Durante
cinco longos anos, ele permaneceu deitado no chão daquela garagem,
até que, de repente, aconteceu.
Algo
fez com que se levantasse:
O
piano.
Um
endereço errado.
A
luz comprida da tarde.
Lá
veio uma mulher que trazia consigo a música e dois épicos, e o que
mais ele poderia ter feito?
Em
se tratando de segundas chances, Michael Dunbar não poderia ter tido
mais sorte.
***
Mas
tudo bem, e o que aconteceu durante esses cinco anos?
Ele
assinou os papéis, com as mãos trêmulas.
Abandonou
a pintura de vez.
Ficou
tentado a voltar para Featherton, mas então se lembrou da voz no
escuro, e do rosto encostado em seu pescoço:
Talvez
você estivesse lá até hoje.
E
a humilhação.
Voltar
para casa sem a garota.
“Cadê
ela?”, perguntariam. “O que aconteceu?”
Não,
ele nunca mais poderia voltar a morar lá. A notícia se espalharia
de qualquer jeito, mas ele não queria estar lá para ouvir. Já era
ruim demais ter que ouvir os próprios pensamentos.
“Como
é?”
Surgiam
com certa frequência, no meio do jantar ou enquanto escovava os
dentes.
“Ela
simplesmente largou ele, foi?”
“Coitado.”
“Bem,
acho que todo mundo já esperava isso… Ela era selvagem, e ele era,
bom… Ele nunca foi muito sagaz, não é mesmo?”
Não,
era melhor continuar na cidade, naquela casa, que recendia a ela cada
dia menos. Lá sempre havia trabalho. A cidade estava crescendo.
Havia sempre uma ou duas cervejas para tomar, em casa, sozinho ou com
Bob, Spiro e Phil — só uns caras do trabalho, que tinham esposa e
filhos ou não tinham nada, como ele.
***
Só
voltava a Featherton de vez em quando para visitar a mãe. Ficava
feliz ao vê-la envolvida com a tradicional gama de aventuras de
cidade do interior. Banquinhas de bolo para caridade. Desfiles
patrióticos. Boliche na grama com o dr. Weinrauch aos domingos.
Aquilo é que era vida.
Quando
deu a notícia sobre Abbey, ela não disse muita coisa.
Pegou
a mão dele.
Muito
provavelmente estava pensando no próprio marido, que correra em
direção às chamas. Ninguém entendia por que algumas pessoas
entravam e nunca mais saíam. Será que elas tinham um cadinho menos
de vontade de voltar do que as outras? Pelo menos Michael Dunbar
nunca teria a menor sombra de dúvida sobre o que Abbey queria.
***
Ainda
havia as pinturas, para as quais ele não conseguia nem mais olhar.
Só
de olhar para a imagem dela, ele começava a imaginar.
Onde
ela estaria.
Com
quem estaria.
Tinha
que resistir à tentação de imaginá-la em movimento, com outro
homem. Um homem melhor. Bem desagradável.
Queria
ser menos frívolo e poder dizer que aquelas coisas não importavam,
mas seria mentira. Aquilo o atingia, mirando um ponto mais profundo,
no qual ele não queria chegar.
Certa
noite, uns três anos após o ocorrido, ele arrastou todas as
pinturas para um canto da garagem e cobriu tudo com lençóis: uma
vida por baixo dos panos. Mesmo depois de terminar, foi incapaz de
resistir: deu uma última olhada atrás da cortina e passou a mão
pela maior das pinturas, que a mostrava à beira da praia, com os
sapatos na mão.
— Anda,
vai — dizia ela. — Pega.
Mas
não restara mais nada a que ele pudesse se agarrar.
Largou
os lençóis outra vez.
***
Enquanto
o tempo não passava, ele foi engolido pela cidade.
Trabalhava,
dirigia.
Cortava
a grama; um bom rapaz, um bom inquilino.
E
como é que ele ia saber?
Como
é que ele ia saber que, em dois anos, o pai de uma jovem imigrante
morreria no banco de um parque europeu? Como é que ia saber que ela
sairia de casa em um arroubo de amor e desespero e compraria um
piano, e que o instrumento acabaria sendo entregue não na casa dela,
mas na dele? E que ela apareceria andando pelo meio da rua Pepper na
companhia de um trio de entregadores imprestáveis?
Sob
vários aspectos, ele ainda não tinha conseguido sair do chão
daquela garagem, tanto que às vezes é impossível não imaginar:
Ele
se agacha e enfim se levanta.
O
som do trânsito distante — tão parecido com o do oceano — ficou
para trás uns cinco anos, e eu sempre penso:
Anda,
agora.
Vai
logo ver a mulher e seu piano.
Se
não for lá agora, nenhum de nós vai existir — os irmãos, Penny,
pais e filhos —, e o que mais importa é que você tenha, construa,
e que aproveite enquanto puder.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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