A
canção “A Rita”, tendo surgido no primeiro LP de Chico Buarque,
em 1966, integrou uma fase de sua produção que ficou mais
representada (ou até mesmo ofuscada) por obras como “A banda” e
“Pedro pedreiro”. Entretanto, essa canção, que agora nos
propomos a brevemente analisar, carrega uma faceta bem resumidora do
processo criador de Chico Buarque – ao menos no que diz respeito ao
universo voltado para temas líricos.
Logicamente,
as proporções de uma única peça musical jamais seriam suficientes
para esgotar as variações que Chico Buarque, em torno desse
assunto, explorou ao longo de sua obra. O que pretendemos ressaltar
neste artigo são alguns elementos que se fizeram constantes,
demonstrando como o artista já revela, mesmo em incursões musicais
de juventude, procedimentos ou estratégias que representam com
excelência parte de seu estilo.
Estudos
como os de Adélia Bezerra de Meneses propuseram divisões para
entender a produção cancional de Chico Buarque dentro de tendências
escalonadas por características específicas. Sob idêntica
proposta, igualmente foram lançadas coletâneas como a série de CDs
da Universal Music, em 1994, comemorativos aos cinquenta anos do
compositor: assim, a coleção separou canções conforme sua ênfase
fosse direcionada ao aspecto político, amoroso, cotidiano etc. Sem
pretender revisitar tal método de pesquisa ou apreciação, e
levando em conta que a proposta de dividir a obra de Chico não
significa uma rigidez marcada por cronologias ou “purezas
temáticas”, adotamos também a perspectiva de uma seleção lírica
em que “A Rita” se enquadra, ilustrando determinado modo de
composição no processo criador de Chico Buarque. Tal modo, claro,
não chega a se distanciar completamente da dicção de peças mais
críticas ou politizadas – e isso, de resto, seria mesmo
impossível, pois estamos no território de um único (embora
múltiplo nos talentos) sujeito criador. Não obstante, existem
especificidades que merecem análise, a partir de agora. Comecemos
com a leitura da letra da canção:
A
Rita
A
Rita levou meu sorriso
No
sorriso dela
Meu
assunto
Levou
junto com ela
E
o que me é de direito
Arrancou-me
do peito
E
tem mais
Levou
seu retrato, seu trapo, seu prato
Que
papel!
Uma
imagem de São Francisco
E
um bom disco de Noel
[…]
“A
Rita”, conforme se percebe, traz a figura de uma mulher ativa, que
atinge profundamente o homem ao abandoná-lo, retira-lhe as
qualidades e usurpa seus direitos, recorrendo inclusive à violência.
Nesse ponto, lembra uma canção como “Atrás da porta”, com o
gesto crispado de arrastar, arranhar e agarrar. Se nessa última
canção, entretanto, a imagem de humilhação impõe-se, após a
fúria (“Sem carinho, sem coberta / No tapete atrás da porta /
Reclamei baixinho”), em “A Rita” não existe declínio: a
mulher que sai, levando objetos e sentimentos, não se submete nem é
vítima de emoções. Ela mata o amor “de vingança”, e sua
ausência é sentida como uma fratura, que desestabiliza o parceiro.
A
propósito, Maria Helena Sansão Fontes já comentava como um
relacionamento amoroso pode criar uma ilusão de continuidade e
permanência que, ao ser destruída, provoca um intenso
dilaceramento. Tal dor é refletida numa perda de autoestima e de
autocontrole, que impulsiona as atitudes mais patéticas. Em “Atrás
da porta”, citada há pouco, percebe-se o extremismo dessa dor nos
gestos de súplica da personagem feminina, cuja voz cria o ponto de
vista na canção. Em “A Rita”, Chico Buarque ainda utiliza a
tradicional perspectiva de um eu lírico masculino que, se não chega
a rastejar aos pés da companheira, mesmo assim admite ter sofrido
“perdas e danos” com a separação.
Talvez,
num primeiro momento, a figura masculina sugira certa passividade ou
mesmo letargia, diante da mulher-título que é tão impulsiva,
abandona o lar e carrega consigo “sorriso”, “assunto”,
“planos” e “enganos” de seu parceiro. Entretanto, existem
algumas passagens que indicam uma discreta revolta: “E tem mais”,
“Que papel!”, “E além de tudo”. São momentos em que o eu
lírico toma consciência da injustiça que sofreu – mas, ao final,
isso não chega a lhe dar forças para sair da posição de vítima,
sendo esta inclusive justificada pela juventude ou imaturidade:
“Levou os meus planos / Meus pobres enganos / Os meus vinte anos /
O meu coração”.
Nessa
relação de casal delineada pela letra em análise, outro aspecto
interessante é o tom gradativo, que intensifica e agrava a
importância dos elementos que Rita retira do eu lírico. Assim, se a
menção inicial ao “sorriso” pode supor apenas uma alegria
superficial, depois vemos que o “assunto” é também roubado, bem
como “o que é de direito” – e dessa forma vão objetos
domésticos, imagem religiosa e imagem artística (“um bom disco de
Noel”), planos, enganos, idade (“os meus vinte anos”) e afeto
(“o meu coração”). Por último, surge a informação de que
Rita “...deixou mudo / Um violão”, o que pode indicar o roubo da
própria capacidade criadora: sem a presença da mulher, o cantor
perde sua inspiração. Entretanto, antes que aventemos essa
hipótese, convém indagar a respeito do papel tão ativo dessa
mulher, que verdadeiramente “rouba a cena”. Apesar de ser o
núcleo dinâmico (o que se revela desde o título da canção), Rita
não age por impulso de maldade ou desvario, mas reage,
motivada por situações anteriores – que não são mencionadas
explicitamente, mas podem ser percebidas por meio do perfil
subjacente e indireto com o qual é traçada a figura masculina.
A
pergunta que aqui cabe é: por que Rita mataria o seu amor “de
vingança”? Que razões teria para isso? Como podemos entender sua
atitude intempestiva, de sair arrancando coisas, recolhendo objetos
para deixar o lar, com uma espécie de fúria? A explicação
certamente reside “nos enganos” ou “nos vinte anos” do eu
lírico: algo que pode ser associado a sua imaturidade,
irresponsabilidade ou mesmo passividade. O violão ainda instaura a
noção de boemia, que pode ter sido o pretexto para a saída da
Rita. Assim, à semelhança de Jasão, personagem da peça teatral
Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, aqui também
podemos encontrar um sujeito que estabelece compromisso com uma vida
errante, artística, mas que não rende dinheiro: prova disso é o
fato de que o casal “não tem um tostão”. Nesse sentido, como
parte da vingança de Rita, sua fúria pode ter emudecido o violão
de duas maneiras: ou, como já dissemos, por tirar ao eu lírico o
prazer ou a motivação de cantar sob inspiração feminina, ou por
literalmente danificar o instrumento musical. Deixar o violão mudo,
mutilá-lo, entraria na categoria de “danos” sofridos nessa cena
de separação...
No
entanto, ainda que optemos pela segunda hipótese, da agressividade,
não seria justo considerar a figura de Rita como a de uma mulher
inimiga do lúdico ou das artes: tanto é que ela leva consigo “um
bom disco do Noel”. Essa passagem frisa a influência de Noel Rosa,
que Chico Buarque admite ter experimentado de maneira forte,
sobretudo nas composições da época. A canção “A Rita” também
melodicamente se enquadra na proposta de um samba lírico à moda de
Noel e, além disso, podemos ressaltar que a atmosfera popular e
boêmia é bem condizente com o universo do “poeta da Vila”. Num
trecho como “Levou seu retrato, seu trapo, seu prato / Que papel!”
ressoa a memória dos versos de Noel – e não somente por mencionar
certa camada social, presente ao longo de seu repertório em diversas
letras de canções, mas ainda pelo ritmo brincalhão ou malandro,
evidenciado pela sequência das palavras “retrato”, “trapo”,
“prato” e, finalmente, pela ingênua reprimenda “Que papel!”.
A
imagem do malandro – vale lembrar – participa da obra de Chico
Buarque com muita relevância. Tal estereótipo surge numa dimensão
simbólica da própria condição paratópica (deslocada ou
marginalizada) do artista em si. Para um estudo específico do
conceito de paratopia aplicado à obra de Chico Buarque, pode-se
consultar Nelson Barros da Costa. Ainda a propósito, é importante
constatar que o aspecto da malandragem combina igualmente com o
estilo de Noel Rosa e com o do sujeito retratado em “A Rita”,
associado ao violão e, por extensão, à roda de samba, à arte e à
boemia. O temperamento descontraído ou irresponsável dessa figura
entra em conflito com a praticidade da mulher, que surge ativa,
ríspida e decidida pela atitude de abandono.
É
o momento de voltarmos ao princípio deste artigo, quando anunciamos
que nossa abordagem da canção seria direcionada para um elemento
representativo do processo criador de Chico Buarque, no que tange a
uma de suas abordagens do tema lírico. Essa abordagem refere-se ao
jogo dos contrastes, à difícil conciliação de temperamentos, numa
relação. Em “A Rita”, percebemos dicotomias que elaboram
extremos, como a da mulher ativa e do homem passivo; do homem boêmio
e da mulher com “senso prático”. As diferenças criam conflitos
que geram a separação; porém, a desistência de tentar conciliar
os extremos não traz alívio, mas dor, sensação de perda.
O
tema do amor impossível surge – embora não numa esfera
tradicionalmente “romântica”, em que a impossibilidade afetiva é
desencadeada por questões externas, ligadas à sociedade. Para uma
relação moderna, cantada em circunstâncias dolorosamente
verossímeis, o que afasta os apaixonados não é nenhum voto de
castidade, nenhuma doença ou questão familiar intransponível: o
que impossibilita o amor é o simples temperamento de um ou de outro,
a incapacidade de conviver com aquele defeito ou característica
considerada incorrigível. Mescla-se ao amor idealmente puro um outro
sentimento, mais complexo, de rejeição, antipatia, raiva ou
ressentimento – e é em meio a essa balbúrdia sentimental que o
abandono acontece.
Se
fôssemos então resumir essa visão lírica, que Chico Buarque
desenvolve em “A Rita”, em “Com açúcar, com afeto”,
“Trocando em miúdos” e tantas de suas composições (respeitadas
as singularidades de cada uma delas), poderíamos eleger o tema da
incomunicabilidade. A incompreensão que nasce do amor, a
incapacidade de fazer o outro ver (ou satisfazer) determinadas
necessidades e a intolerância diante do fato de que tais aspectos
sejam ignorados, dentro de uma relação.
É
contra esse contexto de desentendimento que a personagem Rita se
insurge; vai embora, levando as coisas boas e relevantes (o sorriso,
os vinte anos, o disco de Noel) e abandonando o que não lhe apraz. É
em cima desse amor intenso, porém talvez descartável ou autônomo
demais, que Chico Buarque concentra seu rito criador. E se a
palavra-chave é incompreensão, vale assinalar que também se
percebe a constância com que esse tema invade outras obras do
artista, como é o caso de seus trabalhos literários, por exemplo.
Se não nos cabe, por questão de espaço e alcance de proposta,
transcender a análise para esses territórios, ao menos assinalamos
a importância desse elemento. De fato, a incompreensão tem
de surgir em toda a sua carga dramática num artista que concentra
seu poder na voz e na palavra. Pensar na incapacidade de promover a
empatia, de envolver os outros (agora, para além do tema lírico,
mas dentro de uma dimensão universal), é uma hipótese aterradora
para o criador. Não é à toa que – voltando à letra – o pior
que parece acontecer é “deixar mudo um violão”.
Tércia Montenegro Lemos, em Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos
Nenhum comentário:
Postar um comentário