Falando
das grandes secas que assolaram o Nordeste no final do século XIX,
Euclides da Cunha lembrava que a única preocupação dos poderes
públicos, então, era eliminar das cidades os miseráveis que
chegavam em bandos, doentes e famintos. “Abarrotavam-se, às
carreiras, os vapores” e mandavam aquela gente para a Amazônia,
“expatriados dentro da própria pátria”, sem com eles enviar um
só agente público, ou um médico. “Os banidos levavam a missão
dolorosíssima e única de desaparecerem...”(1)
Mais
de cem anos depois, a migração interna ainda é um problema mal
resolvido no país. Mal resolvido mesmo em nosso imaginário
cultural, do qual os migrantes continuam sendo banidos, seja por sua
ausência dentro de representações artísticas que pretendem dizer
do Brasil de hoje, seja por sua constante vitimização na cidade
grande – a partir da construção de personagens migrantes que são
tão exploradas, sofrem tanto nas metrópoles, que parecem estar ali
apenas para, em missão didática, nos esclarecer que esse,
definitivamente, não é o seu lugar.
O
fluxo migratório no Brasil é intenso e coloca em movimento pessoas
de todas as classes sociais. No entanto, apenas os pobres são
vistos, e designados, como migrantes. Ou seja, o deslocamento das
classes médias e das elites é entendido como algo natural e que não
implica, necessariamente, em uma marca identitária. Marca que leva
consigo o sinal de menos para aqueles que a transportam –
especialmente se for uma mulher e estiver migrando sozinha, sem pai
ou marido (uma realidade que, segundo as estatísticas, é crescente
no país).
Buscar,
em meio à nossa produção cultural, representações dessa mulher
que não sejam preconceituosas ou marcadas pelo lugar-comum pode ser
uma tarefa árdua, ainda mais se estivermos atrás de protagonistas,
de mulheres que sejam agentes ativas do processo migratório. Afinal,
as sagas da migração, seja ela interna ou externa, ainda são
narrativas essencialmente masculinas – a história dos percalços
do pai de família que migra e garante melhores oportunidades para
seus filhos.
Mas,
com certo esforço, é possível evocar, aqui e ali, algum exemplo
bem realizado de mulheres migrantes que se contrapõem a essa imagem.
Uma delas é a Violeira – personagem da canção com o mesmo nome,
com letra de Chico Buarque sobre melodia de Tom Jobim –, que desde
1983 vive sua sina, sair do interior do Nordeste e atravessar o país
para morar no Rio de Janeiro. Basta ligar o rádio em uma tarde
ensolarada, pôr o disco para tocar em meio a uma reunião com os
amigos, acessar o iPod no caminho de casa e ela volta a fazer sua
jornada diante de nós, lá do sertão do Quixadá até Ipanema,
desviando dos empecilhos e das raízes que lhe querem enxertar.
É
uma viagem solitária, não na realidade social (em que, como já
disse, acontece com uma frequência cada vez maior entre as
mulheres), tampouco no interior da própria narrativa (a protagonista
vai vivendo enquanto persegue seu sonho, encontra homens no caminho,
tem filhos que vão sendo incorporados ao trajeto). É solitária no
campo das representações artísticas, em meio aos discursos que
possuem impacto na formação de um imaginário cultural. Imaginário
esse que é constantemente acessado, como repertório de
significados, cada vez que nos colocamos diante de um outro, daquele
que não é costumeiramente “visível” no espaço social que
habitamos.
Nesse
sentido, a Violeira ganha força se aproximada de duas outras
viajantes solitárias, que vivem em chãos bastante diferentes: a
Macabéa, do romance A hora da estrela (1977), de Clarice
Lispector, e a Hermila, do filme O céu de Suely (2006),
dirigido por Karim Ainouz. São três trajetórias bem diversas:
encontramos Macabéa já morando e trabalhando na capital carioca;
Hermila, por outro lado, é vista em seus preparativos para a
partida; só da Violeira acompanhamos o trajeto todo de ida para o
Rio de Janeiro. São, as três, jovens, muito pobres, e absolutamente
certas do que querem para suas vidas: morar na cidade grande.
Mas,
para elas, esse não é um sonho fácil, afinal todo espaço é um
território em disputa, seja ele inscrito no mapa social ou
constituído numa narrativa. Daí o estabelecimento das hierarquias,
às vezes tão mais violentas quanto mais discretas consigam parecer:
quem pode passar por esta rua, quem entra neste shopping, quem pode
contar a própria história, qual dessas histórias vai ser ouvida...
A não concordância com as regras implica avançar sobre o campo
alheio, o que gera desconforto e conflito, quase sempre muito bem
disfarçados. Dentro desse jogo de forças, é importante observar
como essas três narrativas incorporam em seu interior a tensão
resultante do embate entre os que não estão dispostos a ficar em
seu devido lugar e aqueles que querem manter seu espaço
descontaminado. E não são poucas as forças que empurram as três
protagonistas para fora do caminho.
Macabéa
é construída como a personagem de um outro, Rodrigo S.M., que nos
diz escrevê-la a partir do “sentimento de perdição” que captou
no ar ao observar o rosto de uma moça nordestina na rodoviária.
Desenhando-a para nós, Rodrigo dirá que ela é feia e suja, que
sente fome o tempo todo, que é atoleimada, que não pensa, que não
tem sonhos, que não faz seu trabalho direito, é um “parafuso
inútil” na engrenagem. Por fim, ele a mata, a atropela,
expulsando-a da narrativa e da cidade, como “um vago sentimento nos
paralelepípedos sujos”.
Ainda
assim, humilhada, silenciada, esmagada contra os paralelepípedos da
cidade, a Macabéa que surge diante de nós é uma jovem que trabalha
em um escritório como datilógrafa, que tem um namorado, que ouve
rádio, lê jornais e revistas, vai ao cinema, ao médico, à
lanchonete, à cartomante, anda, enfim, livre pelas ruas do Rio de
Janeiro. Macabéa não nos parece infeliz, como insiste Rodrigo S.M.
Ao contrário, é dona de sua vida e de seus passos, não deve
satisfação a ninguém, não tem nenhuma autoridade masculina a quem
se reportar. Não é a cidade que a destrói, a cidade lhe dá vida e
espaço, quem a mata é seu autor, porque não sabe o que fazer com
ela, porque acha que ela não cabe no mesmo lugar que ele.
Se
Macabéa – ao contrário da Violeira, que fala em primeira pessoa –
nos é contada por um outro, que sobrepõe sua própria imagem à
dela, a Hermila de O céu de Suely aparece diante de nós sem
sombras, de corpo inteiro – somos testemunhas de sua angústia. O
filme começa com a moça voltando com o bebê para Iguatu, no sertão
cearense, depois de uma temporada em São Paulo. O marido, que iria
reencontrá-la ali, simplesmente não aparece e ela logo percebe que
precisa ir embora daquele lugar. Sem dinheiro, e sem condições de
consegui-lo, Hermila decide rifar o próprio corpo. Com o que
arrecada, pretende ir o mais longe possível – no caso, Porto
Alegre.
Em
Iguatu, temos uma moça que é acolhida pela avó e por uma tia, que
cuidam do seu filho, lhe dão casa, comida e afeto; uma moça que
reencontra um antigo namorado, meigo e ainda apaixonado; uma moça
que decide abandonar tudo isso, vendendo seu corpo para “migrar”.
Ela corroboraria a ideia de que são jovens sem juízo e sem moral,
prostitutas, enfim, que partem de seus chãos de origem em busca de
sabe-se lá o quê. Mas não é essa a intenção do filme. Se
encontramos ali os olhares acusadores, as ofensas e ameaças contra a
jovem (incluindo a vergonha expressa pela avó e a possibilidade
sempre presente de a polícia intervir), temos também a sua
perspectiva, o seu olhar desconsolado para um lugar sem qualquer
futuro para si. Ela nos é apresentada como uma pessoa que tem
dignidade, que sabe o que quer e que tem pouca escolha para realizar
seu sonho.
Se
Hermila não diz o que espera da cidade para onde vai, ela também
não anuncia o que a incomoda em Iguatu. Mas nós vemos – o
isolamento do lugar, a falta do que fazer, os olhos de todos voltados
sobre si, a pobreza e a feiura de um vilarejo que a câmera insiste
em não idealizar. É que o filme não foi feito para julgar Hermila,
mas para perguntar, a cada um(a) de nós, “o que você faria se
estivesse em seu lugar?”. O que parece estar em discussão,
portanto, é por que ela não teria direito de fazer tudo para ir
embora dali. E a história termina com a jovem dentro do ônibus,
partindo. Seu futuro está em aberto – o antigo namorado fica para
trás (como todos os homens da Violeira) e não há sinal de nenhum
Rodrigo S.M. a interceptar-lhe o caminho pela frente.
A
Iguatu de Hermila serve, assim, para visualizarmos a Quixadá da
Violeira, que não chega a ser descrita na canção. Da mesma forma
que o trânsito de Macabéa pelas ruas do Rio de Janeiro pode nos dar
uma dimensão dos passos futuros da Violeira (ou mesmo de Hermila na
Porto Alegre aonde um dia vai chegar). As narrativas, portanto,
complementam-se em suas diferenças, oferecendo, por exemplo, um
antes e um depois possíveis para uma história feita quase que só
de percurso. É na letra de Chico Buarque que acompanharemos, de
fato, o trajeto migratório – e agora é a própria personagem quem
nos conta sua história. É ali que encontramos a mulher que vai
descendo do Nordeste em direção ao Rio de Janeiro. São anos de
travessia, com encontros e desencontros, filhos que vão sendo
gerados, vida que transborda, como os rios que ela navega.
Em
quase metade da letra somos empurrados por uma narrativa que, se não
segue sempre em frente (há idas e vindas no percurso da personagem),
vai nos levar, junto com ela, à desembocadura da jornada: “Ver
Ipanema / Foi que nem beber jurema / Que cenário de cinema / Que
poema à beira-mar”. Não se trata, é claro, do fim do trajeto,
porque o enfrentamento com as autoridades começa em seguida: “E
não tem tira / Nem doutor, nem ziguizira / Quero ver quem é que
tira / Nós aqui desse lugar”.
A
hipótese de ser banida, de ter de voltar com os filhos para o sertão
de Quixadá, é apontada por ela como um apagamento de sua história.
Retornar seria desfazer ponto a ponto aquilo que faz dela quem é:
Será
verdade
Que
eu cheguei nessa cidade
Pra
primeira autoridade
Resolver
me escorraçar
Com
a tralha inteira
Remontar
a Mantiqueira
Até
chegar na corredeira
O
São Francisco me levar
Me
distrair
Nos
braços de um barqueiro sonso
Despencar
na Paulo Afonso
No
oceano me afogar
Perder
os filhos
Em
Fernando de Noronha
E
voltar morta de vergonha
Pro
sertão de Quixadá
Atravessar
rios, perder os filhos, afogar-se – são metáforas para a ideia de
anulação do trajeto. Voltar ao ponto de partida seria eliminar sua
história, suas possibilidades (não só o passado, mas também o
futuro): “Tem cabimento / Depois de tanto tormento / Me casar com
algum sargento / E todo sonho desmanchar”.
Os
versos finais, usados como refrão, reforçam o que foi dito na
chegada à cidade, mas os termos mudam. Se antes o confronto possível
é com a força da autoridade (o “tira” e o “doutor”), agora
marca-se a disposição de enfrentar a força física: “Não tem
carranca / Nem trator, nem alavanca / Quero ver quem é que arranca /
Nós aqui desse lugar”.
Se
Macabéa é a banida e Hermila a que volta para a cidade grande, a
Violeira é aquela que se agarra e não vai embora. Há uma espécie
de certeza de que esse é, sim, o seu lugar. A mesma certeza que
podemos ver em Macabéa (quando Rodrigo S.M. sai da sua frente) ou em
Hermila (não por suas palavras, mas por suas ações).
É
atrás de novas oportunidades de vida que essas jovens migrantes vão.
E o discurso moralizante e de controle das mulheres não as alcança,
nem enquanto indivíduos, nem enquanto objetos da fala de um outro.
“Reter o homem no campo” é o discurso – hoje já um tanto
desgastado – de burocratas que não se dispõem a sair por um
minuto sequer de suas confortáveis vidas urbanas. Boa parte do
trabalho acadêmico ainda ecoa esse discurso, em que uma demanda
acima de qualquer possibilidade de crítica (a necessidade de
oferecer melhores condições de vida às populações do campo ou
das pequenas cidades do interior) é contaminada por um viés de
“contenção” que, em última análise, visa retirar a autonomia
dessas pessoas. Vir para a cidade grande pode ser uma experiência
emancipadora. E isso é ainda mais verdade para as mulheres.
Vale
fazer um paralelo com o que Nancy Fraser observou sobre a mudança do
trabalho agrícola familiar para o trabalho fabril assalariado, que a
tradição marxista tende a definir simplesmente como “escravidão
assalariada”. Se um camponês perde propriedade e autonomia ao se
proletarizar, diz Fraser, é necessário pensar também na
experiência de uma jovem que troca a “fazenda – com suas horas
de trabalho indefinidas, supervisão paterna intrusiva e pouca vida
pessoal autônoma – por uma cidade fabril, onde a intensa
supervisão na fábrica era combinada com a relativa ausência de
supervisão fora, bem como com a crescente autonomia na vida pessoal
conferida pelo salário em dinheiro. Sob essa perspectiva, o contrato
de emprego era uma liberação”(2). Da mesma forma, as migrantes
talvez busquem, na balbúrdia e no anonimato da cidade grande, um
espaço de liberdade.
A
Violeira, como Macabéa ou Hermila, traz as marcas do Nordeste (em
seus traços, sua pele, seu sotaque, suas lembranças), mas não pode
ser identificada apenas por isso, porque, em seu trânsito pelo
Brasil afora e pelas ruas do Rio de Janeiro, ela vai adicionando
significados à sua existência, tornando plural sua identidade.
Tanto é plural que nos pegamos, em algum momento, a partir de algum
ângulo de nossa própria pluralidade, nos identificando com ela –
o que não aconteceria se ela nos fosse apresentada apenas como a
pobre migrante que a cidade grande engoliu. E é essa possibilidade
de aproximação que causa estranhamento, que subverte o discurso
hegemônico que fala sem parar dos perigos da cidade grande para as
mulheres.
Ela
certamente não é a representação de uma migrante nordestina, até
porque os sonhos das inúmeras migrantes nordestinas não são iguais
e não poderiam ser reduzidos a uma única experiência – redução
que denota uma visão preconceituosa sobre as experiências de vida
dos mais pobres. Ela é feita indivíduo, para que nos aproximemos de
sua existência e percebamos as possibilidades por trás de cada
jovem nordestina, ou cada jovem migrante.
(1).
CUNHA, Euclides da. Obra completa, v. 1. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1995, p. 276.
(a).
FRASER, Nancy. “Beyond the master/subject model: on Carole
Pateman’s The sexual contract”. In: Justice
interruptus: critical reflections on the “postsocialist”
condition. New York: Routledge, 1997, p. 230. (Tradução minha.)
Regina Dalcastagnè, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos
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