhar, economizando
para financiar sua viagem marítima num cargueiro para
Sidi-bel-Abbes.
A
conta do banco começava já a crescer, quando Jane recebeu mais uma
carta de Bob: “Querida, estou num abismo de desespero. Vou ser
mandado para a Indochina.”
Mas
de tanto receio e desespero, Bob adoece, baixou ao hospital. Seus
companheiros seguiram viagem, muitos deles morreram em Dien-Bien-Phu.
Jane tentou engajar-se na Cruz Vermelha Internacional ou na Marinha
Mercante. Mas sem êxito algum.
Um
mês depois, julgado curado, embarcaram Bob para a Indochina. Ao
passar o navio pelo Canal de Suez, ele e mais quatro italianos
atiraram-se na água.
A
polícia egípcia prendeu-os por entrada ilegal. Em Londres, Jane
suplicou e suplicou ao Foreign Office que livrasse o marido das
complicações. Tanto falou que terminou dizendo a verdade que
parecia mentira mas não era:
– Tudo
– explicou com pudor – aconteceu por causa de um velho bule de
bico rachado.
Fico
danada da vida por não saber o fim da história, e suponho que vocês
também.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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