quarta-feira, 5 de junho de 2024

Cinco anos e um piano, e subsequente mão sobre mão




Durante cinco longos anos, ele permaneceu deitado no chão daquela garagem, até que, de repente, aconteceu.
Algo fez com que se levantasse:
O piano.
Um endereço errado.
A luz comprida da tarde.
Lá veio uma mulher que trazia consigo a música e dois épicos, e o que mais ele poderia ter feito?
Em se tratando de segundas chances, Michael Dunbar não poderia ter tido mais sorte.

***

Mas tudo bem, e o que aconteceu durante esses cinco anos?
Ele assinou os papéis, com as mãos trêmulas.
Abandonou a pintura de vez.
Ficou tentado a voltar para Featherton, mas então se lembrou da voz no escuro, e do rosto encostado em seu pescoço:
Talvez você estivesse lá até hoje.
E a humilhação.
Voltar para casa sem a garota.
Cadê ela?”, perguntariam. “O que aconteceu?”
Não, ele nunca mais poderia voltar a morar lá. A notícia se espalharia de qualquer jeito, mas ele não queria estar lá para ouvir. Já era ruim demais ter que ouvir os próprios pensamentos.
Como é?”
Surgiam com certa frequência, no meio do jantar ou enquanto escovava os dentes.
Ela simplesmente largou ele, foi?”
Coitado.”
Bem, acho que todo mundo já esperava isso… Ela era selvagem, e ele era, bom… Ele nunca foi muito sagaz, não é mesmo?”
Não, era melhor continuar na cidade, naquela casa, que recendia a ela cada dia menos. Lá sempre havia trabalho. A cidade estava crescendo. Havia sempre uma ou duas cervejas para tomar, em casa, sozinho ou com Bob, Spiro e Phil — só uns caras do trabalho, que tinham esposa e filhos ou não tinham nada, como ele.

***

Só voltava a Featherton de vez em quando para visitar a mãe. Ficava feliz ao vê-la envolvida com a tradicional gama de aventuras de cidade do interior. Banquinhas de bolo para caridade. Desfiles patrióticos. Boliche na grama com o dr. Weinrauch aos domingos. Aquilo é que era vida.
Quando deu a notícia sobre Abbey, ela não disse muita coisa.
Pegou a mão dele.
Muito provavelmente estava pensando no próprio marido, que correra em direção às chamas. Ninguém entendia por que algumas pessoas entravam e nunca mais saíam. Será que elas tinham um cadinho menos de vontade de voltar do que as outras? Pelo menos Michael Dunbar nunca teria a menor sombra de dúvida sobre o que Abbey queria.

***

Ainda havia as pinturas, para as quais ele não conseguia nem mais olhar.
Só de olhar para a imagem dela, ele começava a imaginar.
Onde ela estaria.
Com quem estaria.
Tinha que resistir à tentação de imaginá-la em movimento, com outro homem. Um homem melhor. Bem desagradável.
Queria ser menos frívolo e poder dizer que aquelas coisas não importavam, mas seria mentira. Aquilo o atingia, mirando um ponto mais profundo, no qual ele não queria chegar.
Certa noite, uns três anos após o ocorrido, ele arrastou todas as pinturas para um canto da garagem e cobriu tudo com lençóis: uma vida por baixo dos panos. Mesmo depois de terminar, foi incapaz de resistir: deu uma última olhada atrás da cortina e passou a mão pela maior das pinturas, que a mostrava à beira da praia, com os sapatos na mão.
Anda, vai — dizia ela. — Pega.
Mas não restara mais nada a que ele pudesse se agarrar.
Largou os lençóis outra vez.

***

Enquanto o tempo não passava, ele foi engolido pela cidade.
Trabalhava, dirigia.
Cortava a grama; um bom rapaz, um bom inquilino.
E como é que ele ia saber?
Como é que ele ia saber que, em dois anos, o pai de uma jovem imigrante morreria no banco de um parque europeu? Como é que ia saber que ela sairia de casa em um arroubo de amor e desespero e compraria um piano, e que o instrumento acabaria sendo entregue não na casa dela, mas na dele? E que ela apareceria andando pelo meio da rua Pepper na companhia de um trio de entregadores imprestáveis?
Sob vários aspectos, ele ainda não tinha conseguido sair do chão daquela garagem, tanto que às vezes é impossível não imaginar:
Ele se agacha e enfim se levanta.
O som do trânsito distante — tão parecido com o do oceano — ficou para trás uns cinco anos, e eu sempre penso:
Anda, agora.
Vai logo ver a mulher e seu piano.
Se não for lá agora, nenhum de nós vai existir — os irmãos, Penny, pais e filhos —, e o que mais importa é que você tenha, construa, e que aproveite enquanto puder.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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