[...]
Ao
em seguimento disso, só na sexta-feira de tardinha foi que chegaram
no arraial, terminada a viajação. Aquela hora mesma, Pedro Orósio
e o Ivo tocaram suas pagas e agrados — o gratisdado, em bôas
cédulas. “Gastar atôa, não gasto. É baixo! Nem entro em
frojoca...” — Pedro se constou. — “Ainda, olha, amanhã de
noite é a festa, oé? Melhor a gente ir junto, em az. Viro, venho te
buscar...” — o Ivo dispôs. — “Uai, ara...” Aí, Pedro
Orósio passou para a casa de seô Tolendal, que tinha venda. A ele
satisfez o resto de umas dívidas, o restante lhe pediu que
guardasse. Cobre seu, não-vê, era para bembaratar no justo e certo.
E seô Tolendal — homem entendido em confiança e inteligência —
mandou arrumar uma cama para o Pedro repousar aquela noite. Dormiu em
bom colchão com lençol e colcha, em cima do balcão.
E
faz e acontece que, sábado, de manhã, cedinho até demais, o povo
todo morador naquela rua principal teve de se acordar debaixo duma
continuação de gritos grados, que não achavam suspensão. Pedro
Orósio se levantou, abriu em fresta a porta da venda. Que viu? Era o
homem dôido — aquele Nominedômine! Em bem que ele agora estava
vestido, de algum jeito. E tinha enrolado uma ruma de panos em cada
pé, em guisa de servir de calçado: aquilo parecia o sujeito pisando
poeira enfiado em dois travesseirões, frouxoso. Estafermo mesmo
assim, arava o passo, pernas tantas, até cada fim da rua, e
retornava, estroso, ardente, cachorro caçado, sete fôlegos. Abria o
peito: — “...É a Voz e o Verbo... É a Voz e o Verbo...
Arreúnam, todos, e me escutem, que o fim-do-mundo está pendurando!
Siso, que minha prédica é curta, tenho que muito ir e converter...”
Da
casa-de-venda do Flôr, do outro lado da esquina, um moço cometa se
chegava à janela e perguntava: — “Você é Cristo, mesmo, ou é
só João Batista?...”
E
o vira-mundo malucal, que já ia se afastado, se revirou, rente, por
sobre o descompasso de suas altas pernas, que nem umas andas, e
levantou os braços, bem escancarados — feito precisasse de escorar
a queda do céu. E deu exclama:
— Bendito
o que vem in nômine Dômine!
… Se
via que ele estava no último ponto de escarnado, escaveirado, o sol
queimara aquela cara, de descascar pele. Mas perdera a gaforina —
devia de ter pedido a alguém para lhe rapar a cabeça. E os olhos
frechavam, resumo de brasas. Dava pena. De seguro, teria terminado o
traquejo de jejum e rezas no malhador de gado do raso do Modestim, e
nem esperara por mais nada, para executar o danado avanço, de déu
em déu, em nome de Deus. Só podia ser que tivesse navegado a
madrugada inteira, para vir chegar agora a esta hora. Em algum sítio
podia ser que tivessem dado a ele um café?
— … Sua
pergunta é do rogo da fé, e não da carne, não, moço. O senhor é
homem gentil, tem galardão! Tem galardão... Mas eu sou o zerinho
zero, malemal uma humilde criatura do Senhor: eu nem sou a Voz...
Vinde, povo: senvergonhas, pecadores, homens e mulheres, todos. Todos
eu amo, vim por vosso serviço, Deus enviou por mim, ele requer o
vosso remimento. Dele tenho o praz-me. Olha o aviso: evém o fim do
mundo, em fôgo, fôgo e fôgo! O mundo já começou a se acabar, e
vós semprando na safadeza, na goiosa! Contraforma! Contraforma! Olha
o enquanto-é-tempo... Vamos, vamos: p’r’ a igreja! Todos me
acompanhem. Aqui-del-papa! Aqui-del-presidente!
Desabalou
de vez, olho da rua a longe, quase correndo, feito pulando rego,
tinha de alargar também as pernas — aqueles rôlos de pano nos pés
dele foiçavam porção de poeira. Por um vago, a gente estremecia,
salteado do aflêcho comandante daquela voz, que instava calafrios:
quase que se ia acreditando. As mulheres se benziam. Aí já havia
pessoas em praça — pois era véspera de festa, o arraial se
apostava com limpezas e arcos embandeirinhados, estando cheio de
forasteiros; por maior, pretos. Outros, que acordaram com a latomia
do Nominedômine em seu ir e desvir, durado em mais de
quarto-de-hora, já tinham vestido roupa, e saíam como público. Que
era que deviam de fazer? Ir chamar os frades? O dôido, direto para a
igreja do Rosário, era capaz de obrar muitos desatinos. Devia-se de
ir para lá. Pedro Orósio também já estava pronto, fora de portas.
Aquele dia-de-sábado principiava bem.
E
de repente o sino do Rosário se tangeu — col a col, cantarol. Ah,
quem batia, sabia: tantoava em repique e repinico, muito claro no
bimbalho. Mas, foi logo a forte, dez mãos pelo badalo, pegou a
bedelengar a tôrto, dlá e dlém, parecia querer romper de vez a
forma de seu carôço dele. Virgem! — o Nominedômine tinha
alcançado de chegar à torre, a igreja estava entregue aos máscaras,
carecia de o pessoal todo do arraial correr para lá. O homem dava
rebate, rebimbo, dobra que redobrava, a tal. Depois, perdia qualquer
estilo. Era só aquela fúria: dladlava, dlandoava, o sino também
fervia do juízo! Ora, o sinão do Rosário é reinol, de bôa marca,
bem santificado: é sino de uma légua. A portanto, aquilo bronze
zoava fora de rol, transtornava a gente. Agora, sim, o Nominedômine,
Nomendome, Santos-Óleos ou Jubileu — ele cujo tinha encontrado seu
poder de rachar os ouvidos do povo todo, em prol, com sua gritação
do fim do mundo. Corriam para lá. Manejar errado com sino é negócio
tenebroso. E Pedro Orósio corria mais na frente — ele era por
longe o trucúlo de homem mais possante do lugar, capaz de capaz.
Para agarrar, seguro, braços e pernas do desgraçado, e arretirá-lo
do santo assoalho da igreja, e socar paz e sossego, a bem dos usos da
razão. Todos iam ficando por detrás do Pedro. — “Dá nele, Pê!
Senta a mão nesse desordeiro... Isso é puro herege!” — uns
gritavam, já alegres, assanhados. E o sino feria, estalava facas no
ar, feito raios. Mas no plém dele se sentia uma alegria maluca e
santa, rompendo salvação, pelas altas glórias. A voz do
Nominedômine, em seu despropósito de urgente felicidade. Aí,
quando iam acabando de subir a ladeirinha, e chegando lá — ele
parou. Esbarrou de tocar, de um pronto curto, no coração da gente,
que se tonteou. Como quando uma cigarra graúda de dezembro está
tinindo muito perto, e acaba.
Na
igreja, lá estava ele, o Santos-Óleos, junto do altar-mor e virado
para os fiéis — pois mesmo àquela hora já havia gente ajoelhada
em posto — as velhas igrejeiras, umas velhas ou mesmo moças, cada
qual com seu terço nos dedos, quase todas com mantos na cabeça,
seus fichús.
E
pois, ele pregava. Alargava braços altos, gloriava os olhos,
santamente, para cima, cruzes que a mão sinalava no ar,
administrava. Mas muito sacudia as pernas, ligeiroso, o pior era que
a gente via aqueles travesseirões que ele calçava, parecia coisa
que estava maldansando.
A
igreja agora estava cheia, de mulheres e homens, que escutavam
aquietados. E ninguém, nem Pedro Orósio, não tinha coragem de ir
sojigar o homem dali, e o expulsar pra fora, só pelo tanto que ele
invocava o nome da Virgem e de Deus, e porque tinham medo de produzir
algum sacrilégio, no consagrado daquele recinto, estando o Senhor no
Tabernáculo. Mas nada ou quase nada do que o Nominedômine dava de
sermão, se aproveitava. Que o que ele dizia:
— Às
almas, meus irmãos! O fim do mundo, mesmo, já começou, por longes
terras. E vem vindo... Olha os prazos! Vamos rezar, vamos esquentar,
vamos ser! Bons jejuns... Alerta — às almas!... Daqui vou, beijar
o pé esquerdo e a mão direita de Santa Manoelina dos Coqueiros. A
data exata do fim, Deus vai me dizer é lá na capelinha largada nos
campos, nos Fêchos-do-Funil... Lá não me ouvem: terra de um
maltrata seu mensageiro. Cambada! Quer sono, não tem sonho... Orate
fratres... Vocês mesmo não notam: mas a alma de cada um já
começou a ficar adormecida... Olha os prazos! Olhem para os bichos,
por comparação…
Mas,
nesse justo momento, vinham chegando os frades — frei Sinfrão e
frei Florduardo — evinham enérgicos. O Nominedômine, de lá do
altar, curvou mesura profunda, e garrou a acabar de sermoar, depressa
ainda mais, sabendo que agora lhe sobrava pouquinho tempo. Refalava:
— “...No ermo onde fortifiquei meus dias de jejum maior, num
recampo de gados, veio um anjo mandado, um anjo papudo e idiota —
mais do que assim eu não mereci... Ele mesmo me confirmou e me disse
do aspecto do fim grave. Me escutem!”
E
nisso Pedro Orósio, correndo pelo meio da igreja, a fito de ajudar a
defender os frades, caso o Nominedômine reagisse contra eles, deu
uma esbarrada no Coletor. O qual Coletor era outro que não regulava
bem. Estava com sua pilha de papéis e jornais, e com as algibeiras
cheias de tocos de lápis, com eles constantemente fazia contas de
números nas beiradas brancas dos jornais. E o Coletor era um que
gostava de frequentar sempre perto ou dentro de igreja, e se
ajoelhara rente na primeira fileira, junto com as mulheres mais
beatas, ao pé do gradil da banca de comunhão. E com o esbarrão do
Pedro Orósio ele se despertou e alevantou a prumo a cabeça.
— … Escutem
minha voz, que é a do Anjo dito, o papudo: o que foi revelado. Foi o
Rei, o Rei-Menino, com a espada na mão! Tremam, todos! Traço o sino
de Salomão... Tremia as peles — este é o destino de todos: o fim
de morte vem à traição, em hora incerta, é de noite... Ninguém
queira ser favoroso! Chegou a Morte — aconforme um que cá traz, um
dessa banda do norte, eu ouvi — batendo tambor de guerra! Santo,
santo, Deus dos Exércitos... A Morte: a caveira, de dia e de noite,
festa na floresta, assombrando. A sorte do destino, Deus tinha
marcado, ele com seus Dôze! E o Rei, com os sete homens-guerreiros
da História Sagrada, pelos caminhos, pelos ermos, morro a fora...
Todos tremeram em si, viam o poder da caveira: era o fim do mundo.
Ninguém tem tempo de se salvar, de chegar até na Lapinha de Belém,
pé da manjedoura... Aceitem meu conselho, venham em minha
companhia... Deus baixou as ordens, temos só de obedecer. É o rico,
é o pobre, o fidalgo, o vaqueiro e o soldado... Seja Caifaz, seja
Malaquias! E o fim é à traição. Olhem os prazos!…
Mas,
por aí, o frei Florduardo já se chegava, bastou só levantar a mão,
para atenção: e o Nominedômine se ajoelhou de vez, aos pés dele,
prostrou a cara. — “Pode ir, meu filho. Deus te abençôe...” —
o frade falou. E o Nominedômine se levantou e foi puxando, vagaroso,
pela beira da igreja, de olhos postos, rezando cantado em latim o
Credo e o Padre-Nosso, com voz tão enfadonha. À porta, se voltou e
declarou assim inesperado: — “Olha o responsório! Olha o
falimento do fim, cambada!” Daí, se foi. Dava dó. Quem sabe ele
não estava pressentindo um fiapo dos tempos? Pedro Orósio ainda
veio cá fora, perseguí-lo com a vista. Embora, ô cujo para comer
estrada: rumou, rumou, era aquela terrível velocidade, dum lado e
doutro não queria saber de nada. Tirou dali, desceu, cortou a
várzea, subiu como quem ia para a Lagôa, pelo Bento-Velho. Já
estava alongado demais. Por fim, foi para o morro, adversamente,
abriu um furozinho preto no horizonte, por ele se passou, e se sumiu
do mundo.
[…]
Guimarães Rosa, em No Urubuquaquá, No Pinhém
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