Eu
estava em Paris e li que a Juliette Grecco estava se apresentando em
algum lugar. Não fui vê-la. Juliette tinha passado algum tempo
desaparecida e ressurgira não só com a mesma cara que tinha quando
era a musa do existencialismo, mas com a mesma franja! O
existencialismo, para quem nasceu agora, foi uma onda filosófica
baseada em Heidegger e propagada por Sartre, entre outros, que dizia
que a existência precede a essência e cujo principal mandamento foi
exemplarmente resumido no Brasil numa marchinha de carnaval sobre a
Chiquita Bacana lá da Martinica, uma existencialista com toda a
razão que só fazia o que mandava o seu coração.
Na
Paris dos anos quarenta e tantos e cinquenta e poucos o coração
mandava que todos usassem gola rulê (ao contrário da Chiquita
Bacana que só usava uma casca de banana nanica) e passassem o tempo
em cafés discutindo o ser e o nada e paquerando a Juliette, que
devia ter, pelos meus cálculos, uns 16 anos. Como cantora ela
inaugurou a linhagem das Jane Birkin e etc., de intérpretes que, se
tivessem voz, só atrapalharia.
Não
sei se ela contribuía com alguma coisa às discussões filosóficas
do momento. Acho que sua função era ser, exatamente, a Juliette
Grecco do grupo. Gerações ainda por vir teriam suas próprias
Juliettes Greccos — só eu conheci umas três — mas nenhuma se
igualou ao protótipo. E ela, ainda por cima, namorou o Miles Davis.
Eu deveria ter ido ver a Juliette. Uma mulher que foi a inspiração,
ou mais do que isto, para Sartre e Miles Davis juntos merecia os
mesmos respeitos devidos a Lou Salome, Alma Mahler, Yolanda Penteado
e outras cujos nomes, só os nomes, evocam toda uma era e seu clima.
Mas
não fui ver a Juliette. Quis evitar um choque cronológico. Me
lembrei de um filme visto há muito tempo em que o corpo de um
alpinista desaparecido anos antes é encontrado, intacto, numa
geleira perto de um vilarejo, nos Alpes. Entre os habitantes do
vilarejo que correm para ver o achado está a namorada do alpinista,
que não sabe o que sentir diante daquela visão insólita — ou, no
caso, sólida — do seu amado preservado em gelo, exatamente como
era quando desapareceu. Ou seja, com vinte ou trinta anos menos do
que ela. Qual é a reação apropriada? Gratidão, por poder rever o
namorado como ele ficou na sua memória, pelo menos por alguns
instantes antes que comece o degelo? Um sentimento de traição
porque o tempo não fez com ele o que fez com ela? Resignação
filosófica diante de uma das trágicas ironias da vida? Ou só
espanto, sem literatura?
Como
os artistas franceses parecem viver num ritmo metabólico diferente
do nosso (até o Aznavour e o Henri Salvador ainda estavam na ativa,
e Johnny Halliday continuava adolescente), eu estava ameaçado de
ter, diante de uma Juliette Grecco com a mesma franja que tinha há
cinquenta anos, o mesmo tipo de confusão de emoções da namorada do
alpinista. A cronologia enlouqueceria. Nos defrontaríamos com nós
mesmos naquele tempo, só que agora sem o equipamento necessário
para enfrentá-lo. Não saberíamos mais nem a língua que falávamos.
Ainda se diz “fenomenologia”? O que foi mesmo que se decidiu, ou
não se decidiu, nos cafés de Paris, e em todos os cafés de Paris
do mundo, na época? Quem ganhou, afinal, o ser ou o nada?
Me
imagino puxando conversa com a Juliette Grecco congelada.
— Como
vão o Jean-Paul e a Simone?
— Bem,
bem. Vou encontrá-los daqui a pouco.
— E
o Miles, tem aparecido?
— Menos
do que eu gostaria.
— Dê
um abraço nele que eu mando.
— Quem
é você?
— Ninguém,
ninguém. Um visitante do futuro.
— Não
estou entendendo.
— Eu
também não.
Foi
melhor não ter ido ver a Juliette Grecco.
Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis
Nenhum comentário:
Postar um comentário