Com
o olhar aumentado pelo meu Bausch & Lomb, acompanho, desde a
janela de 18º andar, um interminável namoro de pombos.
A
fêmea é branca, graciosa, leve, em inquietação permanente e
movimento contínuo. O macho é manchado de cinza sobre um fundo
claro, retrizes escuras e as rêmiges cendradas com matiz mais
intenso e decorativo.
Depois
do almoço fico assistindo àquele processo inacabável de
assistência amorosa. Todos os dias, horas e horas, vejo as várias
técnicas sedutoras que não me parecem alcançar solução prática
ou visível, digna de menção. Canso-me e vou tratar de outras
coisas. Acidentalmente, voltando ao apartamento e olhando a janela,
revejo o casal na perseguição obstinada e afetuosa que desanimaria
qualquer enamorado da espécie humana.
Creio
que esta conquista paciente e de repetição sem fim é mais uma
excitação que forma de fixação da fêmea no campo da simpatia.
Não há competidor nas cercanias, nem a requestada distância do
contato seu corpinho airoso e fugitivo, intermitentemente arredio aos
afagos do amorudo pombo. Deduzo que todo esse cortejo de evitações
e oferecimentos, em que se afaste demasiado do raio da insistência
do companheiro, manterá em estado de ebulição crescente seu desejo
sexual que necessitará deste longo estado de provocação e
incitamento para que os hormônios preparem a fase decisiva do ato
fecundante. E para a companheira esses preparativos darão
receptibilidade de alto rendimento.
É
preciso tenacidade para este namoro infindável.
A
fêmea fica no bordo do muro, paradinha, fazendo que nada vê. O
pombo voa do caixote-pombal e pousa junto à sua amada. Fica quieto
um momento. A fêmea inicia um passeio de passos miudinhos e é
seguida de perto. Um minuto depois a fêmea voa para o caixote-pombal
ou rebordo da janela próxima. O macho pensa uns instantes se deve ou
não insistir, mas sempre a continuidade é a regra. Voa também para
junto da amada, que repete a manobra anterior, terminada em voo e
acompanhamento fatal do apaixonado. E assim horas e horas... Aquele
plano de perseguição circular, no mesmo âmbito e com atitudes
repetidas, daria título lógico de convite à fuga num compasso ad
libitum.
A
fêmea tem ocasião de “dar o fora” mais de mil vezes no seu
enamorado, e este, de insistir na fidelidade seguidora, tudo no
espaço de algumas horas. Durante o dia seguinte a cena se repete,
monotoníssima para nós e encantadora para os participantes.
O
casal é de vida doméstica e recatada. Não voa buscando alimentos
fora do recinto familiar. Em cima do caixote-pombal enxergo a mancha
dos alimentos acumulados, esperando a fome da parelha. Não há
grandes voos e descidas rumorosas, catando invisíveis e presentes
cibos na areia ou calçadas urbanas. Enquadrado pelos arranha-céus o
casal comparta-se num ritmo de adaptação resignada ao ambiente do
seu destino ecológico. Ao crepúsculo, quando a tarde esfria,
vejo-os ensaiar um voo mais ousado e amplo, roçando os telhados
vizinhos e findando no muro, aeródromo das suas façanhas aladas.
Não
sei por que se afirma o dogma do amor ardente dos pombos e sua
impaciência sexual. Como todos seus arrulhos e voejos aperitivais
demonstram positivamente a necessidade de uma excitação prolongada
e prévia, tanto mais extensa quanto significativa da lentidão com
que o sexo desperta. Nem a proximidade da companheira consegue
diminuir o inevitável ciclo das andanças e voos, horas e horas,
indispensável à junção conubial. A companheira precisará fugir e
fugir, sem distanciar-se para uma área desanimadora e decepcionante,
como elemento não apenas de captação fixadora como de preparação
fisiológica do tipo masculino. O pombo, como certos playboys que
precisam de uma longa antecipação preparatória de canto, dança,
olhar e contato, música, álcool e movimento da gaiola dourada de um
Night Club, tem como fatalmente obrigatória a fase do cortejo
sedutor, da provocação contínua, da perseguição próxima, horas
e horas, avivando as brasas da ardência fecundadora.
Parece
que as afirmativas clássicas dos amores fulminantes, independentes
de preâmbulos de conquista, merecem revisão tranquila. Os modelos
deste ímpeto sexual, imediato e bruto, nunca dispensaram a corte
teimosa ao elemento feminino. Bodes, macacos, cães seguem
cativamente as namoradas com notórias mostras de predileção e
esperança de aceitação. Só o homem conhece o pecado da violação
bárbara, da posse cruel e sem o consentimento da fêmea subjugada.
Mesmo os gigantescos gorilas são tão amorosos que esperam o gesto
de consentimento da possante companheira inda que seja de companhia
habitual e certa.
“Lúbrico
como o macaco” diz o ditado feito parcialmente. São dignas de
vista as gatimonhas, trejeitos e reviravoltas do macaco ao derredor
da predileta cobiçada. Só se vendo... O cortejo obstinado de cães
atrás da cadela, as batalhas pela posse, a defesa do “objeto
amado”, o estágio até que “ela” faça “o gesto que
consente”, rua acima e rua abaixo, sob pedradas dos moleques de
todas as cores, chuva, sol, desdéns e dentadas, é merecedor de
registro encomiástico. A série apaixonada dos bufos do bode
percorre escala dodecaédrica, variando de acentos e timbres, na
persistência do apelo sexual. Não apenas os bufos terão
intencionalidade melódica, mas os saltos mimosos e repetidos, as
atitudes erguidas com as patas dianteiras juntas, em súplica ou
ostentação estética, merecem destaque e relevo como significações
requerentes de feliz amor. Tantas amostras de protocolo amoroso têm
sido negadas e o bufador bailarino reduzido a ser expressão típica
de estuprador bestial.
Luís da Câmara Cascudo, em Canto de muro
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