sábado, 29 de junho de 2024

Do passar além


Assim, lentamente passando por muitos povos e muitas cidades, Zaratustra retornava, fazendo rodeios, a sua montanha e sua caverna. E eis que inesperadamente chegou também ao portão da grande cidade: mas ali saltou-lhe ao encontro um louco que babava, com as mãos estendidas, e barrou-lhe o caminho. Esse era o mesmo louco que o povo chamava “o macaco de Zaratustra”: pois ele tirava alguma coisa do fraseado e da cadência de suas falas e também gostava de tomar empréstimos ao tesouro de sua sabedoria. E o louco falou assim a Zaratustra:
Ó Zaratustra, aqui é a grande cidade: aqui nada tens a procurar e tens tudo a perder.
Por que pretendes vadear esse lamaçal? Tem compaixão por teus pés! É melhor cuspires na porta da cidade e — dares meia-volta!
Aqui é o inferno para os pensamentos de eremitas: aqui os grandes pensamentos são refogados vivos e ficam pequenos depois de cozidos.
Aqui apodrecem os grandes sentimentos: apenas sentimentozinhos secos podem aqui matraquear!
Não sentes o cheiro dos matadouros e tabernas do espírito? Esta cidade não exala o miasma do espírito abatido?
Não vês as almas penduradas como trapos moles e sujos? — E ainda são feitos jornais desses trapos!
Não ouves como aqui o espírito se tornou jogo de palavras? Uma repugnante lavadura de palavras ele vomita! — E ainda são feitos jornais com essa lavadura de palavras.
Provocam uns aos outros, e não sabem a quê? Agitam uns aos outros, e não sabem por quê? Fazem retinir seu latão, fazem tilintar seu ouro.
São frios e procuram calor em aguardentes; são acalorados e buscam frescor em espíritos gelados; são todos enfermos e viciados em opiniões públicas.
Todos os vícios e apetites aqui estão em casa; mas há também virtuosos, há muita virtude empregável e empregada. —
Muita virtude empregável, com dedos de escrever e dura carne de sentar e esperar, abençoada com pequenas estrelas no peito e filhas estofadas e sem traseiro.
Também há muita devoção aqui, e muito capachismo crédulo, puxa-saquismo sédulo ante o deus dos exércitos.
Lá do alto’ gotejam, de fato, a estrela e a benigna saliva;110 para o alto se dirige a aspiração de todo peito sem estrela.
A lua tem sua corte, e a corte tem seus patetas: mas diante de tudo que vem da corte reza o povo de pedintes e toda aproveitável virtude de pedintes.
Eu sirvo, tu serves, nós servimos’ — é a oração que toda virtude aproveitável ergue até o príncipe: para que a merecida estrela finalmente se aplique ao estreito peito!
Mas a lua continua a girar em torno de tudo que é terreno: assim também o príncipe gira em torno do que é mais terreno de tudo —: isso, porém, é o ouro dos merceeiros.
O deus dos exércitos não é o deus das barras de ouro; o príncipe propõe, mas o merceeiro — dispõe!
Por tudo o que é luminoso, bom e forte em ti, ó Zaratustra! Cospe sobre esta cidade de merceeiros e dá meia-volta!
Aqui, todo o sangue corre pútrido, morno e espumoso por todas as veias: cospe sobre a grande cidade, que é o grande esgoto onde toda a escória se junta e espumeja!
Cospe sobre a cidade das almas esmagadas e peitos estreitos, dos olhos afiados, dos dedos viscosos —
sobre a cidade dos importunos, dos desavergonhados, dos berradores e escrevinhadores, dos ambiciosos superexcitados: —
onde supura tudo que é quebradiço, desacreditado, lascivo, sombrio, cediço, ulceroso, conspirativo: —
cospe sobre a grande cidade e dá meia-volta!” — —
Mas nesse ponto Zaratustra interrompeu o louco que babava e tapou-lhe a boca com a mão.
Cala-te!”, gritou Zaratustra; “há muito que me enojam tuas palavras e teu jeito!
Por que viveste por tanto tempo no pântano, tornando-te tu mesmo rã e sapo?
Em tuas próprias veias não corre sangue pútrido e espumoso de pântano, de modo que assim aprendeste a coaxar e praguejar?
Por que não foste para o bosque? Ou araste a terra? O mar não está cheio de ilhas verdes?
Eu desprezo o teu desprezo; e, se me advertiste — por que não advertiste a ti mesmo?
Apenas do amor devem partir meu desprezo e meu pássaro admoestador: não do pântano!
Chamam-te meu macaco, ó louco que baba: mas eu te chamo meu porco grunhidor — com teus
O que foi, então, que te fez grunhir? Que ninguém te lisonjeasse o bastante: — por isso te puseste nessa imundície, para teres motivo para bastante grunhir, —
para teres motivo de muita vingança! Pois vingança, ó louco vaidoso, é todo o teu espumar, eu bem te adivinhei!
Mas tuas palavras de louco prejudicam a mim, mesmo quando estás certo! E, ainda que as palavras de Zaratustra fossem mil vezes certas: tu, com minhas palavras, sempre — farias errado!”
Assim falou Zaratustra; e ele olhou para a grande cidade, suspirou e longamente ficou em silêncio. Por fim, falou assim:

Também me enoja essa grande cidade, não apenas esse louco. Num e noutro não há o que melhorar, não há o que piorar.
Ai dessa grande cidade! — E eu gostaria de já enxergar a coluna de fogo em que ela arderá!
Pois tais colunas de fogo devem preceder o grande meio-dia. Mas esse tem seu tempo e seu destino. —
E este ensinamento te dou, ó louco, como despedida: onde não se pode mais amar, deve-se — passar ao largo! —

Assim falou Zaratustra, passando ao largo do louco e da grande cidade.

Friedrich Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra

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