Foi
confinada no cocho com as colegas de linhagem pura. Nem teria sentido
abandonar as finas fêmeas ao sabor da roça, apanhando Carrapato e
gonorréia. E Juvenal constatou que é mais dispendioso transportar
alimentos para os animais no pasto do que abrigá-los e engordá-los
em recinto fechado. Elas, as vacas, não chegaram a manifestar suas
aflições e anseios. Antes de lhes sondar as opiniões, as dúvidas
e palpitações, Juvenal impôs o motivo maior dos filhos futuros.
Assim, por amor de seus filhos, elas guardariam duas quarentenas para
os conceber. Gerados em tempo propício, nasceriam todos em clima de
fartura e favor. E vê-los feitos pagaria qualquer sacrifício.
Uniformes desfilariam, todos igualmente fofos, um delicioso pelotão.
1º
de abril. Até que enfim Abá, empatado numa rampa de tábuas que eu
nunca vi. O ardor do momento não me deu tempo de criticar a posição.
Invenção de Juvenal, diz que para aliviar o peso de Abá em cima de
mim. Juvenal é muito ponderado. Só desconhece o prazer que é
padecer aquelas arrobas no dorso. Não calcula quanto eu desejava ser
tão bem maltratada de novo, na roça sem programação, sem rampa,
sem vergonha. De novo. Me machuca, filho, me dói, seu desgraçado,
me xinga a sua rampeira. Como naquele tempo, anjo, que você me
enganava com aquelas vacas, eu sei. Acabava voltando, o tarado, com
as unhas enormes da mão direita que você não aprende a cortar. Eu
lavava as cuecas dele, as porcas lembranças. Cochicho e muxoxo no
muzungo, muxinga no meu lombo e cafezinho na cama da sua mucama sim
feitor. Mas no átimo do clímax do bom mesmo, não se sabe se é
você ou eu quem está por cima ou baixo, neste cosmo descoordenado,
láctea nuvem, de novo, faz, me judia, coração. Vê, vem, abre a
porta do meu quarto e anda desta parede à outra, sendo que quando
atinge a outra já ainda está grudado nesta parede, me ocupando o
quarto inteiro quase a me expulsar de mim. Me estufa o quarto e geme,
ou fui eu quem soluçou, não importa quem chorou primeiro se nós
derretemos juntos. Acorda. Não, meu, seu. Devagar, cresce outra vez
dentro de mim e fica enganchado dum jeito que parece que a gente já
nasceu assim e que senão estou amputada e com frio e já nem sei,
assim sim, mim, sim, . . . , . . . , . . . , . . , . . , . , . , . ,
. , . , . , . , , , ,, ,, ,,, ,,,,, ; ; ; ; ; , , ; ; ; ; ! ; ! ; !
! ; ! ! ! ; ! ! ; ! ! ! ; ; ! ? ! ; ? ; ! ; . ; , ; , ; , ; ; , . . ,
. , , . , . , . , . , . . . , . . . , . . . , . . . , . . . , sim,
assim, assim sim, assim não, já nem sei o que estava falando,
estava tonta, estava querendo respirar, estava perdendo a pontuação,
meu bem. Fique mais um pouco, meu fôlego. Não me abandone assim de
repente. Me esquente. Me beije. Me. Deixo Abá transversal, acocorado
numa rampa ridícula a que o cretino se presta.
1.º
de maio. Melengestrol. Impossível aceitar o sabor do melengestrol.
Vontade de comer alfenas e alfazemas, esses arbustos proibidos de tão
cheirosos. Por amor dum talvez filho, um nem ovo, engoli os
antibióticos receitados. Não suportava o estibestrol, sem falar no
ácido resordílico lactona, o mais revolucionário dos aditivos.
Juvenal e a junta médica ainda prescreveram clorotetraciclina,
oxitetraciclina e zincobacitracina. E eu carente anêmica de Abá, do
tempo em que a gente provava de todos os matos, os podres, os tóxicos
e o musgo que, no fim das contas, também é penicilina.
10
de maio. A regra está atrasada. Juvenal garante que não vem mais,
que estamos todas bem grávidas. Não sei, na minha terra mulher só
sabia que engravidou quando o marido tinha dor de dente. Mas Juvenal
garante e nos policia a dieta: todas as vitaminas acima indicadas e
nada de sorgo, mandioca, ferrã e forragem que é bom. Ele passa os
dias andando de um lado para o outro, ansioso como se fosse o pai no
corredor. Anda nervoso e nos transmite o nervosismo, acaba que o
nervosismo é que nos deixa desreguladas. Como o primeiro filho, que
a gente deseja tanto que vive engravidando em falso por conta dos
desejos. Tenho até sentido náuseas, como no primeiro filho,
principalmente após as refeições. Mas isso também é por conta do
melengestrol que Juvenal me obriga a deglutir na sobremesa.
21
de maio. Juvenal já está me cansando com essa conversa de Fazenda
Modelo para cá, Fazenda Modelo para lá, parece até que quer provar
alguma coisa. Ele hoje nos levou a Juvenópolis, vejam só, uma
cidade que se arvora em capital. Túneis, pontes, elevadores e até
um laboratório num oitavo andar, onde a junta médica nos submeteu a
um exame. Tudo branco, espaçoso e sonoro, mas ainda assim há algo
ali que me incomoda. As outras não. Minhas colegas voltaram falando
maravilhas no ônibus, falando de Juvenópolis dos viadutos da junta
médica do oitavo andar. O ônibus de luxo veio saltitando de tanta
animação.
23
de maio. Resultado do exame: positivo. Engravidamos todas e nem sei
se Abá teve dor de dente. Juvenal diz que o laboratório não falha.
Digo eu que Abá não falha, o canalha.
10
de junho. Ainda saudades de Abá, por que não confessar?
Tenho
sonhado com viadutos lânguidos, na verdade línguas monumentais.
Deve ser por isso que acordo indisposta, com frequentes náuseas, e é
assim sonolenta que acompanho as outras nas consultas ginecológicas
de praxe. Elas não descansam. O ônibus entra na cidade aos soluços,
pára aos suspiros nas vitrines, nos filmes em cartaz, nos sinais de
trânsito e na nova iluminação a mercúrio. É a luz da ciência,
diz sempre o tal de Kirill da junta médica. Implico um pouco com
essa junta médica, embora não possa me queixar do tratamento. São
solícitos, o tal Kirill, o tal Kebab, o tal Kamorra, vivem
perguntando se não me falta nada, no laboratório. Não sei o que me
falta no meio de tanto branco, da música ambiental, do ar
condicionado, do edifício alto, mas falta pouco para eu soltar um
grito. Só pode ser um desses distúrbios de gravidez que Juvenal e a
medicina chamam de fenômeno simpático. Deve ser o mesmo
desequilíbrio neurovegetativo que provoca uma babeira permanente no
canto da boca de Kirill, Kebab e Kamorra. Uma salivação abundante
que se acentua quando eles me falam de gravidez e desenvolvimento,
misturam útero com Fazenda Modelo, comparam automóveis a
cromossomos, enquanto babam no avental e me dão ânsias de vômito,
sensação de vertigens, vontade de pular pela janela.
11
de junho. Além do fenômeno simpático é a emoção, diz Juvenal,
emoção da responsabilidade. Colocar um filho na nova Fazenda é
como dar à luz pela primeira vez. Recomenda que eu assente meus
quatro estômagos com grande quantidade de alimentos sólidos, porque
as papilas do meu rume requerem um fator de aspereza na ração, para
o funcionamento adequado da bio-síntese. Devo consumir, por amor de
meu embrião, forragens artificiais tais como:
— grânulos
de matéria plástica
— granito
em pó
— cascas
de ostra
— ureia
em areia
— e
serragem
29
de junho. Por amor de meu filho sigo as dietas e presto os exames
periódicos, retenho o vômito e a saudade de Abá. É engolindo os
problemas domésticos que vou, como todas as vacas, ao cabeleireiro,
à ginástica sueca, à massagem anticelulite, à análise de grupo e
ao tobogã. Cumpro o programa completo, senão lá vem Juvenal dizer
que estou velha egoísta ranzinza reacionária e o assunto acaba em
Fazenda Modelo. Vem dizer que estou parada no tempo e que negar o
desenvolvimento é negar a realidade, é renegar o feto dentro de
nós. Ao que acrescenta o tal de Kirill: F.M., os incomodados que se
retirem. Tem sempre uma frase, esse Kirill. Então tomo a
roda-gigante que confunde céu com chão, céu com chão, léu com
cão, daí acelera e dispara e não se vê mais coisa com coisa, se
desgoverna, a gente perde a noção do tempo, do céu e do chão,
perde a noção da gente, e quando susta ninguém mais se lembra de
nenhum problema. volta para casa e dorme feito bicho de pelúcia.
15
de julho. A Ariadna era uma que também não andava satisfeita. Era
contra as coisas. Só que em vez de se conter, reclamava o troco e
vomitava na roda-gigante. Pois ontem a junta médica resolveu
examinar o seu caso. O tal Kamorra, assim que lhe perscrutou o abdome
com o estetoscópio, fez uma cara nada boa. Alertou os colegas e
todos concordaram com a cara ruim. Suspeitava-se que Ariadna
estivesse utilizando indevidamente o seu cordão umbilical, cuja
exclusiva função, como se sabe, é alimentar a criança no útero.
Mas suspeitava-se que Ariadna, através desse cordão, estivesse
passando mensagens negativas, perniciosas, infecciosas, capazes de
desencaminhar a criança desde feto. Impressões deturpadas do nosso
mundo exterior e, portanto, informações contrárias ao interesse
geral, conforme boletim oficial da junta médica. Ontem Ariadna não
voltou com o ônibus. Permaneceu no laboratório em observação.
12
de agosto. Tenho-me esforçado bastante, posso dizer que me violento
para afetar naturalidade no dia-a-dia. Hoje a prova foi almoçar com
Kebab e suportar a vista de sua boca mastigando.
Procurei
conversar amenidades e evitar pensamentos negativos, porque dizem que
um mau pensamento pode comprometer a gestação, mãe e filho. Kebab
me explica que a junta médica tem recebido denúncias de alguns
casos sérios de proselitismo pré-natal. Ele enche a boca quando
fala da junta médica, da rapidez de seus diagnósticos, da sua
importância para a saúde pública. Conta que, quando há sintomas
de doenças consideradas incuráveis e contagiosas. danosas à
sociedade, a junta se atribui autonomia para agir prontamente. Nesses
casos extremos. Kebab e seus operadores assumem o nome jurídico de
Comissão de Eutanásia (CE.), Não sei por que Kebab me contou essa
história de boca cheia. Instintivamente, disfarçadamente, por baixo
da toalha dei três cuspidas no chão. É uma superstição antiga e
sem valor, essa que gestante não pode se impressionar com pessoas ou
animais deformados, pois o filho nascerá com igual aspecto. Não
acredito nessas lendas mas, por via das dúvidas e por amor de meu
feto, estou sempre cuspindo para quebrar feitiço.
6
de setembro. A gestante não deve passar por baixo de cerca de arame,
pois o cordão umbilical enforcará a criança na hora do parto.
Juvenal reabilitou essa crendice porque conhece meu temperamento.
Sabe que às vezes tenho ímpetos de errar por aí, saltar
obstáculos, dançarolar, parir por aí, quem sabe ao lado de Abá.
Mas Abá, diz Juvenal, Abá seria o primeiro a censurar tais
aventuras. Hoje ele conhece o valor das palavras. Amor, liberdade,
diz Juvenal, essas palavras são muito bonitas quando não estão em
jogo valores maiores. Está em jogo o futuro dos nossos filhos. E é
para eles que hoje existe um negócio chamado estabilidade. Um ótimo
negócio, porque ninguém investiria num organismo sujeito a riscos,
trancos, tombos, hemorragia, aborto.
8
de outubro. Feriado. Abá é o Campeão Sênior de Touros, isto é
campeão mundial de reprodutores na 1ª ExpoInter de Juvenópolis. A
cidade repleta de faixas, marchas, espoletas, busca-pés e
pirotecnia. Kirill aproveita para lançar novo slogan: Fazenda,
modelo de explosão. Nós estreando as batas de lamê. Mas Abá passa
longe e não repara.
9
de outubro. O atleta. Exposto de corpo inteiro na capa das revistas.
Não nego que esteja bonito, continua em forma. Mas não entendo para
que tanto exibicionismo. Campeão reprodutor, que vantagem. Sim, pois
o filho que mal fez num dia me consome um diário. Um rosário de
varizes. Um ventre que é uma trouxa. Uma cabeça que é um balde
d’água. Uns seios túrgidos de hormônios galactagogos. A silhueta
qualquer de uma batata. E uma bata ridícula que nem esconde tudo
isso.
15
de novembro. Se menino ou menina, essa curiosidade sempre deu. Então,
que fazia a mãe: somava os anos, subtraía os meses, não lembro,
matava um porco, arrancava o rim do porco, ou cozinhava o coração
da galinha, não lembro. Hoje vamos ao laboratório para o exame da
cromatina. Concordo que é mais simples, não precisa matar bicho nem
fazer conta. Retiram um líquido da gente, levam para o microscópio
e dão o resultado em dois dias.
17
de novembro. Não era para chiliques, Aurora. Que vergonha, sossega,
parece criança, sabe o que disse o laboratório? Que espero gêmeos.
Diga a Abá que espere gêmeos.
12
de dezembro. Confesso que já não contava com essa emoçãozinha
besta. É o dia que se aproxima. Terei leite suficiente para dois?
Sinto seus movimentos. Sinto o peso das cabecinhas me achatando a
bexiga. Dá vontade de urinar toda hora.
8
de janeiro. E precisava ver a volúpia de Lubino e Latucha negociando
as minhas tetas. Só que os úberes, de tanto amor ou galactagogos
demais, jorraram um volume absurdo de leite. Os filhotes engasgaram
com o primeiro colostro. E me foram desmamados para sempre.
Desmamar
bezerro não é nada, duro é desfilhar a mãe. Ela sente calafrios e
decide aquecer o inocente, ensaia trazê-lo de volta ao ventre.
Depois ela pensa que bezerro gosta que o enxuguem com língua de
vaca. Ela é que está faminta e lhe impinge as tetas. Sedenta de
afeto, incomoda o coitado com gordos afagos que ele não pediu.
Juvenal
custou a convencê-las que aquela abundância de leite não Convinha
às crianças, era artigo de exportação. Deixassem com ele que os
filhotes já tinham a agenda tomada, o leite em pó e a cama feita no
box apropriado. Ali cresceriam recendendo a éter, não mais ao
estrume de antigamente. E que era para o bem dos bezerrotes. E que
era para o bem das mães. Aurora, um exemplo, precisa compreender que
já não tem o corpo de outros tempos, após tantas distocias. Além
da decadência orgânica provocada pelo aleitamento de tantas
gerações. Olhe-se no espelho, conte-se os dentes, repare só o
detalhe da barbela. Deletério ofício, o de mãe, disse Juvenal. E
consolou Aurora besuntando-lhe os seios com sumo de babosa, que
estanca o leite. Pense em si, Aurora, cuide do físico, poupe forças
para o amor do amor dos próximos.
Finalmente
as crianças foram internadas, ainda de olhinhos fechados, no box
incubador. Este box é uma espécie de cavidade uterina, mais
asseada, onde os pupilos hão de guardar a vigília que antecede a
missão a que estão predestinados: povoar o Mundo Novo no dia de sua
Redenção. Até então repousarão as pálpebras e Juvenal,
pessoalmente, olhará por eles. Aliás, os primogênitos da nova
Fazenda já começam bem. […]
Chico Buarque, em Fazenda Modelo
Nenhum comentário:
Postar um comentário