quinta-feira, 23 de maio de 2024

Uma galeria de abbeys


De muitas maneiras, acho que é verdade o que dizem: até os momentos ruins são cheios de bons momentos (e ótimos momentos), e com o fim deles não poderia ser diferente. Ainda havia as manhãs de domingo, quando ela pedia que ele lesse para ela na cama e o beijava com seu hálito matinal, e tudo que Michael podia fazer era se render. Com prazer, lia para ela O marmoreiro. Primeiro, corria o dedo pelo relevo do título na capa.
Ela perguntava:
Qual é mesmo o nome do lugar onde ele aprendeu sobre mármore e rochas?
Baixinho, ele respondia.
A cidade era Settignano.
Ou então:
Lê mais uma vez o que ele fala sobre os Escravos.
Página 265:
— “Eram selvagens e retorcidos, antiquados e incompletos, mas nem por isso deixavam de ser colossais, monumentais, e parecia que sempre insistiriam em lutar para sempre.”
Sempre para sempre? — Ela rolava para cima dele e beijava sua barriga; sempre amou aquela barriga. — Será que é erro de revisão?
Não, acho que ele quis dizer isso mesmo. Devia apostar que nós acharíamos que é um erro... Imperfeito, como os Escravos.
Hum. — Ela beijava e beijava, de um lado para outro, e subia até as costelas. — Amo quando fazem isso.
O quê?
Lutam pelo que amam.

***

Mas ele não conseguiu lutar por ela.
Pelo menos, não da forma como ela desejava.
Para ser justo, não havia nada de perverso em Abbey Dunbar, mas, conforme o tempo se alastrava e os bons momentos rareavam, a cada dia ficava mais claro que suas vidas tomavam rumos diferentes. Para ser mais preciso, ela estava mudando, e ele continuava o mesmo. Abbey nunca teve a intenção de atacá-lo. É só que foi ficando cada vez mais escorregadia aquela coisa de se agarrar ao relacionamento.
Em retrospecto, Michael se lembrava dos filmes. Lembrava-se das noites de sexta-feira, quando o cinema inteiro caía na gargalhada, quando ele caía na gargalhada, e Abbey só continuava assistindo, impassível. Então, quando o exército de frequentadores do cinema se calava, Abbey sorria de algo em particular, algo entre a tela e ela. Se ao menos ele soubesse rir quando ela ria, talvez estivessem bem até hoje...
Contudo, ele se conteve.
Aquilo era ridículo.
Cinema e pipoca de plástico não aumentam as chances de aniquilamento, né? Não, o problema era mais uma compilação: um melhores momentos de duas pessoas que correram o mais rápido que puderam juntas, mas acabaram definhando no fim.

***

Às vezes, ela recebia em casa uns amigos do trabalho.
Todos tinham unhas limpas.
Tanto mulheres quanto homens.
Passavam muito longe dos canteiros de obra.
Além de tudo, Michael pintava muito na garagem, então vivia com as mãos ou empoeiradas ou manchadas de tinta. Bebia café coado, enquanto eles bebiam o da máquina.
Quanto a Abbey, seu cabelo ficava cada vez mais repicado, seu sorriso, cada vez mais comercial, e no fim das contas ela conseguiu reunir a coragem necessária para deixá-lo. Ela podia até tocar o braço dele e fazer um comentário bem-humorado, como nos velhos tempos, ou fazer uma piadinha acompanhada de uma piscadela e um sorriso para ele — mas era cada vez menos convincente. Ele sabia muito bem que, mais tarde, na hora de dormir, eles ficariam em hemisférios opostos da cama.
Boa noite.
Te amo.
Também te amo.
Muitas vezes, ele se levantava.
Ia para a garagem e pintava, mas sua mão pesava uma tonelada, como se coberta de cimento. Muitas vezes, ele pegava O marmoreiro e lia as páginas como se fossem uma espécie de receita médica; palavra por palavra para amenizar a dor. Lia e trabalhava até os olhos arderem e uma verdade se aproximar de mansinho e envolvê-lo.
Ali estavam ele e Buonarroti.
Mas só havia um artista no recinto.

***

Talvez se eles brigassem.
Talvez fosse isso que estava faltando.
Alguma volatilidade.
Ou talvez se ele limpasse mais a casa.
Não. A verdade era um fato puro e simples:
A vida de Abbey Dunbar havia tomado outro rumo, e atrás dela estava sempre aquele menino que ela amou um dia. Se antes ele a pintava e ela amava, isso tinha virado um mero bote salva-vidas. Ele conseguia capturar Abbey rindo enquanto lavava a louça. Ou em frente ao mar, com surfistas ao fundo caçando as ondas. Ainda eram belas, as pinturas, esplêndidas, mas se antes eram compostas apenas de amor, se tornaram à base de amor e carência. Nostalgia; amor e perda.

***

Então um dia ela parou no meio de uma frase.
Sussurrou:
É uma pena... — A quase tranquilidade suburbana. — É mesmo uma pena, porque...
O quê?
Como vinha se tornando cada vez mais comum, ele não queria ouvir e deu as costas para a resposta. Estava em frente à pia da cozinha.
Ela disse:
Acho que você ama mais a Abbey das suas pinturas... A Abbey que você pinta é melhor do que eu sou de verdade.
O sol cintilava.
Não diga isso. — Naquele instante, ele morreu, teve certeza disso. A água ficou cinza, como se estivesse nublada. — Nunca mais diga isso de novo.

***

Quando finalmente acabou, ela deu a notícia na garagem.
Ele ficou parado, com o pincel na mão.
Ela já estava de malas feitas.
Ele podia ficar com todas as pinturas.
Ela ouviu as perguntas inúteis dele com uma expressão de quem pedia desculpas. Por quê? Era outro? Será que a igreja, a cidade, será que tudo não significava nada?
Mas mesmo naquele momento, quando a fúria deveria ter destronado a razão, a única coisa que ficou pendurada nas vigas do teto foram fiapos de tristeza. Balançaram e oscilaram como teias de aranha, tão frágeis e, ao que parecia, sem peso algum.
Atrás dele, uma galeria de Abbeys assistia à cena:
Ela gargalhava, ela dançava, ela o absolvia. Bebia e comia e se abria, nua, na cama; enquanto isso, a mulher diante dele — a que não era uma pintura — explicava. Não havia nada que ele pudesse dizer ou fazer. Um minuto inteiro de desculpas. Por tudo e qualquer coisa.
E o penúltimo apelo saiu em forma de pergunta.
Ele está te esperando lá fora?
Abbey fechou os olhos.
E o último, quase como um reflexo, foi assim:
No banquinho ao lado do cavalete estava O marmoreiro, com a capa virada para baixo. Ele pegou o livro e lhe ofereceu; por alguma estranha razão ela o aceitou. Talvez fosse apenas para que, anos depois, um menino e uma menina pudessem ir buscá-lo... Eles o guardariam com todo o carinho e o leriam e ficariam obcecados por ele, deitados num colchão jogado em um campo abandonado em uma cidade inteira de campos abandonados — e tudo isso viria dali.
Ela o pegou.
Segurou-o com as duas mãos.
Beijou os próprios dedos e levou os dedos beijados à capa, e estava muito triste, e ainda assim tão elegante, e o levou embora, e a porta se fechou com um estrondo depois que ela passou.

***

E Michael?
Da garagem, ele ouviu o motor do carro.
Outro alguém.
Desabou no banquinho respingado de tinta e disse “Não” para a garota que estava por toda parte, e o motor roncou mais alto, então o som foi diminuindo até desaparecer por completo.
Ficou ali sentado durante um bom tempo, quieto e trêmulo, e, sem emitir o menor ruído, começou a chorar. Chorou suas lágrimas silenciosas e errantes rodeado pelos rostos das obras de arte — até que acabou cedendo e se deitando no chão, todo encolhido. E Abbey Dunbar, que não era mais Abbey Dunbar, o velou durante toda a noite, em suas inúmeras formas.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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