— O
cara que aparecer na minha frente pra me dizer que compreende as
mulheres, eu primeiro falo que ele é um mentiroso sem-vergonha e, se
ele não gostar, eu meto a mão na cara dele, podes crer. Ninguém
jamais entendeu, ninguém entende, ninguém jamais entenderá.
— Não
sei se eu concordo. Se você pensar bem, ninguém entende o ser
humano. E a mulher, como ser humano...
— Mulher
não é ser humano! Tu já começa com a afirmação errada, mulher
não é ser humano, é outra espécie! E que por sinal sempre se deu
muito melhor do que nós e agora está se dando ainda melhor. Você
sabe o que é que nós, homens, somos? Nós somos vassalos, é o que
nós somos e sempre fomos! Vassalos, escravos, abaixo de escravos,
propriedades imobiliárias!
— Você
já deve ter chegado com umas duas no juízo, já deve ter passado no
Azeitona antes de chegar aqui.
— Nada
disso, meu caro amigo, estou chegando diretamente do recesso do lar,
este é o meu primeiro chope e, se Deus quiser, não há previsão
para o último.
— Não
é isso, é porque tu até pode não ser um intelectual, mas...
— Não
me xinga! Se tu me chamar de intelectual eu rompo contigo,
intelectual um cacete, eu tenho horror desses caras, devia estar tudo
numa fazenda, pegando na enxada e dizendo as besteiras deles às
vacas. Intelectual é uma merda, intelectual...
— Tudo
bem, mas você sabe perfeitamente que as mulheres sempre foram
oprimidas e discriminadas. Essa liberdade é recente, é uma
conquista que resultou de muita luta.
— Tudo
chute! Elas sempre estiveram por cima da carne-seca! Sempre foram
elas que mandaram! Eu não vou nem discutir isso com você, qualquer
historiador desmoraliza o que tu falou, eu mesmo tenho um livro lá
em casa que tu cai o queixo. E, além disso, não me interessa, eu
não sou progressista como você, nem nesse nem em outros pontos, tu
é que sempre tá querendo mostrar sintonia com as últimas do
momento, tu sempre foi assim desde o “paz e amor”, desde até “a
família que reza unida”, eu te conheço.
— Não,
eu procuro me manter atualizado, a realidade muda, nossas opiniões
também têm que mudar.
— As
minhas, não! Eu continuo do tempo em que mulher não tinha direito a
TPM! Aliás, nem existia TPM, era tudo considerado frescura e cólica
menstrual era psicológica, tudo pra aporrinhar o homem. Aliás,
mulher não fica doente, tudo é pra aporrinhar o homem. Esta é uma
grande verdade, mulher não fica doente.
— Cara,
tu tá me dando um susto, tu não tá falando sério. Tu deve é ter
tido uma briga feia com a Solange e aí...
— Claro
que eu tive uma briga, é muito simples. São 38 anos de casado, 32
morando aqui no Leblon praticamente no mesmo lugar e hoje, pela
primeira vez, eu resolvi responder ao discurso que ela faz há esses
32 anos, toda vez que eu saio pro boteco. Aí não deu papo e eu já
cheguei aqui neste estado, minha pressão deve estar batendo nuns 20
por 14. E minhas duas filhas estavam lá, estava a Vanessa, minha
nora, todo mundo contra mim, é claro.
— Mas
então tu deve ter dito alguma coisa muito ofensiva.
— Disse
zorra nenhuma! Tu já experimentou encarar um coral de jararacas te
esculhambando com o que elas lêem nessas revistas que deviam ser
proibidas? Nem Mussolini encarava! E era capaz de me cobrirem de
porrada, não duvido nada!
— Mas
que exagero, cara, tu tá transtornado, tu...
— Tou!
Tou! Tou transtornado! Tou mesmo! Eu sou de outro tempo, minhas
convicções são outras, que, aliás, são também a da maioria, só
que todo mundo é covarde e hipócrita e fica repetindo essas
babaquices pra fazer média socialmente.
— Não
é nada disso, tu tá enganado.
— Eu
não tou nada enganado! O Lula tinha toda razão, quando improvisou
que elas andam muito ousadas e daqui a pouco aparece uma querendo ser
presidente da República.
— Ah,
isso também já é preconceito demais. Aliás, a tendência é essa
mesmo, já tem havido muitas mulheres governantes, a Golda Meir, a
Indira Ghandi, a Margaret Thatcher... O que o Lula falou...
— ...
Tá certo! Ele tá certo! É o que todo mundo pensa e não tem
coragem de dizer e aí ele vai lá e fala. Aliás, eu queria lhe
dizer que eu sou a favor do que ele diz e sou improvisista de
primeira hora. Ele diz o que o povo pensa, é isso mesmo, só quem
não gosta é intelectual e veado, que, aliás, é mais ou menos a
mesma coisa, se tu for olhar bem olhado, é tudo meio boiola. Eu sou
improvisista convicto. Mulher, meu amigo, deixou desencostar a
barriga do tanque, tá lascado. Ele tem mais é que abrir o bocão e
dizer o que todo mundo pensa ali, pão, pão, queijo, queijo.
— Mas
ele não fala contra as mulheres e tem mulheres trabalhando com ele,
inclusive no Ministério.
— É
a política! A política é que obriga ele, ele não é burro e não
vai dar essa mancada de falar contra elas. Mas duvido que ele não
pense igual a mim, ele fala o que o povo pensa, essa é que é a
verdade, é por isso que todo mundo gosta dele e só a baitolada
intelectual e da imprensa é que não gosta. Por mim ele tá
reeleito, só não tá se abandonar o improvisismo.
João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite
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