terça-feira, 11 de junho de 2024

O céu, o homem, o elefante


Para o prazer da leitura, na História natural de Plínio, o Velho, aconselharia concentrar-se sobretudo em três livros: os dois que contêm os elementos de sua filosofia, isto é, o II (sobre a cosmografia) e o VII (sobre o homem), e, como exemplo de suas andanças entre erudição e fantasia, o VIII (sobre animais terrestres). Naturalmente podem ser descobertas páginas extraordinárias por todos os lados: nos livros de geografia (III-VI), de zoologia aquática, entomologia e anatomia comparada (IX-XI), de botânica, agronomia e farmacologia (XII-XX-XII), ou sobre os metais, as pedras preciosas e as belas-artes (XXXIII-XXXVII).
O uso que sempre se fez de Plínio, penso eu, foi o de consulta, tanto para saber o que os antigos conheciam ou acreditavam conhecer sobre determinado argumento quanto para compilar curiosidades e disparates. (Sob este último aspecto, não se pode negligenciar o Livro I, ou seja, o sumário da obra, cujas sugestões vêm de aproximações imprevistas: “Peixes que têm uma pedrinha na cabeça; peixes que se escondem no inverno; peixes que sentem a influência dos astros; preços extraordinários pagos por certos peixes”, ou então: “A propósito da rosa: doze variedades, 32 remédios; três variedades de lírios: 21 remédios; Planta que nasce de uma lágrima; três variedades de narcisos; dezesseis remédios; Planta cuja semente é pintada para que nasçam flores coloridas; O açafrão: vinte remédios; Onde dá as melhores flores; Que flores eram conhecidas no tempo da Guerra de Troia; Roupas que rivalizam com as flores”, ou ainda: “Natureza dos metais; Do ouro; Da quantidade de ouro possuída pelos antigos; Da ordem equestre e do direito de usar anéis de ouro; Quantas vezes a ordem equestre mudou de nome?”.) Mas Plínio é também um autor que merece uma leitura ampla, no movimento calmo de sua prosa, animada pela admiração por tudo aquilo que existe e pelo respeito à infinita diversidade dos fenômenos.
Poderíamos distinguir um Plínio poeta e filósofo, com um sentimento seu do universo, um pathos próprio do conhecimento e do mistério, e um Plínio neurótico colecionador de dados, compilador obsessivo, que parece preocupado somente em não desperdiçar nenhuma anotação de seu fichário mastodôntico. (Na utilização das fontes escritas era onívoro e eclético, mas não acrítico: existia o dado que considerava bom, outro que registrava enquanto inventário e outros que refutava como evidente embuste: só que o critério de suas avaliações parece bastante oscilante e imprevisível.) Porém, uma vez admitida a existência destas duas faces, é preciso reconhecer de imediato que Plínio é sempre uno, assim como uno é o mundo que ele quer descrever na variedade de suas formas. Para atingir seu objetivo, não receia dar fundamento ao número interminável das formas existentes, multiplicado pelo número interminável de informações existentes sobre todas estas formas, porque formas e informações têm para ele o mesmo direito de fazer parte da história natural e de ser interrogadas por quem busca nelas aquele signo de uma razão superior que está convencido de que elas devam encerrar.
O mundo é o céu eterno e não criado, cuja abóbada esférica e giratória cobre todas as coisas terrenas (II, 2), mas o mundo dificilmente pode distinguir-se de Deus, que, para Plínio e para a cultura estoica a que ele pertence, é um Deus único, não identificável com algumas de suas porções ou aspectos, nem com a multidão de personagens do Olimpo (mas talvez sim com o Sol, alma ou mente ou espírito do céu, II, 13). Porém, o céu é feito ao mesmo tempo de estrelas eternas como ele (as estrelas tecem o céu e simultaneamente acham-se inseridas no tecido celeste: “aeterna caelestibus est natura intexentibus mundum intextuque concretis”, II, 30), mas é também o ar (acima e abaixo da Lua) que parece vazio e difunde aqui embaixo o espírito vital e produz nuvens, granizo, trovões, raios, tempestades (II, 102).
Quando falamos de Plínio, não sabemos nunca até que ponto podemos atribuir a ele as ideias que exprime; de fato, ele faz questão de colocar o menos possível de seu, limitando-se ao que transmitem as fontes; e isso segundo uma ideia impessoal do saber, que exclui a originalidade individual. Para tentar compreender qual é realmente o seu sentido da natureza, que lugar ocupam nele a arcana majestade dos princípios e a materialidade dos elementos, devemos ater-nos àquilo que é certamente seu, isto é, a substância expressiva da prosa. Observem-se, por exemplo, as páginas sobre a Lua, onde o acento de comovida gratidão a este “astro último, o mais familiar para todos os que vivem sobre a Terra, remédio para as trevas” (“novissimum sidus, terris familiarissimum et in tenebrarum remedium…”, II, 41), e por tudo aquilo que ele nos ensina com o movimento de suas fases e eclipses se une à funcionalidade ágil das frases para reproduzir esse mecanismo com nitidez cristalina. É nas páginas astronômicas do Livro II que Plínio demonstra poder ser algo mais que o compilador de gosto imaginativo que em geral se acredita, revelando-se um escritor que possui aquilo que será a qualidade principal da grande prosa científica: transcrever com nítida evidência o raciocínio mais complexo, extraindo dele um sentido de harmonia e beleza.
E isso sem se inclinar jamais para a especulação abstrata. Plínio se atém sempre aos fatos (àqueles que ele considera fatos ou que alguém julgou como tais): não aceita a infinidade dos mundos porque a natureza já é bastante difícil de ser conhecida e a infinidade não simplificaria o problema (II, 4); não acredita no som das esferas celestes, nem como fragor além do audível nem como indizível harmonia, pois “para nós, que estamos dentro dele, o mundo desliza noite e dia em silêncio” (II, 6).
Depois de ter despido Deus das características antropomórficas que a mitologia atribui aos imortais do Olimpo, por força da lógica Plínio tem de reaproximar Deus dos homens por causa dos limites impostos pela necessidade aos seus poderes (ao contrário, num caso Deus é menos livre que os homens porque não poderia matar-se nem que pretendesse): Deus não pode ressuscitar os defuntos nem fazer de modo que quem viveu não tenha vivido; não tem nenhum poder sobre o passado, sobre a irreversibilidade do tempo (II, 27). Como o Deus de Kant, não pode entrar em conflito com a autonomia da razão (não pode evitar que dez mais dez somem vinte), mas defini-lo nestes termos nos afastaria do imanentismo pânico de sua identificação com a força da natureza (“per quae declaratur haut dubie naturae potentia idque esse quod deum vocemus”, II, 27).
Os tons líricos ou lírico-filosóficos que dominam os primeiros capítulos do Livro II correspondem a uma visão de harmonia universal que não tarda a romper-se; parte considerável do livro é dedicada aos prodígios celestes. A ciência de Plínio oscila entre a intenção de reconhecer uma ordem na natureza e o registro do extraordinário e do único: e o segundo aspecto acaba sempre vencendo. A natureza é eterna, sagrada e harmoniosa, mas deixa uma larga margem ao aparecimento de fenômenos prodigiosos inexplicáveis. Que conclusão geral podemos extrair disso? Que se trata de uma ordem monstruosa, feita só de exceções à regra? Ou que se trata de regras tão complexas que escapam ao nosso entendimento? Em ambos os casos, para cada fato deve existir uma explicação, mesmo que ainda seja desconhecida para nós: “São coisas de explicação incerta e oculta na majestade da natureza” (II, 101), e pouco mais adiante: “Adeo causa non deest” (II, 115), não são as causas que faltam, uma causa pode sempre ser encontrada. O racionalismo de Plínio exalta a lógica das causas e dos efeitos, mas ao mesmo tempo a minimiza: quando também você encontra a explicação dos fatos, nem por isso os fatos deixam de ser maravilhosos.
A máxima que citei por último conclui um capítulo sobre a origem misteriosa dos ventos; dobras de montanhas, cavidades de vales que reproduzem os sopros de vento como sons de eco, uma gruta na Dalmácia onde basta lançar qualquer coisa, mesmo leve, para desencadear uma tempestade marinha, uma rocha na Cirenaica onde basta tocar com uma das mãos para provocar um turbilhão de areia. Desses catálogos de fatos estranhos, não ligados entre si, Plínio nos oferece muitíssimos: aqueles sobre os efeitos do raio sobre o homem, com seus estragos frios (dentre as plantas o raio safa apenas o louro e dentre as aves, a águia, II, 146), aqueles sobre as chuvas extraordinárias (de leite, de sangue, de carne, de ferro ou esponjas de ferro, de lã, de tijolos cozidos, II, 147).
Contudo, Plínio limpa o terreno sobre tantas histórias, como os presságios dos cometas (por exemplo, ele refuta a crença de que um cometa que surja entre as partes pudendas de uma constelação — o que os antigos não viam no céu! — anuncie uma época de relaxamento dos costumes: “obscenis autem moribus in verendis partibus signorum”, II, 93), mas todo prodígio se lhe apresenta como um problema da natureza, enquanto é a outra face da norma. Plínio se defende das superstições, mas nem sempre sabe reconhecê-las, e isso é bem mais verdadeiro no Livro VII, onde fala da natureza humana: mesmo sobre fatos facilmente observáveis transcreve crenças das mais estapafúrdias. Típico é o capítulo sobre as menstruações (VII, 63-6), mas é preciso observar que as informações de Plínio situam-se no campo dos mais antigos tabus religiosos concernentes ao sangue menstrual. Existe uma rede de analogias e de valores tradicionais que não entra em choque com a racionalidade de Plínio; como se esta também se enraizasse no mesmo terreno. Assim, às vezes, ele se inclina a construir explicações analógicas de tipo poético ou psicológico: “Os cadáveres dos homens flutuam de costas e os das mulheres de bruços, como se a natureza quisesse respeitar o pudor das mulheres mortas” (VII, 77).
Raramente Plínio registra fatos que sejam testemunhos de sua própria experiência direta: “de noite, durante os turnos das sentinelas em frente às trincheiras, vi luzes brilhando em forma de estrela sobre as lanças dos soldados” (II, 101); “durante o principado de Cláudio, vimos um centauro que ele trouxe do Egito, conservado no mel” (VII, 35); “eu mesmo vi na África um cidadão de Tisdro, transformado de mulher em homem no dia do casamento” (VII, 36).
Mas para um pesquisador como ele, protomártir da ciência experimental, que devia morrer asfixiado pelas exalações do Vesúvio em erupção, as observações diretas ocupam um espaço mínimo em sua obra e não contam nem mais nem menos do que as informações lidas nos livros, tendo maior autoridade quanto mais antigas forem. No máximo, se resguarda, declarando: “De qualquer modo, quanto à maioria desses fatos, não comprometeria minha palavra, prefiro dirigir-me às fontes, às quais remeto em todos os casos dúbios, sem me cansar de acompanhar os gregos, que são os mais exatos na observação e igualmente os mais antigos” (VII, 8).
Depois desse preâmbulo, Plínio se sente autorizado a lançar-se em sua famosa resenha das características “prodigiosas e incríveis” de certos povos do além-mar, que terá tanto sucesso na Idade Média e também mais tarde, e transformará a geografia num circo de fenômenos vivos. (Os ecos serão prolongados também nos relatos das viagens verdadeiras, como as de Marco Polo.) Que os territórios desconhecidos na fronteira da Terra alojem seres na fronteira do humano não deve causar espanto: os arimaspos com um olho só no meio da testa, que disputam as minas de ouro com os grifos; os habitantes das florestas de Abarimon, que correm velozmente com os pés virados ao contrário; os andróginos de Nasamona, que alternam os sexos quando se acasalam; os tibios, que num olho têm duas pupilas e no outro, a figura de um cavalo. Mas o grande Barnum apresenta seus números mais espetaculares na Índia, onde pode ser encontrada uma população de caçadores com cabeça de cachorro; e uma outra de saltadores com uma perna só, que, para descansar na sombra, se deitam erguendo o único pé como um chapéu de praia; e outra ainda de nômades com pernas em forma de serpente; e os astomos sem boca, que vivem cheirando perfumes. No meio de tudo isso, informações que agora sabemos serem verídicas, como a descrição dos faquires indianos (chamados de filósofos gimnosofistas), ou que continuam a alimentar as crônicas misteriosas que lemos em nossos jornais (onde se fala de pés imensos, poderia tratar-se do yeti do Himalaia), ou lendas cuja tradição prolongar-se-á pelos séculos afora, como a dos poderes taumatúrgicos dos reis (o rei Pirro, que curava as doenças do baço com o toque do dedão).
De tudo isso emerge uma ideia dramática da natureza humana, como algo precário, inseguro: a forma e o destino do homem acham-se suspensos por um fio. Muitas páginas são dedicadas à imprevisibilidade do parto, com os casos excepcionais, as dificuldades e os perigos. Também esta é uma zona de fronteira: quem existe poderia não existir ou ser diferente, e tudo é decidido aí mesmo.

Nas mulheres grávidas, qualquer coisa, por exemplo, o modo de caminhar, influi no parto: se ingerem alimentos muito salgados, põem no mundo uma criança sem unhas; se não sabem prender a respiração, têm mais dificuldades para dar à luz; até um bocejo, durante o parto, pode ser letal; bem como um espirro durante o coito pode provocar o aborto. Compaixão e vergonha dominam quem pensa no quanto é precária a origem do mais soberbo dos seres vivos: frequentemente, para abortar basta o cheiro de uma lâmpada que se apagou. E dizer que de um início tão frágil pode nascer um tirano ou um carrasco! Você que confia em sua força física, que aperta nos braços os dons da fortuna e se considera não um pupilo mas um filho dela, você que possui ânimo dominador, você a quem apenas um êxito faz inchar o peito e já se acredita deus, imagine que tão pouco poderia destruí-lo. [VII, 42-4]

Que Plínio tenha tido sucesso na Idade Média cristã se compreende: “para pesar a vida numa balança justa, convém lembrar sempre a fragilidade humana”.
O gênero humano é um território dos seres vivos que deve ser definido pela circunscrição das áreas fronteiriças: por isso, Plínio anota os limites extremos alcançados pelo homem em todos os campos e o Livro VII se torna algo não muito diferente daquilo que é hoje o Guinness book of records. Sobretudo primazias quantitativas: de força no levantamento de pesos, de velocidade na corrida, de acuidade auditiva bem como de memória, e também de extensão de territórios conquistados; e inclusive primados puramente morais, de virtudes, de generosidade, de bondade. Não faltam os recordes mais curiosos: Antônia, mulher de Druso, que jamais cuspia, o poeta Pompônio que nunca arrotava (VII, 80); ou então o preço mais alto pago por um escravo (o gramático Dafni custou 700 mil sestércios, VII, 128).
Só de um aspecto da vida humana Plínio não se sente em condições de indicar primazias ou tentar mensurações e confrontos: a felicidade. Quem é ou não feliz está fora de julgamento, dado que depende de critérios subjetivos e opinativos. (“Felicitas cui praecipua fuerit homini, non est humani iudicii, cum prosperitatem ipsam alius alio modo et suopte ingenio quisque determinet”, VII, 130.) Caso se pretenda olhar de frente a verdade sem ilusões, nenhum homem pode ser considerado feliz: e aqui a casuística antropológica de Plínio alinha exemplos de destinos ilustres (extraídos sobretudo da história romana), para demonstrar como os homens mais favorecidos pela sorte foram obrigados a suportar a infelicidade e a desventura.
Na história natural do homem é impossível fazer entrar aquela variável que é o destino: este é o sentido das páginas que Plínio dedica às vicissitudes da fortuna, à imprevisibilidade da duração de cada vida, à inutilidade da astrologia, às doenças, à morte. A separação entre as duas formas de saber que a astrologia mantinha unidas — a objetividade dos fenômenos calculáveis e previsíveis, e o sentimento da existência individual com futuro incerto —, esta separação que serve de pressuposto à ciência moderna, podemos dizer que já se apresenta nessas páginas mas como uma questão ainda não decidida definitivamente, em favor da qual ainda é necessário reunir uma documentação exaustiva. Ao propor tais exemplos, Plínio parece um tanto atrapalhado: todo fato acontecido, toda biografia, toda anedota podem servir para provar que a vida, se considerada do ponto de vista de quem a vive, não suporta quantificações nem qualificações, não permite ser mensurada ou comparada a outras vidas. Seu valor é intrínseco; tanto mais que as esperanças e os medos de um além são ilusórios: Plínio partilha a opinião de que após a morte se inicie uma não existência equivalente e simétrica àquela que precede o nascimento.
É por isso que a atenção de Plínio se projeta sobre as coisas do mundo, corpos celestes e territórios do globo, animais, plantas e pedras. A alma, à qual toda sobrevivência é negada, se se dobra sobre si mesma, só pode fruir a existência no presente. “Etenim si dulce vivere est, cui potest esse vixisse? At quanto facilius certiusque sibi quemque credere, specimen securitas antegenitali sumere experimento!” (VII, 190). “Modelar a própria tranquilidade sobre a experiência anterior ao nascimento”: ou seja, projetar-se na própria essência, única realidade segura antes de virmos ao mundo e depois da qual estaremos mortos. Eis então a felicidade de reconhecer a infinita variedade do outro em nós próprios que a Naturalis historia projeta diante de nossos olhos.
Se o homem é definido por seus limites, não poderia sê-lo também pelas magnitudes em que pode se superar? Plínio se sente na obrigação de incluir no Livro VII a glorificação das virtudes do homem, a celebração de seus triunfos: dirige-se à história romana como ao protocolo de todas as virtudes e é tentado a encontrar uma conclusão pomposa dando muito espaço à literatura de louvação imperial que lhe permitiria assinalar a culminância da perfeição humana na figura de César Augusto. Mas eu diria que não são estas as tônicas que caracterizam seu tratado: é a atitude titubeante, limitativa e amarga aquilo que mais se ajusta ao seu temperamento.
Poderíamos reconhecer aqui interrogações que acompanharam a constituição da antropologia como ciência. Uma antropologia precisa evitar uma perspectiva “humanista” para alcançar a objetividade de uma ciência da natureza? Os homens do Livro VII contam quanto mais forem “outros”, diferentes de nós, talvez não mais ou ainda não homens? Mas será possível que o homem escape da própria subjetividade a ponto de considerar a si mesmo como objeto de ciência? A moral que Plínio reforça convida à cautela e à reserva: nenhuma ciência pode iluminar-nos sobre a felicitas, sobre a fortuna, sobre a economia do bem e do mal, sobre os valores da existência; todo indivíduo morre e carrega com ele o seu segredo.
Com essa nota desconsolada Plínio poderia concluir seu tratado, mas prefere acrescentar uma lista de invenções e descobertas, lendárias e históricas. Antecipando os antropólogos modernos que afirmam uma continuidade entre a evolução biológica e a tecnológica, dos utensílios paleolíticos à eletrônica, Plínio admite implicitamente que as contribuições do homem à natureza passam também elas a fazer parte da natureza humana. Daí até estabelecer que a verdadeira natureza do homem é a cultura só existe um passo. Mas Plínio, que não conhece as generalizações, procura o específico humano em invenções e costumes que possam ser considerados universais. São três, segundo Plínio (ou conforme suas fontes), os fatos culturais sobre os quais se estabeleceu um acordo tácito entre os povos (“gentium consensus tacitus”, VII, 210): a adoção do alfabeto (grego e latino); a raspagem do rosto masculino pelo barbeiro; e o registro das horas do dia no relógio solar.
A tríade não poderia ser mais bizarra, pela aproximação incongruente dos três termos: alfabeto, barbeiro, relógio, nem mais discutível. De fato, não é verdade que todos os povos tenham sistemas de escritura afins, nem é verdade que todos cortem a barba, e, quanto às horas do dia, o próprio Plínio se ocupa em traçar uma breve história dos vários sistemas de subdivisão do tempo. Mas aqui não queremos sublinhar a perspectiva “eurocêntrica” que não é privativa de Plínio nem de sua época, e sim a direção em que ele se move: a intenção de fixar os elementos que se repetem constantemente nas culturas mais diversas para definir aquilo que é especificamente humano tornar-se-á um princípio de método da etnologia moderna. E, fixado este ponto do “gentium consensus tacitus”, Plínio pode encerrar seu tratado do gênero humano e passar “ad reliqua animalia”, aos demais seres animados.
O Livro VIII, que passa em revista os animais terrestres, começa pelo elefante, ao qual é dedicado o capítulo mais longo. Por que tal prioridade para o elefante? Porque é o maior dos animais, certamente (e o tratado de Plínio procede segundo uma ordem de importância que muitas vezes coincide com a ordem de grandeza física); mas também e sobretudo porque, espiritualmente, é esse o animal “mais próximo do homem”! “Maximum est elephas proximumque humanis sensibus”, assim começa o Livro VIII. De fato, o elefante — logo depois é explicado — reconhece a linguagem da pátria, obedece aos mandamentos, conhece a paixão amorosa e a ambição da glória, pratica virtudes “raras inclusive entre os homens” como a probidade, a prudência, a equidade, e tributa uma veneração religiosa às estrelas, ao Sol e à Lua. Plínio não gasta nem uma palavra (exceto aquele superlativo maximum) para descrever esse animal (aliás representado com fidelidade nos mosaicos romanos da época), mas transcreve apenas as curiosidades lendárias que encontrou nos livros: os ritos e os costumes da sociedade elefantina são apresentados como os de uma população de cultura diferente da nossa mas digna de respeito e compreensão.
Na Naturalis historia, o homem, desgarrado em meio ao mundo multiforme, prisioneiro da própria imperfeição, tem por um lado o consolo de saber que também Deus é limitado em seus poderes (“Inperfectae vero in homine naturae praecipua solacia, ne deum quidem posse omnia”, II, 27) e, por outro, tem como seu próximo imediato o elefante, que pode lhe servir de modelo no plano espiritual. Contraído entre essas duas grandezas imponentes e benignas, o homem certamente parece diminuído, mas não esmagado.
Dos elefantes, a resenha dos animais terrestres passa — como numa visita infantil ao zoológico — para os leões, as panteras, os tigres, os camelos, as girafas, os rinocerontes, os crocodilos. Seguindo uma ordem decrescente de dimensões, passa-se para as hienas, os camaleões, os porcos-espinhos, os animais que se entocam, e também para as lesmas e lagartixas; os animais domésticos são reunidos no final do livro.
A fonte principal é a Historia animalium de Aristóteles, mas Plínio recupera de autores mais crédulos ou mais fantasiosos as lendas que o estagirita descartava ou transcrevia somente para refutar. Isso ocorre tanto para as informações sobre os animais bem conhecidos quanto para a menção e descrição de animais fantásticos, cuja listagem se mistura à dos primeiros: assim, falando dos elefantes, uma digressão nos informa sobre os dragões, seus inimigos naturais; e, a propósito dos lobos, Plínio registra (embora recriminando a credulidade dos gregos) as lendas dos lobisomens. É dessa zoologia que fazem parte a cobra-de-duas-cabeças, o basilisco, o catóblepa, as crocotas, as leucocrotas, os leontofontes, as mantícoras, que dessas páginas passarão a povoar os bestiários medievais.
A história natural do homem se prolonga na dos animais ao longo de todo o Livro VIII, e isso não só porque as noções registradas concernem em grande parte à criação dos animais domésticos e à caça dos selvagens, bem como à utilidade prática que o homem obtém de uns e outros, mas porque aquilo em que Plínio nos guia é também uma viagem pela fantasia humana. O animal, seja verdadeiro ou falso, tem um lugar privilegiado na dimensão do imaginário: assim que é nomeado se investe de um poder fantasmagórico; torna-se alegoria, símbolo, emblema.
Por isso, recomendo ao leitor errante deter-se não só nos livros mais “filosóficos”, II e VII, mas também no VIII, como o mais representativo de uma ideia da natureza que se encontra expressa difusamente ao longo de todos os 37 livros da obra: a natureza como aquilo que é externo ao homem mas que não se distingue daquilo que é mais intrínseco à sua mente, o alfabeto dos sonhos, a chave que decifra a imaginação, sem a qual não se produz razão nem pensamento.

Italo Calvino, em Por que ler os clássicos

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