Para
o prazer da leitura, na História natural de Plínio, o Velho,
aconselharia concentrar-se sobretudo em três livros: os dois que
contêm os elementos de sua filosofia, isto é, o II (sobre a
cosmografia) e o VII (sobre o homem), e, como exemplo de suas
andanças entre erudição e fantasia, o VIII (sobre animais
terrestres). Naturalmente podem ser descobertas páginas
extraordinárias por todos os lados: nos livros de geografia
(III-VI), de zoologia aquática, entomologia e anatomia comparada
(IX-XI), de botânica, agronomia e farmacologia (XII-XX-XII), ou
sobre os metais, as pedras preciosas e as belas-artes
(XXXIII-XXXVII).
O
uso que sempre se fez de Plínio, penso eu, foi o de consulta, tanto
para saber o que os antigos conheciam ou acreditavam conhecer sobre
determinado argumento quanto para compilar curiosidades e disparates.
(Sob este último aspecto, não se pode negligenciar o Livro I, ou
seja, o sumário da obra, cujas sugestões vêm de aproximações
imprevistas: “Peixes que têm uma pedrinha na cabeça; peixes que
se escondem no inverno; peixes que sentem a influência dos astros;
preços extraordinários pagos por certos peixes”, ou então: “A
propósito da rosa: doze variedades, 32 remédios; três variedades
de lírios: 21 remédios; Planta que nasce de uma lágrima; três
variedades de narcisos; dezesseis remédios; Planta cuja semente é
pintada para que nasçam flores coloridas; O açafrão: vinte
remédios; Onde dá as melhores flores; Que flores eram conhecidas no
tempo da Guerra de Troia; Roupas que rivalizam com as flores”, ou
ainda: “Natureza dos metais; Do ouro; Da quantidade de ouro
possuída pelos antigos; Da ordem equestre e do direito de usar anéis
de ouro; Quantas vezes a ordem equestre mudou de nome?”.) Mas
Plínio é também um autor que merece uma leitura ampla, no
movimento calmo de sua prosa, animada pela admiração por tudo
aquilo que existe e pelo respeito à infinita diversidade dos
fenômenos.
Poderíamos
distinguir um Plínio poeta e filósofo, com um sentimento seu do
universo, um pathos próprio do conhecimento e do mistério, e um
Plínio neurótico colecionador de dados, compilador obsessivo, que
parece preocupado somente em não desperdiçar nenhuma anotação de
seu fichário mastodôntico. (Na utilização das fontes escritas era
onívoro e eclético, mas não acrítico: existia o dado que
considerava bom, outro que registrava enquanto inventário e outros
que refutava como evidente embuste: só que o critério de suas
avaliações parece bastante oscilante e imprevisível.) Porém, uma
vez admitida a existência destas duas faces, é preciso reconhecer
de imediato que Plínio é sempre uno, assim como uno é o mundo que
ele quer descrever na variedade de suas formas. Para atingir seu
objetivo, não receia dar fundamento ao número interminável das
formas existentes, multiplicado pelo número interminável de
informações existentes sobre todas estas formas, porque formas e
informações têm para ele o mesmo direito de fazer parte da
história natural e de ser interrogadas por quem busca nelas aquele
signo de uma razão superior que está convencido de que elas devam
encerrar.
O
mundo é o céu eterno e não criado, cuja abóbada esférica e
giratória cobre todas as coisas terrenas (II, 2), mas o mundo
dificilmente pode distinguir-se de Deus, que, para Plínio e para a
cultura estoica a que ele pertence, é um Deus único, não
identificável com algumas de suas porções ou aspectos, nem com a
multidão de personagens do Olimpo (mas talvez sim com o Sol, alma ou
mente ou espírito do céu, II, 13). Porém, o céu é feito ao mesmo
tempo de estrelas eternas como ele (as estrelas tecem o céu e
simultaneamente acham-se inseridas no tecido celeste: “aeterna
caelestibus est natura intexentibus mundum intextuque concretis”,
II, 30), mas é também o ar (acima e abaixo da Lua) que parece vazio
e difunde aqui embaixo o espírito vital e produz nuvens, granizo,
trovões, raios, tempestades (II, 102).
Quando
falamos de Plínio, não sabemos nunca até que ponto podemos
atribuir a ele as ideias que exprime; de fato, ele faz questão de
colocar o menos possível de seu, limitando-se ao que transmitem as
fontes; e isso segundo uma ideia impessoal do saber, que exclui a
originalidade individual. Para tentar compreender qual é realmente o
seu sentido da natureza, que lugar ocupam nele a arcana majestade dos
princípios e a materialidade dos elementos, devemos ater-nos àquilo
que é certamente seu, isto é, a substância expressiva da prosa.
Observem-se, por exemplo, as páginas sobre a Lua, onde o acento de
comovida gratidão a este “astro último, o mais familiar para
todos os que vivem sobre a Terra, remédio para as trevas”
(“novissimum sidus, terris familiarissimum et in tenebrarum
remedium…”, II, 41), e por tudo aquilo que ele nos ensina com o
movimento de suas fases e eclipses se une à funcionalidade ágil das
frases para reproduzir esse mecanismo com nitidez cristalina. É nas
páginas astronômicas do Livro II que Plínio demonstra poder ser
algo mais que o compilador de gosto imaginativo que em geral se
acredita, revelando-se um escritor que possui aquilo que será a
qualidade principal da grande prosa científica: transcrever com
nítida evidência o raciocínio mais complexo, extraindo dele um
sentido de harmonia e beleza.
E
isso sem se inclinar jamais para a especulação abstrata. Plínio se
atém sempre aos fatos (àqueles que ele considera fatos ou que
alguém julgou como tais): não aceita a infinidade dos mundos porque
a natureza já é bastante difícil de ser conhecida e a infinidade
não simplificaria o problema (II, 4); não acredita no som das
esferas celestes, nem como fragor além do audível nem como
indizível harmonia, pois “para nós, que estamos dentro dele, o
mundo desliza noite e dia em silêncio” (II, 6).
Depois
de ter despido Deus das características antropomórficas que a
mitologia atribui aos imortais do Olimpo, por força da lógica
Plínio tem de reaproximar Deus dos homens por causa dos limites
impostos pela necessidade aos seus poderes (ao contrário, num caso
Deus é menos livre que os homens porque não poderia matar-se nem
que pretendesse): Deus não pode ressuscitar os defuntos nem fazer de
modo que quem viveu não tenha vivido; não tem nenhum poder sobre o
passado, sobre a irreversibilidade do tempo (II, 27). Como o Deus de
Kant, não pode entrar em conflito com a autonomia da razão (não
pode evitar que dez mais dez somem vinte), mas defini-lo nestes
termos nos afastaria do imanentismo pânico de sua identificação
com a força da natureza (“per quae declaratur haut dubie naturae
potentia idque esse quod deum vocemus”, II, 27).
Os
tons líricos ou lírico-filosóficos que dominam os primeiros
capítulos do Livro II correspondem a uma visão de harmonia
universal que não tarda a romper-se; parte considerável do livro é
dedicada aos prodígios celestes. A ciência de Plínio oscila entre
a intenção de reconhecer uma ordem na natureza e o registro do
extraordinário e do único: e o segundo aspecto acaba sempre
vencendo. A natureza é eterna, sagrada e harmoniosa, mas deixa uma
larga margem ao aparecimento de fenômenos prodigiosos inexplicáveis.
Que conclusão geral podemos extrair disso? Que se trata de uma ordem
monstruosa, feita só de exceções à regra? Ou que se trata de
regras tão complexas que escapam ao nosso entendimento? Em ambos os
casos, para cada fato deve existir uma explicação, mesmo que ainda
seja desconhecida para nós: “São coisas de explicação incerta e
oculta na majestade da natureza” (II, 101), e pouco mais adiante:
“Adeo causa non deest” (II, 115), não são as causas que faltam,
uma causa pode sempre ser encontrada. O racionalismo de Plínio
exalta a lógica das causas e dos efeitos, mas ao mesmo tempo a
minimiza: quando também você encontra a explicação dos fatos, nem
por isso os fatos deixam de ser maravilhosos.
A
máxima que citei por último conclui um capítulo sobre a origem
misteriosa dos ventos; dobras de montanhas, cavidades de vales que
reproduzem os sopros de vento como sons de eco, uma gruta na Dalmácia
onde basta lançar qualquer coisa, mesmo leve, para desencadear uma
tempestade marinha, uma rocha na Cirenaica onde basta tocar com uma
das mãos para provocar um turbilhão de areia. Desses catálogos de
fatos estranhos, não ligados entre si, Plínio nos oferece
muitíssimos: aqueles sobre os efeitos do raio sobre o homem, com
seus estragos frios (dentre as plantas o raio safa apenas o louro e
dentre as aves, a águia, II, 146), aqueles sobre as chuvas
extraordinárias (de leite, de sangue, de carne, de ferro ou esponjas
de ferro, de lã, de tijolos cozidos, II, 147).
Contudo,
Plínio limpa o terreno sobre tantas histórias, como os presságios
dos cometas (por exemplo, ele refuta a crença de que um cometa que
surja entre as partes pudendas de uma constelação — o que os
antigos não viam no céu! — anuncie uma época de relaxamento dos
costumes: “obscenis autem moribus in verendis partibus signorum”,
II, 93), mas todo prodígio se lhe apresenta como um problema da
natureza, enquanto é a outra face da norma. Plínio se defende das
superstições, mas nem sempre sabe reconhecê-las, e isso é bem
mais verdadeiro no Livro VII, onde fala da natureza humana: mesmo
sobre fatos facilmente observáveis transcreve crenças das mais
estapafúrdias. Típico é o capítulo sobre as menstruações (VII,
63-6), mas é preciso observar que as informações de Plínio
situam-se no campo dos mais antigos tabus religiosos concernentes ao
sangue menstrual. Existe uma rede de analogias e de valores
tradicionais que não entra em choque com a racionalidade de Plínio;
como se esta também se enraizasse no mesmo terreno. Assim, às
vezes, ele se inclina a construir explicações analógicas de tipo
poético ou psicológico: “Os cadáveres dos homens flutuam de
costas e os das mulheres de bruços, como se a natureza quisesse
respeitar o pudor das mulheres mortas” (VII, 77).
Raramente
Plínio registra fatos que sejam testemunhos de sua própria
experiência direta: “de noite, durante os turnos das sentinelas em
frente às trincheiras, vi luzes brilhando em forma de estrela sobre
as lanças dos soldados” (II, 101); “durante o principado de
Cláudio, vimos um centauro que ele trouxe do Egito, conservado no
mel” (VII, 35); “eu mesmo vi na África um cidadão de Tisdro,
transformado de mulher em homem no dia do casamento” (VII, 36).
Mas
para um pesquisador como ele, protomártir da ciência experimental,
que devia morrer asfixiado pelas exalações do Vesúvio em erupção,
as observações diretas ocupam um espaço mínimo em sua obra e não
contam nem mais nem menos do que as informações lidas nos livros,
tendo maior autoridade quanto mais antigas forem. No máximo, se
resguarda, declarando: “De qualquer modo, quanto à maioria desses
fatos, não comprometeria minha palavra, prefiro dirigir-me às
fontes, às quais remeto em todos os casos dúbios, sem me cansar de
acompanhar os gregos, que são os mais exatos na observação e
igualmente os mais antigos” (VII, 8).
Depois
desse preâmbulo, Plínio se sente autorizado a lançar-se em sua
famosa resenha das características “prodigiosas e incríveis” de
certos povos do além-mar, que terá tanto sucesso na Idade Média e
também mais tarde, e transformará a geografia num circo de
fenômenos vivos. (Os ecos serão prolongados também nos relatos das
viagens verdadeiras, como as de Marco Polo.) Que os territórios
desconhecidos na fronteira da Terra alojem seres na fronteira do
humano não deve causar espanto: os arimaspos com um olho só no meio
da testa, que disputam as minas de ouro com os grifos; os habitantes
das florestas de Abarimon, que correm velozmente com os pés virados
ao contrário; os andróginos de Nasamona, que alternam os sexos
quando se acasalam; os tibios, que num olho têm duas pupilas e no
outro, a figura de um cavalo. Mas o grande Barnum apresenta seus
números mais espetaculares na Índia, onde pode ser encontrada uma
população de caçadores com cabeça de cachorro; e uma outra de
saltadores com uma perna só, que, para descansar na sombra, se
deitam erguendo o único pé como um chapéu de praia; e outra ainda
de nômades com pernas em forma de serpente; e os astomos sem boca,
que vivem cheirando perfumes. No meio de tudo isso, informações que
agora sabemos serem verídicas, como a descrição dos faquires
indianos (chamados de filósofos gimnosofistas), ou que continuam a
alimentar as crônicas misteriosas que lemos em nossos jornais (onde
se fala de pés imensos, poderia tratar-se do yeti do Himalaia), ou
lendas cuja tradição prolongar-se-á pelos séculos afora, como a
dos poderes taumatúrgicos dos reis (o rei Pirro, que curava as
doenças do baço com o toque do dedão).
De
tudo isso emerge uma ideia dramática da natureza humana, como algo
precário, inseguro: a forma e o destino do homem acham-se suspensos
por um fio. Muitas páginas são dedicadas à imprevisibilidade do
parto, com os casos excepcionais, as dificuldades e os perigos.
Também esta é uma zona de fronteira: quem existe poderia não
existir ou ser diferente, e tudo é decidido aí mesmo.
Nas
mulheres grávidas, qualquer coisa, por exemplo, o modo de caminhar,
influi no parto: se ingerem alimentos muito salgados, põem no mundo
uma criança sem unhas; se não sabem prender a respiração, têm
mais dificuldades para dar à luz; até um bocejo, durante o parto,
pode ser letal; bem como um espirro durante o coito pode provocar o
aborto. Compaixão e vergonha dominam quem pensa no quanto é
precária a origem do mais soberbo dos seres vivos: frequentemente,
para abortar basta o cheiro de uma lâmpada que se apagou. E dizer
que de um início tão frágil pode nascer um tirano ou um carrasco!
Você que confia em sua força física, que aperta nos braços os
dons da fortuna e se considera não um pupilo mas um filho dela, você
que possui ânimo dominador, você a quem apenas um êxito faz inchar
o peito e já se acredita deus, imagine que tão pouco poderia
destruí-lo. [VII, 42-4]
Que
Plínio tenha tido sucesso na Idade Média cristã se compreende:
“para pesar a vida numa balança justa, convém lembrar sempre a
fragilidade humana”.
O
gênero humano é um território dos seres vivos que deve ser
definido pela circunscrição das áreas fronteiriças: por isso,
Plínio anota os limites extremos alcançados pelo homem em todos os
campos e o Livro VII se torna algo não muito diferente daquilo que é
hoje o Guinness book of records. Sobretudo primazias quantitativas:
de força no levantamento de pesos, de velocidade na corrida, de
acuidade auditiva bem como de memória, e também de extensão de
territórios conquistados; e inclusive primados puramente morais, de
virtudes, de generosidade, de bondade. Não faltam os recordes mais
curiosos: Antônia, mulher de Druso, que jamais cuspia, o poeta
Pompônio que nunca arrotava (VII, 80); ou então o preço mais alto
pago por um escravo (o gramático Dafni custou 700 mil sestércios,
VII, 128).
Só
de um aspecto da vida humana Plínio não se sente em condições de
indicar primazias ou tentar mensurações e confrontos: a felicidade.
Quem é ou não feliz está fora de julgamento, dado que depende de
critérios subjetivos e opinativos. (“Felicitas cui praecipua
fuerit homini, non est humani iudicii, cum prosperitatem ipsam alius
alio modo et suopte ingenio quisque determinet”, VII, 130.) Caso se
pretenda olhar de frente a verdade sem ilusões, nenhum homem pode
ser considerado feliz: e aqui a casuística antropológica de Plínio
alinha exemplos de destinos ilustres (extraídos sobretudo da
história romana), para demonstrar como os homens mais favorecidos
pela sorte foram obrigados a suportar a infelicidade e a desventura.
Na
história natural do homem é impossível fazer entrar aquela
variável que é o destino: este é o sentido das páginas que Plínio
dedica às vicissitudes da fortuna, à imprevisibilidade da duração
de cada vida, à inutilidade da astrologia, às doenças, à morte. A
separação entre as duas formas de saber que a astrologia mantinha
unidas — a objetividade dos fenômenos calculáveis e previsíveis,
e o sentimento da existência individual com futuro incerto —, esta
separação que serve de pressuposto à ciência moderna, podemos
dizer que já se apresenta nessas páginas mas como uma questão
ainda não decidida definitivamente, em favor da qual ainda é
necessário reunir uma documentação exaustiva. Ao propor tais
exemplos, Plínio parece um tanto atrapalhado: todo fato acontecido,
toda biografia, toda anedota podem servir para provar que a vida, se
considerada do ponto de vista de quem a vive, não suporta
quantificações nem qualificações, não permite ser mensurada ou
comparada a outras vidas. Seu valor é intrínseco; tanto mais que as
esperanças e os medos de um além são ilusórios: Plínio partilha
a opinião de que após a morte se inicie uma não existência
equivalente e simétrica àquela que precede o nascimento.
É
por isso que a atenção de Plínio se projeta sobre as coisas do
mundo, corpos celestes e territórios do globo, animais, plantas e
pedras. A alma, à qual toda sobrevivência é negada, se se dobra
sobre si mesma, só pode fruir a existência no presente. “Etenim
si dulce vivere est, cui potest esse vixisse? At quanto facilius
certiusque sibi quemque credere, specimen securitas antegenitali
sumere experimento!” (VII, 190). “Modelar a própria
tranquilidade sobre a experiência anterior ao nascimento”: ou
seja, projetar-se na própria essência, única realidade segura
antes de virmos ao mundo e depois da qual estaremos mortos. Eis então
a felicidade de reconhecer a infinita variedade do outro em nós
próprios que a Naturalis historia projeta diante de nossos olhos.
Se
o homem é definido por seus limites, não poderia sê-lo também
pelas magnitudes em que pode se superar? Plínio se sente na
obrigação de incluir no Livro VII a glorificação das virtudes do
homem, a celebração de seus triunfos: dirige-se à história romana
como ao protocolo de todas as virtudes e é tentado a encontrar uma
conclusão pomposa dando muito espaço à literatura de louvação
imperial que lhe permitiria assinalar a culminância da perfeição
humana na figura de César Augusto. Mas eu diria que não são estas
as tônicas que caracterizam seu tratado: é a atitude titubeante,
limitativa e amarga aquilo que mais se ajusta ao seu temperamento.
Poderíamos
reconhecer aqui interrogações que acompanharam a constituição da
antropologia como ciência. Uma antropologia precisa evitar uma
perspectiva “humanista” para alcançar a objetividade de uma
ciência da natureza? Os homens do Livro VII contam quanto mais forem
“outros”, diferentes de nós, talvez não mais ou ainda não
homens? Mas será possível que o homem escape da própria
subjetividade a ponto de considerar a si mesmo como objeto de
ciência? A moral que Plínio reforça convida à cautela e à
reserva: nenhuma ciência pode iluminar-nos sobre a felicitas, sobre
a fortuna, sobre a economia do bem e do mal, sobre os valores da
existência; todo indivíduo morre e carrega com ele o seu segredo.
Com
essa nota desconsolada Plínio poderia concluir seu tratado, mas
prefere acrescentar uma lista de invenções e descobertas, lendárias
e históricas. Antecipando os antropólogos modernos que afirmam uma
continuidade entre a evolução biológica e a tecnológica, dos
utensílios paleolíticos à eletrônica, Plínio admite
implicitamente que as contribuições do homem à natureza passam
também elas a fazer parte da natureza humana. Daí até estabelecer
que a verdadeira natureza do homem é a cultura só existe um passo.
Mas Plínio, que não conhece as generalizações, procura o
específico humano em invenções e costumes que possam ser
considerados universais. São três, segundo Plínio (ou conforme
suas fontes), os fatos culturais sobre os quais se estabeleceu um
acordo tácito entre os povos (“gentium consensus tacitus”, VII,
210): a adoção do alfabeto (grego e latino); a raspagem do rosto
masculino pelo barbeiro; e o registro das horas do dia no relógio
solar.
A
tríade não poderia ser mais bizarra, pela aproximação
incongruente dos três termos: alfabeto, barbeiro, relógio, nem mais
discutível. De fato, não é verdade que todos os povos tenham
sistemas de escritura afins, nem é verdade que todos cortem a barba,
e, quanto às horas do dia, o próprio Plínio se ocupa em traçar
uma breve história dos vários sistemas de subdivisão do tempo. Mas
aqui não queremos sublinhar a perspectiva “eurocêntrica” que
não é privativa de Plínio nem de sua época, e sim a direção em
que ele se move: a intenção de fixar os elementos que se repetem
constantemente nas culturas mais diversas para definir aquilo que é
especificamente humano tornar-se-á um princípio de método da
etnologia moderna. E, fixado este ponto do “gentium consensus
tacitus”, Plínio pode encerrar seu tratado do gênero humano e
passar “ad reliqua animalia”, aos demais seres animados.
O
Livro VIII, que passa em revista os animais terrestres, começa pelo
elefante, ao qual é dedicado o capítulo mais longo. Por que tal
prioridade para o elefante? Porque é o maior dos animais, certamente
(e o tratado de Plínio procede segundo uma ordem de importância que
muitas vezes coincide com a ordem de grandeza física); mas também e
sobretudo porque, espiritualmente, é esse o animal “mais próximo
do homem”! “Maximum est elephas proximumque humanis sensibus”,
assim começa o Livro VIII. De fato, o elefante — logo depois é
explicado — reconhece a linguagem da pátria, obedece aos
mandamentos, conhece a paixão amorosa e a ambição da glória,
pratica virtudes “raras inclusive entre os homens” como a
probidade, a prudência, a equidade, e tributa uma veneração
religiosa às estrelas, ao Sol e à Lua. Plínio não gasta nem uma
palavra (exceto aquele superlativo maximum) para descrever
esse animal (aliás representado com fidelidade nos mosaicos romanos
da época), mas transcreve apenas as curiosidades lendárias que
encontrou nos livros: os ritos e os costumes da sociedade elefantina
são apresentados como os de uma população de cultura diferente da
nossa mas digna de respeito e compreensão.
Na
Naturalis historia, o homem, desgarrado em meio ao mundo
multiforme, prisioneiro da própria imperfeição, tem por um lado o
consolo de saber que também Deus é limitado em seus poderes
(“Inperfectae vero in homine naturae praecipua solacia, ne deum
quidem posse omnia”, II, 27) e, por outro, tem como seu próximo
imediato o elefante, que pode lhe servir de modelo no plano
espiritual. Contraído entre essas duas grandezas imponentes e
benignas, o homem certamente parece diminuído, mas não esmagado.
Dos
elefantes, a resenha dos animais terrestres passa — como numa
visita infantil ao zoológico — para os leões, as panteras, os
tigres, os camelos, as girafas, os rinocerontes, os crocodilos.
Seguindo uma ordem decrescente de dimensões, passa-se para as
hienas, os camaleões, os porcos-espinhos, os animais que se entocam,
e também para as lesmas e lagartixas; os animais domésticos são
reunidos no final do livro.
A
fonte principal é a Historia animalium de Aristóteles, mas
Plínio recupera de autores mais crédulos ou mais fantasiosos as
lendas que o estagirita descartava ou transcrevia somente para
refutar. Isso ocorre tanto para as informações sobre os animais bem
conhecidos quanto para a menção e descrição de animais
fantásticos, cuja listagem se mistura à dos primeiros: assim,
falando dos elefantes, uma digressão nos informa sobre os dragões,
seus inimigos naturais; e, a propósito dos lobos, Plínio registra
(embora recriminando a credulidade dos gregos) as lendas dos
lobisomens. É dessa zoologia que fazem parte a
cobra-de-duas-cabeças, o basilisco, o catóblepa, as crocotas, as
leucocrotas, os leontofontes, as mantícoras, que dessas páginas
passarão a povoar os bestiários medievais.
A
história natural do homem se prolonga na dos animais ao longo de
todo o Livro VIII, e isso não só porque as noções registradas
concernem em grande parte à criação dos animais domésticos e à
caça dos selvagens, bem como à utilidade prática que o homem obtém
de uns e outros, mas porque aquilo em que Plínio nos guia é também
uma viagem pela fantasia humana. O animal, seja verdadeiro ou falso,
tem um lugar privilegiado na dimensão do imaginário: assim que é
nomeado se investe de um poder fantasmagórico; torna-se alegoria,
símbolo, emblema.
Por
isso, recomendo ao leitor errante deter-se não só nos livros mais
“filosóficos”, II e VII, mas também no VIII, como o mais
representativo de uma ideia da natureza que se encontra expressa
difusamente ao longo de todos os 37 livros da obra: a natureza como
aquilo que é externo ao homem mas que não se distingue daquilo que
é mais intrínseco à sua mente, o alfabeto dos sonhos, a chave que
decifra a imaginação, sem a qual não se produz razão nem
pensamento.
Italo Calvino, em Por que ler os clássicos
Nenhum comentário:
Postar um comentário