sábado, 29 de junho de 2024

O recado do morro (excerto)


[...]

Ao em seguimento disso, só na sexta-feira de tardinha foi que chegaram no arraial, terminada a viajação. Aquela hora mesma, Pedro Orósio e o Ivo tocaram suas pagas e agrados — o gratisdado, em bôas cédulas. “Gastar atôa, não gasto. É baixo! Nem entro em frojoca...” — Pedro se constou. — “Ainda, olha, amanhã de noite é a festa, oé? Melhor a gente ir junto, em az. Viro, venho te buscar...” — o Ivo dispôs. — “Uai, ara...” Aí, Pedro Orósio passou para a casa de seô Tolendal, que tinha venda. A ele satisfez o resto de umas dívidas, o restante lhe pediu que guardasse. Cobre seu, não-vê, era para bembaratar no justo e certo. E seô Tolendal — homem entendido em confiança e inteligência — mandou arrumar uma cama para o Pedro repousar aquela noite. Dormiu em bom colchão com lençol e colcha, em cima do balcão.
E faz e acontece que, sábado, de manhã, cedinho até demais, o povo todo morador naquela rua principal teve de se acordar debaixo duma continuação de gritos grados, que não achavam suspensão. Pedro Orósio se levantou, abriu em fresta a porta da venda. Que viu? Era o homem dôido — aquele Nominedômine! Em bem que ele agora estava vestido, de algum jeito. E tinha enrolado uma ruma de panos em cada pé, em guisa de servir de calçado: aquilo parecia o sujeito pisando poeira enfiado em dois travesseirões, frouxoso. Estafermo mesmo assim, arava o passo, pernas tantas, até cada fim da rua, e retornava, estroso, ardente, cachorro caçado, sete fôlegos. Abria o peito: — “...É a Voz e o Verbo... É a Voz e o Verbo... Arreúnam, todos, e me escutem, que o fim-do-mundo está pendurando! Siso, que minha prédica é curta, tenho que muito ir e converter...”
Da casa-de-venda do Flôr, do outro lado da esquina, um moço cometa se chegava à janela e perguntava: — “Você é Cristo, mesmo, ou é só João Batista?...”
E o vira-mundo malucal, que já ia se afastado, se revirou, rente, por sobre o descompasso de suas altas pernas, que nem umas andas, e levantou os braços, bem escancarados — feito precisasse de escorar a queda do céu. E deu exclama:
Bendito o que vem in nômine Dômine!
Se via que ele estava no último ponto de escarnado, escaveirado, o sol queimara aquela cara, de descascar pele. Mas perdera a gaforina — devia de ter pedido a alguém para lhe rapar a cabeça. E os olhos frechavam, resumo de brasas. Dava pena. De seguro, teria terminado o traquejo de jejum e rezas no malhador de gado do raso do Modestim, e nem esperara por mais nada, para executar o danado avanço, de déu em déu, em nome de Deus. Só podia ser que tivesse navegado a madrugada inteira, para vir chegar agora a esta hora. Em algum sítio podia ser que tivessem dado a ele um café?
— … Sua pergunta é do rogo da fé, e não da carne, não, moço. O senhor é homem gentil, tem galardão! Tem galardão... Mas eu sou o zerinho zero, malemal uma humilde criatura do Senhor: eu nem sou a Voz... Vinde, povo: senvergonhas, pecadores, homens e mulheres, todos. Todos eu amo, vim por vosso serviço, Deus enviou por mim, ele requer o vosso remimento. Dele tenho o praz-me. Olha o aviso: evém o fim do mundo, em fôgo, fôgo e fôgo! O mundo já começou a se acabar, e vós semprando na safadeza, na goiosa! Contraforma! Contraforma! Olha o enquanto-é-tempo... Vamos, vamos: p’r’ a igreja! Todos me acompanhem. Aqui-del-papa! Aqui-del-presidente!
Desabalou de vez, olho da rua a longe, quase correndo, feito pulando rego, tinha de alargar também as pernas — aqueles rôlos de pano nos pés dele foiçavam porção de poeira. Por um vago, a gente estremecia, salteado do aflêcho comandante daquela voz, que instava calafrios: quase que se ia acreditando. As mulheres se benziam. Aí já havia pessoas em praça — pois era véspera de festa, o arraial se apostava com limpezas e arcos embandeirinhados, estando cheio de forasteiros; por maior, pretos. Outros, que acordaram com a latomia do Nominedômine em seu ir e desvir, durado em mais de quarto-de-hora, já tinham vestido roupa, e saíam como público. Que era que deviam de fazer? Ir chamar os frades? O dôido, direto para a igreja do Rosário, era capaz de obrar muitos desatinos. Devia-se de ir para lá. Pedro Orósio também já estava pronto, fora de portas. Aquele dia-de-sábado principiava bem.
E de repente o sino do Rosário se tangeu — col a col, cantarol. Ah, quem batia, sabia: tantoava em repique e repinico, muito claro no bimbalho. Mas, foi logo a forte, dez mãos pelo badalo, pegou a bedelengar a tôrto, dlá e dlém, parecia querer romper de vez a forma de seu carôço dele. Virgem! — o Nominedômine tinha alcançado de chegar à torre, a igreja estava entregue aos máscaras, carecia de o pessoal todo do arraial correr para lá. O homem dava rebate, rebimbo, dobra que redobrava, a tal. Depois, perdia qualquer estilo. Era só aquela fúria: dladlava, dlandoava, o sino também fervia do juízo! Ora, o sinão do Rosário é reinol, de bôa marca, bem santificado: é sino de uma légua. A portanto, aquilo bronze zoava fora de rol, transtornava a gente. Agora, sim, o Nominedômine, Nomendome, Santos-Óleos ou Jubileu — ele cujo tinha encontrado seu poder de rachar os ouvidos do povo todo, em prol, com sua gritação do fim do mundo. Corriam para lá. Manejar errado com sino é negócio tenebroso. E Pedro Orósio corria mais na frente — ele era por longe o trucúlo de homem mais possante do lugar, capaz de capaz. Para agarrar, seguro, braços e pernas do desgraçado, e arretirá-lo do santo assoalho da igreja, e socar paz e sossego, a bem dos usos da razão. Todos iam ficando por detrás do Pedro. — “Dá nele, Pê! Senta a mão nesse desordeiro... Isso é puro herege!” — uns gritavam, já alegres, assanhados. E o sino feria, estalava facas no ar, feito raios. Mas no plém dele se sentia uma alegria maluca e santa, rompendo salvação, pelas altas glórias. A voz do Nominedômine, em seu despropósito de urgente felicidade. Aí, quando iam acabando de subir a ladeirinha, e chegando lá — ele parou. Esbarrou de tocar, de um pronto curto, no coração da gente, que se tonteou. Como quando uma cigarra graúda de dezembro está tinindo muito perto, e acaba.
Na igreja, lá estava ele, o Santos-Óleos, junto do altar-mor e virado para os fiéis — pois mesmo àquela hora já havia gente ajoelhada em posto — as velhas igrejeiras, umas velhas ou mesmo moças, cada qual com seu terço nos dedos, quase todas com mantos na cabeça, seus fichús.
E pois, ele pregava. Alargava braços altos, gloriava os olhos, santamente, para cima, cruzes que a mão sinalava no ar, administrava. Mas muito sacudia as pernas, ligeiroso, o pior era que a gente via aqueles travesseirões que ele calçava, parecia coisa que estava maldansando.
A igreja agora estava cheia, de mulheres e homens, que escutavam aquietados. E ninguém, nem Pedro Orósio, não tinha coragem de ir sojigar o homem dali, e o expulsar pra fora, só pelo tanto que ele invocava o nome da Virgem e de Deus, e porque tinham medo de produzir algum sacrilégio, no consagrado daquele recinto, estando o Senhor no Tabernáculo. Mas nada ou quase nada do que o Nominedômine dava de sermão, se aproveitava. Que o que ele dizia:
Às almas, meus irmãos! O fim do mundo, mesmo, já começou, por longes terras. E vem vindo... Olha os prazos! Vamos rezar, vamos esquentar, vamos ser! Bons jejuns... Alerta — às almas!... Daqui vou, beijar o pé esquerdo e a mão direita de Santa Manoelina dos Coqueiros. A data exata do fim, Deus vai me dizer é lá na capelinha largada nos campos, nos Fêchos-do-Funil... Lá não me ouvem: terra de um maltrata seu mensageiro. Cambada! Quer sono, não tem sonho... Orate fratres... Vocês mesmo não notam: mas a alma de cada um já começou a ficar adormecida... Olha os prazos! Olhem para os bichos, por comparação…
Mas, nesse justo momento, vinham chegando os frades — frei Sinfrão e frei Florduardo — evinham enérgicos. O Nominedômine, de lá do altar, curvou mesura profunda, e garrou a acabar de sermoar, depressa ainda mais, sabendo que agora lhe sobrava pouquinho tempo. Refalava: — “...No ermo onde fortifiquei meus dias de jejum maior, num recampo de gados, veio um anjo mandado, um anjo papudo e idiota — mais do que assim eu não mereci... Ele mesmo me confirmou e me disse do aspecto do fim grave. Me escutem!”
E nisso Pedro Orósio, correndo pelo meio da igreja, a fito de ajudar a defender os frades, caso o Nominedômine reagisse contra eles, deu uma esbarrada no Coletor. O qual Coletor era outro que não regulava bem. Estava com sua pilha de papéis e jornais, e com as algibeiras cheias de tocos de lápis, com eles constantemente fazia contas de números nas beiradas brancas dos jornais. E o Coletor era um que gostava de frequentar sempre perto ou dentro de igreja, e se ajoelhara rente na primeira fileira, junto com as mulheres mais beatas, ao pé do gradil da banca de comunhão. E com o esbarrão do Pedro Orósio ele se despertou e alevantou a prumo a cabeça.
— … Escutem minha voz, que é a do Anjo dito, o papudo: o que foi revelado. Foi o Rei, o Rei-Menino, com a espada na mão! Tremam, todos! Traço o sino de Salomão... Tremia as peles — este é o destino de todos: o fim de morte vem à traição, em hora incerta, é de noite... Ninguém queira ser favoroso! Chegou a Morte — aconforme um que cá traz, um dessa banda do norte, eu ouvi — batendo tambor de guerra! Santo, santo, Deus dos Exércitos... A Morte: a caveira, de dia e de noite, festa na floresta, assombrando. A sorte do destino, Deus tinha marcado, ele com seus Dôze! E o Rei, com os sete homens-guerreiros da História Sagrada, pelos caminhos, pelos ermos, morro a fora... Todos tremeram em si, viam o poder da caveira: era o fim do mundo. Ninguém tem tempo de se salvar, de chegar até na Lapinha de Belém, pé da manjedoura... Aceitem meu conselho, venham em minha companhia... Deus baixou as ordens, temos só de obedecer. É o rico, é o pobre, o fidalgo, o vaqueiro e o soldado... Seja Caifaz, seja Malaquias! E o fim é à traição. Olhem os prazos!…
Mas, por aí, o frei Florduardo já se chegava, bastou só levantar a mão, para atenção: e o Nominedômine se ajoelhou de vez, aos pés dele, prostrou a cara. — “Pode ir, meu filho. Deus te abençôe...” — o frade falou. E o Nominedômine se levantou e foi puxando, vagaroso, pela beira da igreja, de olhos postos, rezando cantado em latim o Credo e o Padre-Nosso, com voz tão enfadonha. À porta, se voltou e declarou assim inesperado: — “Olha o responsório! Olha o falimento do fim, cambada!” Daí, se foi. Dava dó. Quem sabe ele não estava pressentindo um fiapo dos tempos? Pedro Orósio ainda veio cá fora, perseguí-lo com a vista. Embora, ô cujo para comer estrada: rumou, rumou, era aquela terrível velocidade, dum lado e doutro não queria saber de nada. Tirou dali, desceu, cortou a várzea, subiu como quem ia para a Lagôa, pelo Bento-Velho. Já estava alongado demais. Por fim, foi para o morro, adversamente, abriu um furozinho preto no horizonte, por ele se passou, e se sumiu do mundo.
[…]

Guimarães Rosa, em No Urubuquaquá, No Pinhém

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