quarta-feira, 12 de junho de 2024

Namoro de pombos


Com o olhar aumentado pelo meu Bausch & Lomb, acompanho, desde a janela de 18º andar, um interminável namoro de pombos.
A fêmea é branca, graciosa, leve, em inquietação permanente e movimento contínuo. O macho é manchado de cinza sobre um fundo claro, retrizes escuras e as rêmiges cendradas com matiz mais intenso e decorativo.
Depois do almoço fico assistindo àquele processo inacabável de assistência amorosa. Todos os dias, horas e horas, vejo as várias técnicas sedutoras que não me parecem alcançar solução prática ou visível, digna de menção. Canso-me e vou tratar de outras coisas. Acidentalmente, voltando ao apartamento e olhando a janela, revejo o casal na perseguição obstinada e afetuosa que desanimaria qualquer enamorado da espécie humana.
Creio que esta conquista paciente e de repetição sem fim é mais uma excitação que forma de fixação da fêmea no campo da simpatia. Não há competidor nas cercanias, nem a requestada distância do contato seu corpinho airoso e fugitivo, intermitentemente arredio aos afagos do amorudo pombo. Deduzo que todo esse cortejo de evitações e oferecimentos, em que se afaste demasiado do raio da insistência do companheiro, manterá em estado de ebulição crescente seu desejo sexual que necessitará deste longo estado de provocação e incitamento para que os hormônios preparem a fase decisiva do ato fecundante. E para a companheira esses preparativos darão receptibilidade de alto rendimento.
É preciso tenacidade para este namoro infindável.
A fêmea fica no bordo do muro, paradinha, fazendo que nada vê. O pombo voa do caixote-pombal e pousa junto à sua amada. Fica quieto um momento. A fêmea inicia um passeio de passos miudinhos e é seguida de perto. Um minuto depois a fêmea voa para o caixote-pombal ou rebordo da janela próxima. O macho pensa uns instantes se deve ou não insistir, mas sempre a continuidade é a regra. Voa também para junto da amada, que repete a manobra anterior, terminada em voo e acompanhamento fatal do apaixonado. E assim horas e horas... Aquele plano de perseguição circular, no mesmo âmbito e com atitudes repetidas, daria título lógico de convite à fuga num compasso ad libitum.
A fêmea tem ocasião de “dar o fora” mais de mil vezes no seu enamorado, e este, de insistir na fidelidade seguidora, tudo no espaço de algumas horas. Durante o dia seguinte a cena se repete, monotoníssima para nós e encantadora para os participantes.
O casal é de vida doméstica e recatada. Não voa buscando alimentos fora do recinto familiar. Em cima do caixote-pombal enxergo a mancha dos alimentos acumulados, esperando a fome da parelha. Não há grandes voos e descidas rumorosas, catando invisíveis e presentes cibos na areia ou calçadas urbanas. Enquadrado pelos arranha-céus o casal comparta-se num ritmo de adaptação resignada ao ambiente do seu destino ecológico. Ao crepúsculo, quando a tarde esfria, vejo-os ensaiar um voo mais ousado e amplo, roçando os telhados vizinhos e findando no muro, aeródromo das suas façanhas aladas.
Não sei por que se afirma o dogma do amor ardente dos pombos e sua impaciência sexual. Como todos seus arrulhos e voejos aperitivais demonstram positivamente a necessidade de uma excitação prolongada e prévia, tanto mais extensa quanto significativa da lentidão com que o sexo desperta. Nem a proximidade da companheira consegue diminuir o inevitável ciclo das andanças e voos, horas e horas, indispensável à junção conubial. A companheira precisará fugir e fugir, sem distanciar-se para uma área desanimadora e decepcionante, como elemento não apenas de captação fixadora como de preparação fisiológica do tipo masculino. O pombo, como certos playboys que precisam de uma longa antecipação preparatória de canto, dança, olhar e contato, música, álcool e movimento da gaiola dourada de um Night Club, tem como fatalmente obrigatória a fase do cortejo sedutor, da provocação contínua, da perseguição próxima, horas e horas, avivando as brasas da ardência fecundadora.
Parece que as afirmativas clássicas dos amores fulminantes, independentes de preâmbulos de conquista, merecem revisão tranquila. Os modelos deste ímpeto sexual, imediato e bruto, nunca dispensaram a corte teimosa ao elemento feminino. Bodes, macacos, cães seguem cativamente as namoradas com notórias mostras de predileção e esperança de aceitação. Só o homem conhece o pecado da violação bárbara, da posse cruel e sem o consentimento da fêmea subjugada. Mesmo os gigantescos gorilas são tão amorosos que esperam o gesto de consentimento da possante companheira inda que seja de companhia habitual e certa.
Lúbrico como o macaco” diz o ditado feito parcialmente. São dignas de vista as gatimonhas, trejeitos e reviravoltas do macaco ao derredor da predileta cobiçada. Só se vendo... O cortejo obstinado de cães atrás da cadela, as batalhas pela posse, a defesa do “objeto amado”, o estágio até que “ela” faça “o gesto que consente”, rua acima e rua abaixo, sob pedradas dos moleques de todas as cores, chuva, sol, desdéns e dentadas, é merecedor de registro encomiástico. A série apaixonada dos bufos do bode percorre escala dodecaédrica, variando de acentos e timbres, na persistência do apelo sexual. Não apenas os bufos terão intencionalidade melódica, mas os saltos mimosos e repetidos, as atitudes erguidas com as patas dianteiras juntas, em súplica ou ostentação estética, merecem destaque e relevo como significações requerentes de feliz amor. Tantas amostras de protocolo amoroso têm sido negadas e o bufador bailarino reduzido a ser expressão típica de estuprador bestial.

Luís da Câmara Cascudo, em Canto de muro

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